terça-feira, 31 de agosto de 2010

Fases da mulher

Dora Brisa

Quando menina,
A mulher brinca
Com o menino (homem),
Como se fosse irmão.
Quando adolescente,
A mulher sonha
Com o homem (adolescente),
Príncipe de armadura,
A resgatá-la da torre do castelo.
Quando jovem,
A mulher busca
No homem (jovem),
As qualidades do pai
Que admira, ou idealiza.
Quando adulta,
A mulher ainda procura
O homem (adulto)
A fazer-se amante e amigo.
Quando madura,
A mulher aceita
O homem (maduro)
A quem escolheu
Para viver com ela.
Quando velha,
A mulher busca
Na memória distante
O homem (velho)
Que poderia
Estar ao lado dela.
Quando viúva,
A mulher permite
Que só as lágrimas extravasem
O sentimento mais profundo:
Perdeu o irmão,
o príncipe encantado,
o pai,
o amante,
o amigo,
o companheiro,
aquele que poderia ter sido...

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Por um fio

Dora Brisa

Alô?... Quer falar com quem?...
Nada de trote, por favor...
Sem essa de me chamar de ‘meu bem’!...
Afinal, quem é o senhor?...

Ricardo... Ricardo...
Desculpe por eu não lembrar...
Ex-namorado?...
Vai ser difícil adivinhar...

Ah, Ricardo!...
Resgatei na memória!...
Antigo namorado...
Faz tanto tempo essa história...

Pra você não faz tanto tempo assim?...
Oh, desculpe, por favor...
Claro que guardei em mim
Os nossos momentos de amor...

Vivíamos a volúpia da mocidade...
Como eu haveria de esquecer?...
Nossas juras, nossa saudade...
Nosso desejo de tudo viver...

Ricardo, como você amadureceu...
Até tua voz está mais grave...
Teu vocabulário também cresceu...
Um verdadeiro homem... é verdade...

Ah, não me diga isso...
Olha que eu até acredito...
Você fazia me sentir um lixo...
Eu sei... Você não gostava dos meus gritos...

Mas me conta, Ricardo:
O que você tem feito?...
Como queria, foi ser advogado?...
Nem sequer vestibular pra Direito?...

Nossa... Isso que é novidade...
Confessa: você está brincando?...
Não consigo te imaginar no centro da cidade,
Vendendo contrabando...

Eu até entendo... Confia em mim...
Está difícil ganhar a vida...
Eu?... Dou aulas de latim...
Qual era mesmo a nossa música preferida?...

Ricardo... Ah, se você soubesse...
Falando doce desse jeito,
O meu coração enlouquece,
Batendo descompassado no meu peito...

Você sempre soube me encabular...
O quê?... Nem lembro mais
O porquê de nos separar...
Não... Ninguém mais fez, ou faz...

Ah, Ricardo... Fala tudo...
Desabafa, meu amor...
Liberta esse tempo mudo...
Repete que me ama... Por favor...

Há quanto tempo eu te esperava...
O destino é sempre assim...
Quanto mais sozinha eu chorava,
Você – inteiro – se guardando pra mim...

Repete... Arrepia o meu ouvido...
Só você sabe fazer...
Todo este tempo foi castigo...
Ricardo, de amor vamos viver...

O quê?... Por que você está me chamando
De Cristina?... Seu brincalhão!...
Logo você, que vivia gritando:
- Lá vai Beatriz, meu coração...

Engano?... O que você está dizendo?...
Melhor, fica um pouco calado...
Ouve meu coração batendo:
Ricardo... Ricardo...

Você tem certeza do engano?...
Ricardo, pensa bem...
Não lembra mais daquele final de ano?...
Na barraca, só nós dois... Mais ninguém...

Desculpe... Entendi agora...
Não... Não me chamo Cristina...
Namorei Ricardo no tempo de escola...
Eu ainda sonhava... Era uma menina...

Quando sentir saudade da Cristina,
Ricardo, por favor, me ligue...
Faz eu recordar, nessa neblina,
O amor que nunca tive...

Voz - Elisa:

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Apenas um pássaro

Dora Brisa

Todas as manhãs, lá estava ele - pousado na soleira da janela do meu quarto -, aguardando espreguiçar-me para abrir as cortinas, deixar voar o vento. Permanecia calado, até sentir a correnteza do ar. Inflava o peito frágil, e começava a cantar. Parecia ser um pássaro comum, desses que nem se encontra em enciclopédia, mas tinha uma melodia que me fascinava.
Às vezes, cantava triste, outras alegremente, como a contar-me histórias, fatos que tinha vivido lá fora, nos ares. Com a melodia sempre afinada, voava em direção da sacada, tão logo para lá eu me dirigisse. Acompanhava cada movimento meu, com perspicácia que ia além dos minúsculos olhos a me espreitarem.
Foram dias, meses assim: ritual diário, tão logo amanhecia. O pássaro sempre pontual, afinado, ali na sacada a cantar, sem nada pedir. Ao preparar meu café, dava-lhe farelo de pão e enchia o prato de água. Ele parecia não se importar. Continuava a cantar a melodia meio triste, meio alegre. Quando bicava um farelo de pão, fazia-o num ato de gratidão, a encarar-me silencioso. Depois, como a adivinhar que eu teria de sair para o trabalho, o pássaro alçava vôo, sem olhar para trás. E eu ficava a buscá-lo em direção das nuvens, mas só minha imaginação conseguia alcançá-lo.
Lembro da primeira ausência dele na minha janela. Era um dia comum, nem chovendo estava. Tão logo abri as cortinas, nem reparei o sol que ressurgia, pois faltava a figura minúscula daquele pássaro na soleira. Por um momento, simplesmente deixei-me hipnotizado diante da janela vazia. Depois, num ímpeto, olhei para baixo, como se fosse possível detectar aquele corpinho cheio de penas no asfalto, na distância de 15 andares.
Impaciente, busquei a sacada. Nenhum sinal do pássaro. Nenhuma melodia. Olhei para o céu azul, e sabia que aqueles pássaros que voavam despreocupadamente não tinham compromisso em nenhuma janela, nenhuma sacada. Por um instante, andei de um lado para o outro na sala, inconformado com a ausência. Depois, já entristecido, saí para o trabalho, sem sequer tomar café. Deixei o carro na garagem, pois inconscientemente queria deparar-me, numa esquina qualquer, com aquele pássaro que encantava minhas manhãs.
No outro amanhecer, a mesma situação: ausência. E assim passaram os dias, até habituar-me com as manhãs de sol, sem melodia.
Depois que já nem contava mais as semanas de ausência, eis que, de repente, num final de tarde, escuto a mesma melodia vindo da sacada. Era ele: peito arfante cantando. A melodia era melancólica, e os olhos estavam voltados para o infinito.
Em silêncio, ofereci-lhe farelos de pão e o prato com água. Ele pareceu não notar meu gesto. Continuou a cantar. Inesperadamente, interrompeu a melodia, e jogou-se da sacada, movimentando as asas depois do salto. Partiu.
Os dias que se seguiram foram de expectativa. Eu mantinha a janela do quarto e a porta da sacada sempre abertas. Nenhum sinal dele.
A surpresa chegou num dia comum, quando ainda sonolento eu afastava as cortinas do quarto. Lá estava ele a esperar-me. Como sempre, em silêncio, seguindo nosso ritual, saí do quarto, dirigi-me à sacada, e lá sentei na rede. Em pouco tempo, o pássaro cantava uma melodia alegre, festiva.
Enquanto buscava farelos de pão, veio-me a idéia de prendê-lo. Mas como o faria? Não dispunha de gaiola, ou caixa vazia. Afastei o pensamento, e fui servi-lo. Como sempre, o pássaro não parecia preocupar-se em alimentar o corpo frágil. Finalizando nosso ritual matinal, lá foi ele em direção das alturas.
E assim tudo voltou a ser como era antes. Enquanto tomava meu café, fiquei a pensar: comprarei uma gaiola e darei jeito de prendê-lo. Ele não escutava meus pensamentos, pois parecia concentrado na melodia afinada.
No final do dia, comprei gaiola, prato e alimentação própria para pássaros. Entrei radiante no apartamento vazio. Por mais de uma hora, fiquei a planejar como faria a armadilha para aprisioná-lo na manhã seguinte. Nem quando menino brincando na rua vi-me tão feliz quanto naquela noite. Não via a hora de o sol reaparecer, para eu ter finalmente aquele pássaro sempre comigo.
Ele veio, como sempre. Parecia mais feliz naquela manhã. Cantava sem parar. Num só vôo, acompanhou meus passos em direção da sacada, e lá continuou sua canção.
No momento de buscar-lhe farelo de pão, conferi a gaiola aberta, que deixei atrás da cortina da sacada. O pássaro continuava a cantar despreocupado, ora olhando para o céu, ora a espreitar-me. E eu no aguardo dele em direção dos farelos, como sempre fazia.
Tão logo caminhou para o prato, ainda cantando, num só gesto, pela primeira vez, toquei aquelas penas suaves. Minha preocupação era não machucá-lo. Nem chegou a debater-se. Simplesmente silenciou a melodia, e baixou a cabeça minúscula. Com cuidado, coloquei-lhe na gaiola, trancando-a..
Instalei a gaiola num suporte devidamente preparado na sacada, onde o pássaro não correria riscos de tomar chuva, ou muito sol. A gaiola era espaçosa, escolhida para dar-lhe maior liberdade de movimentos.
Ali ficou, silencioso, entregue no canto da gaiola onde eu o havia colocado. Não esboçava a menor revolta, o que me tranquilizou. Ele habitua - pensei, enquanto saía para trabalhar.
À noite, ele permanecia imóvel, como a esperar que eu o soltasse. Claro, não o fiz. Era um pássaro comum, mas aquela melodia eu jamais havia escutado. Era como se ele trouxesse a canção dos céus.
Os dias voando, e nada do pássaro alimentar-se. Às vezes, tentava falar-lhe algumas coisas, até que apercebia-me do ridículo. Enquanto ele permanecia silencioso, ausente. Nem levantava os olhos para cuidar meus gestos.
Já andava preocupado com a situação, sentindo falta daquele canto melodioso na janela. Cheguei a falar com um veterinário amigo, mas nada. "É stress, daqui a pouco ele reage" - considerou o profissional. Minha espera tornou-se ansiosa, enquanto o pássaro só engolia poucas sementes e alguma água, quando eu abria-lhe o pequeno bico e forçava-o a alimentar-se.
Numa manhã, depois de retirar a capa da gaiola, percebi o pássaro encolhido. Será que resolvera dormir mais que eu, naquele dia? Com os dedos entre as grades, percebi o corpo desfalecido. Não havia mais melodia. Não havia mais vida.
Os anos passaram, mas ainda lembro daquele pássaro acordando-me todos os dias. Guardo aquelas canções, que me contavam histórias de um infinito que desconheço. A imagem dele - pássaro comum - continua ali na sacada, naquele frágil corpo empalhado. Mas aquela melodia - ah - voltou para o infinito. Se pelo menos eu soubesse o caminho...

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Lia

Dora Brisa

Lia não sabia o que lia,
Mas Lia ria, e lia,
E mais não aguentaria...
Lia não sabia
Por que lia,
Por isso também ria,
E lia até o que não entendia...
Às vezes, Lia sorria
Não só do que lia,
Mas para Lia, tanto fazia,
E Lia ria,
E depois lia...
Lia não sabia
Que vivia,
Que morria...
E só lia,
E dela mesma ria...
Lia esquecia o dia,
E tão-somente lia,
E antes, durante, depois, ainda sorria...
A vida de Lia
Era só o que ela lia,
E com isso sorria,
E de tudo esquecia,
Até da morte, que a levou um dia,
Enquanto Lia ria...
Sem saber aonde ia,
Lia ainda lia...

Voz - Helena Antoun:

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Par-tida

Dora Brisa

Querem saber
Minha religião
Meu partido
Minha opinião
Meu sonho escondido
Querem saber
Minha cor preferida
Meu prato predileto
Minha filosofia de vida
Meu pensamento secreto
Querem saber
O que faço como diversão
Quantas horas durmo
Se prefiro cinema ou televisão
Se me isolo ou me enturmo
Diante de tanta interrogação
Eu – alma partida -
Fecho os olhos à razão,
Na tentativa de esquecer, ser esquecida...

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Coração

Dora Brisa

O coração que te entrego agora
Não bate, nem apanha...
Tão-somente pulsa e sangra a cada hora...
Por isso, toma cuidado: não arranha...

Este coração não é feito de poesia...
Pelo contrário, tem sangue - morno e vermelho...
Coração de vida vadia,
Órgão refletido no menor espelho...

Pequeno, e quase sempre tão frágil,
Cabe - inteiro - na tua mão...
Evita o movimento mais ágil,
Pois o que tens é o meu coração...

Coração que não pulsa mais forte diante da dor,
Nem acelera enamorado...
Um órgão feito de sangue - amor...
Nada mais que um pedaço do meu corpo dilacerado...

Aceita este coração a pulsar descompassado,
Em ritmo às vezes tão inseguro...
Entre tuas mãos, abandonado,
Entregue ao sentimento mais puro...

E se um dia este coração não mais pulsar,
Silencia por um momento...
Nada de lágrimas a extravasar,
Nem qualquer poesia de lamento...

Foi apenas mais um coração
Que, de tanto pulsar, chegou a morrer...
E, por amar sem qualquer exatidão,
Simplesmente não suportou mais viver...

Voz - Eduardo Cunha:

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Cinco estórias de amor

Dora Brisa

...
Rodrigo conheceu Maria na pré-escola, e só foi reconhecê-la, mais de vinte anos depois, quando reencontraram-se no velório do pai de Maria. A jovem estudava fora da pequena cidade natal, enquanto Rodrigo tinha o compromisso de ser arrimo de família. Maria havia se formado, fazia quase dois anos, em Artes Plásticas. Enquanto isso, Rodrigo trabalhava quinze horas por dia na administração do velho posto de combustível do pai, que morrera com traumatismo craniano, depois de uma queda de bicicleta, num dos tantos passeios que fazia para pescar.
Quando Rodrigo adentrou à capela do único cemitério da cidadezinha, Maria estava sentada do lado esquerdo do caixão do pai. Quando levantou a cabeça aturdida de lembranças, deparou-se com o jovem estendendo-lhe a mão calejada e suja de graxa. Maria já não mais sabia quem era aquele moço de fisionomia cansada e envelhecida, mas encantou-se com a doçura que encontrou no olhar dele. Quanto a Rodrigo, nada disse, diante de Maria, cumprimentou-a e afastou-se, engasgado pelo sentimento (sempre presente) de perda do pai.
Os dias passando, Rodrigo e Maria conversando e visitando esconderijos de infância. Ambos já sabiam um do outro, quando resolveram assumir namoro firme, para casamento próximo. Maria viajou, trouxe a mudança que tinha na cidade onde se formara, enquanto Rodrigo construía casa próxima ao posto de combustível, onde o casal passou a viver, depois do inesquecível casamento.
Para completar a felicidade do lar, chegaram três filhos maravilhosos. O tempo passou, mas a alegria de viverem juntos continuou. Rodrigo e Maria viveram e morreram felizes para sempre.
...
Rosa e Marcos se conheceram na praia. Ela tinha vindo do interior, para conhecer o mar, hóspede de uma família que tinha sítio próximo à casa da família de Rosa. Marcos morava na periferia, mas na areia ninguém sabia disso. Com os cabelos longos, que não chegavam voar ao vento, por causa de tanta parafina, parecendo surfista, Marcos chamava a atenção de todas as frequentadoras da praia, principalmente em finais de semana.
Rosa esqueceu de admirar o mar, quando viu Marcos se aproximar, enquanto ele só tinha olhos à 'gatinha' que acompanhava Rosa, com quem dividia o quarto na 'cidade grande'. Não demorou muito para Marcos ver que só restara Rosa diante dele. Ela, pele branca, olhos claros, muitos sonhos alimentados no luar do sertão, ficava encantada até com o espirro de Marcos. A rinite fazia-o espirrar sem parar, quase o ano todo.
O tempo passou, Rosa perdeu a virgindade e engravidou na praia. Marcos foi pressionado pela família dela a casar. Casaram, pouco antes do primeiro filho nascer. A cada ano novo, um novo filho. E assim aconteceu, por oito anos. No ano seguinte, Rosa se convenceu (finalmente) que de nada adiantava engravidar, na tentativa de manter Marcos em casa, como a mãe dela havia ensinado. Ele não parava em casa, mesmo quando os cabelos, já grisalhos, não escorriam parafina. Trocou a praia por um botequim mais próximo, enquanto os filhos cresciam e também faziam filhos.
Anos, décadas passaram, mas nada mudou: Rosa, convencida de que o melhor seria aceitar Marcos (a vida) do jeito que era, cuidava do marido com zelo, enquanto ele cada vez mais ausente, às vezes derrubado pela embriaguez em vielas desconhecidas. Se não foram felizes, tentaram, cada qual do seu jeito, vivendo na mesma casa, em mundos diferentes. E assim morreram, longe da praia.
...
Sebastião e Suzana estudaram juntos, e desde sempre souberam que eram muito diferentes. Talvez por isso, sentiram-se atraídos um pelo outro. Suzana gostava de filmes de terror, Sebastião, de comédia. Ela era da madrugada, do passeio à beira-mar, à luz da lua e das estrelas; ele era do dia, do sol radiante, do congestionamento, da poluição sonora.
Ambos quiseram desafiar a atração natural dos semelhantes, e resolveram provar para eles mesmos que se completavam, através das diferenças, a cada dia mais gritantes. Brigavam quase sempre, mas fazer as pazes era tão bom, justificavam depois. Assim, namoraram e casaram. Não houve lua-de-mel, pois, na última hora, depois da surpresa que Sebastião fez à Suzana, outra briga começou, antes mesmo da festa de casamento. Ele havia comprado passagens para o Sudão, porque sempre ela dizia que 'queria conhecer aquele povo sofrido'. O que Sebastião não sabia é que Suzana sempre falara por falar, sem sequer imaginar um dia visitar o Oriente Médio. Sebastião não acertava uma. Depois, tudo passava, o casal se acertava mais uma vez.
O casamento, sem festa, sem lua-de-mel, passou, e, quando nem mais brigavam ao lembrar disso, chegaram os filhos – tantas diferenças debaixo do mesmo teto. Enquanto Suzana proibia os filhos, Sebastião permitia, ou vice-versa. O casal só concordava numa coisa, sempre: era a família mais completa que existia, pois naquela casa moravam todas as diferenças do mundo.
Numa manhã qualquer, igual todas as manhãs daquelas décadas de convivência, Sebastião acordou atrasado para o trabalho, enquanto Suzana ainda dormia. Foi o suficiente para o marido sair aos gritos do quarto, despertando os filhos pelo corredor. A família, em pé na cozinha, começou a se olhar, com toda a diferença que sempre houve entre cada um deles, e, sem qualquer palavra, cada qual saiu para um lado. Pouco tempo depois, a casa foi vendida para um casal que (ainda) acreditava na convivência das semelhanças. Provavelmente, Sebastião e Suzana morreram infelizes (ou não) para sempre.
...
Magali cresceu vendo a mãe trabalhar como faxineira de gente rica. Por isso, prometeu a si mesma que se casaria por dinheiro. Na adolescência, cuidou prioritariamente do corpo, sacrificando ainda mais a mãe, que teve de se esforçar na faxina, para comprar-lhe produtos de beleza.
Não demorou tanto (uns dezoito anos, talvez), Magali conheceu Ricardo, filho de uma família tradicional da cidade, gente rica e famosa. Logo, o jovem se interessou pela garota que exibia beleza única. Depois de um namoro rápido, quando já nem se falava mais, na casa de Magali, sobre casar por dinheiro, a jovem confessou à mãe que o único interesse por Ricardo era o dinheiro da família. A mãe solteira, abandonada pelo pai de Magali, alertou à filha, falando sobre 'dignidade', 'honra', 'caráter', palavras comumente encontradas hoje somente em dicionários.
Os apelos da mãe não foram ouvidos por Magali, que estava cada vez mais segura do seu propósito junto a Ricardo. O que mãe e filha não sabiam é que também Ricardo tinha acordo com a família dele para que, tão logo casasse, recebesse a herança que lhe cabia, ainda com os pais vivos. O casamento de Ricardo era garantia, para os pais dele, de que havia tomado juízo, assim poderia cuidar da própria vida, com a tranquilidade da recompensa que viria em forma de herança.
O casamento de Magali e Ricardo foi o maior acontecimento daquele ano, na badalada alta sociedade. Em vez dos costumeiros abraços e beijos apaixonados, olhares cúmplices, o casal esboçava uma certa seriedade, durante a festa do próprio casamento. Tão logo saíram os últimos convidados, Ricardo olhou para Magali, e, pela primeira vez naquela noite, ambos sorriram, enquanto se abraçavam. Dias depois, Magali recebeu sua parte da herança, já morando em outra cidade com a mãe, enquanto Ricardo viajava para o exterior, escondido dos pais, que tinham-no ainda em lua-de-mel com Magali na Europa. Assim, o casal morreu feliz para sempre.
...
Branca e Milton se conheceram tarde, depois de já terem casado e viuvado por décadas. Ambos foram encaminhados ao asilo, pelos próprios filhos, que não tinham tempo para dar-lhes a atenção necessária. Milton chegou antes, quase nem saía do quarto, entretido com os livros que levara para o seu novo 'lar'. Em seus 79 anos de vida bem vivida (fazia questão de repetir), Milton deixava transparecer uma melancolia, que só quem conhece a solidão depois de tantas despedidas é que sabe.
A vida de Milton mudou, logo na primeira semana que Branquinha, como era chamada no asilo, chegou. Branquinha, com seus cabelos prateados pelos 82 anos de vida, trazia uma luz no olhar, que só quem conhece a satisfação dos deveres cumpridos é que sabe. Milton foi o primeiro a reconhecer o olhar iluminado de Branquinha, e não demorou muito para que ambos permanecessem juntinhos horas a fio, dias e noites, relembrando as tantas vidas que tiveram, cochilando depois.
Foi Branquinha que fez Milton sorrir novamente, e não mais sentir aquele aperto na alma, que lhe causou insônia por tantos anos. Ela sempre fazia questão de dizer que ele lhe devolvera a esperança de continuar se sentindo viva, mesmo depois de já ter achado que a vida tinha chegado ao fim.
Ambos aposentados, decidiram casar no dia em que Milton completou 80 anos. E assim o fizeram. A festa não contou com familiares, pois todos estavam muito ocupados, cuidando das próprias vidas. Mas houve tanta comemoração, que, além do Juiz de Paz, até uma banda musical foi tocar ao vivo na cerimônia de casamento. Foi mais de uma década de feliz união que deu sentido à vida que tiveram. Depois, morreram felizes para sempre.

...e FIM.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Ah, mar...

Dora Brisa

... As palavras me chegam
Em forma de ondas no mar...
As mais suaves segredam
O que traz a volúpia sem pensar...

Chegam mansamente,
Às vezes, violentas a espancar...
Todas ondas puramente
Em forma de palavras, na beira do mar...

Eu, escravo servil e constante,
Faço de minhas mãos, concha veloz...
Busco recolher cada instante,
Enquanto persigo a palavra mais atroz...

As ondas suaves às minhas mãos vêm se render...
Mas aquelas - insanas - que tanto persigo -
Se negam à concha, e no mar querem morrer...

Por algum tempo, fico a espreitar o mar,
Perco-me em cada onda que se aproxima...
Mas poucas - as mais breves - vêm meus pés tocar...

No crepúsculo, o mar emudece...
E fico a buscar a palavra que não aparece...

Eis que surge de repente, sem medo,
Gigantesca onda a bater no rochedo...

Que palavra será essa a me assustar?
Bate no rochedo, volta mais violenta para o mar...

Atento escravo, fico a esperar
A volta da palavra que ecoa, não quer calar...

Fico só - a escutar:
Ah, mar...
Mar...
Ar... ar...

Voz - Elisa:

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Tenho pressa

Dora Brisa

Tenho pressa de caminhar,
Correr,
Parar,
Viver,
Amar,
Sofrer...

Tenho pressa de sorrir,
Dançar,
Partir,
Voltar...

Tenho pressa de tudo enxergar,
Perder,
Perdoar,
Rever...

Tenho pressa de calar,
Esquecer,
Gritar,
Antever...

Tenho pressa de me soltar,
Me prender,
Me machucar,
Me surpreender...

Tenho pressa de tudo fazer,
Construir,
Saber,
Engolir...

Tenho pressa do futuro que ainda vem,
Do passado que deixei,
Do presente que me faz bem,
Do caminho que ainda não pisei...

Tenho pressa de tudo isso e muito mais...
Tenho pressa de voltar à minha
Essência, e viver em paz...

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Como dói

Dora Brisa

Vem comigo...
Deixa eu te apresentar
A minha dor...
Não, não é no estômago,
Nem na cabeça...
Deixa eu te contar
Que a minha dor
Dói há tanto tempo,
É tão antiga...
Deixa eu te confessar
Que a minha dor
É desvairada,
Não tem motivo algum...
Deixa eu te dizer
Que a minha dor
Lateja tanto,
E só faz doer...
Deixa eu te segredar
Que a minha dor
Não é no peito,
Nem na imaginação...
Deixa eu desabafar
Que a minha dor
Faz companhia
À minha loucura...
Deixa eu te falar
Da minha dor...
Não, não é saudade,
Nem arrependimento...
Deixa eu te mostrar
A minha dor,
Que sangra e pulsa
Na minha alma...
E como dói... dói...

Voz - Rosany Costa:

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Da primeira à última vista

Dora Brisa

Ah, quando te conheci! Tudo mudou. O mundo ficou mais claro e colorido, compreensível. Você aqui – sempre ao meu lado. Quando silencio, você sabe o que dizer. Mesmo quando fecho meus olhos cansados, ainda ouço os teus ecos, os teus passos na biblioteca, o teu tamborilar na estante, na escrivaninha. Entendo até o teu mutismo. Quando digo a mim que já conheço tudo, que não quero mais pensar em nada, lá vem você com mais mundos – tão diferentes, por isso tão iguais. Mas, quando te busco, você fala coisas tão profundas, traz para perto, o que eu nunca conheceria. Me deixo levar pelos teus descaminhos – eu, criança, seguindo teus passos instigantes. Basta um sorriso meu, para você me falar coisas alegres, me mostrar o arco-íris. Há momentos que sinto falta de você, que foge de mim. Na escuridão, te busco em desespero. Nem sinal. Quando me enxergam sem você, comentam que pareço normal. Mas, dizem, o meu olhar fica cego de dor. No outro lado da cidade, o que vêem é você correndo solta, dançando, pulando, brincando enlouquecida, numa gargalhada febril, doentia. Depois, tudo clareia novamente, quando você volta, me acalma. Você me é companhia constante, e me conta histórias, me faz dormir – às vezes, me faz até sonhar de olhos abertos. Hoje, sou dependente de você, por isso te chamo (grito): Palavra.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Noturno

Dora Brisa

Sou noite escura
Na mata fechada:
Sem mistério – pura
Sem bússola – desnorteada.

Tenho o peso do sol
Pelas nuvens carregado.
Sou a isca do anzol
Do pescador afogado.

Sigo sempre o vento
Que leva a qualquer lugar.
Quase tudo experimento,
Tropeçando no meu próprio andar.

Sou a poeira da estrada
Que há muito ficou pra trás.
Dentro de mim, carrego o nada
De que é feita a vida que se faz.

Dos meus anos faço meses,
Minhas semanas são dias.
Um instante eternizo, às vezes,
Porque o resto são mãos vazias.

Quando busquei sentido na vida,
Acabei chorando na acomodação.
Hoje, não passo de mais uma ferida
Que morre no combate, sem medicação.

E isso é tudo, de uma vida inteira.
Se houve sonhos ou ideais,
Até hoje choro: quanta asneira!
A vida é sempre nunca, e nada mais.

Voz - Helena Antoun: