segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Cinco estórias de amor

Dora Brisa

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Rodrigo conheceu Maria na pré-escola, e só foi reconhecê-la, mais de vinte anos depois, quando reencontraram-se no velório do pai de Maria. A jovem estudava fora da pequena cidade natal, enquanto Rodrigo tinha o compromisso de ser arrimo de família. Maria havia se formado, fazia quase dois anos, em Artes Plásticas. Enquanto isso, Rodrigo trabalhava quinze horas por dia na administração do velho posto de combustível do pai, que morrera com traumatismo craniano, depois de uma queda de bicicleta, num dos tantos passeios que fazia para pescar.
Quando Rodrigo adentrou à capela do único cemitério da cidadezinha, Maria estava sentada do lado esquerdo do caixão do pai. Quando levantou a cabeça aturdida de lembranças, deparou-se com o jovem estendendo-lhe a mão calejada e suja de graxa. Maria já não mais sabia quem era aquele moço de fisionomia cansada e envelhecida, mas encantou-se com a doçura que encontrou no olhar dele. Quanto a Rodrigo, nada disse, diante de Maria, cumprimentou-a e afastou-se, engasgado pelo sentimento (sempre presente) de perda do pai.
Os dias passando, Rodrigo e Maria conversando e visitando esconderijos de infância. Ambos já sabiam um do outro, quando resolveram assumir namoro firme, para casamento próximo. Maria viajou, trouxe a mudança que tinha na cidade onde se formara, enquanto Rodrigo construía casa próxima ao posto de combustível, onde o casal passou a viver, depois do inesquecível casamento.
Para completar a felicidade do lar, chegaram três filhos maravilhosos. O tempo passou, mas a alegria de viverem juntos continuou. Rodrigo e Maria viveram e morreram felizes para sempre.
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Rosa e Marcos se conheceram na praia. Ela tinha vindo do interior, para conhecer o mar, hóspede de uma família que tinha sítio próximo à casa da família de Rosa. Marcos morava na periferia, mas na areia ninguém sabia disso. Com os cabelos longos, que não chegavam voar ao vento, por causa de tanta parafina, parecendo surfista, Marcos chamava a atenção de todas as frequentadoras da praia, principalmente em finais de semana.
Rosa esqueceu de admirar o mar, quando viu Marcos se aproximar, enquanto ele só tinha olhos à 'gatinha' que acompanhava Rosa, com quem dividia o quarto na 'cidade grande'. Não demorou muito para Marcos ver que só restara Rosa diante dele. Ela, pele branca, olhos claros, muitos sonhos alimentados no luar do sertão, ficava encantada até com o espirro de Marcos. A rinite fazia-o espirrar sem parar, quase o ano todo.
O tempo passou, Rosa perdeu a virgindade e engravidou na praia. Marcos foi pressionado pela família dela a casar. Casaram, pouco antes do primeiro filho nascer. A cada ano novo, um novo filho. E assim aconteceu, por oito anos. No ano seguinte, Rosa se convenceu (finalmente) que de nada adiantava engravidar, na tentativa de manter Marcos em casa, como a mãe dela havia ensinado. Ele não parava em casa, mesmo quando os cabelos, já grisalhos, não escorriam parafina. Trocou a praia por um botequim mais próximo, enquanto os filhos cresciam e também faziam filhos.
Anos, décadas passaram, mas nada mudou: Rosa, convencida de que o melhor seria aceitar Marcos (a vida) do jeito que era, cuidava do marido com zelo, enquanto ele cada vez mais ausente, às vezes derrubado pela embriaguez em vielas desconhecidas. Se não foram felizes, tentaram, cada qual do seu jeito, vivendo na mesma casa, em mundos diferentes. E assim morreram, longe da praia.
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Sebastião e Suzana estudaram juntos, e desde sempre souberam que eram muito diferentes. Talvez por isso, sentiram-se atraídos um pelo outro. Suzana gostava de filmes de terror, Sebastião, de comédia. Ela era da madrugada, do passeio à beira-mar, à luz da lua e das estrelas; ele era do dia, do sol radiante, do congestionamento, da poluição sonora.
Ambos quiseram desafiar a atração natural dos semelhantes, e resolveram provar para eles mesmos que se completavam, através das diferenças, a cada dia mais gritantes. Brigavam quase sempre, mas fazer as pazes era tão bom, justificavam depois. Assim, namoraram e casaram. Não houve lua-de-mel, pois, na última hora, depois da surpresa que Sebastião fez à Suzana, outra briga começou, antes mesmo da festa de casamento. Ele havia comprado passagens para o Sudão, porque sempre ela dizia que 'queria conhecer aquele povo sofrido'. O que Sebastião não sabia é que Suzana sempre falara por falar, sem sequer imaginar um dia visitar o Oriente Médio. Sebastião não acertava uma. Depois, tudo passava, o casal se acertava mais uma vez.
O casamento, sem festa, sem lua-de-mel, passou, e, quando nem mais brigavam ao lembrar disso, chegaram os filhos – tantas diferenças debaixo do mesmo teto. Enquanto Suzana proibia os filhos, Sebastião permitia, ou vice-versa. O casal só concordava numa coisa, sempre: era a família mais completa que existia, pois naquela casa moravam todas as diferenças do mundo.
Numa manhã qualquer, igual todas as manhãs daquelas décadas de convivência, Sebastião acordou atrasado para o trabalho, enquanto Suzana ainda dormia. Foi o suficiente para o marido sair aos gritos do quarto, despertando os filhos pelo corredor. A família, em pé na cozinha, começou a se olhar, com toda a diferença que sempre houve entre cada um deles, e, sem qualquer palavra, cada qual saiu para um lado. Pouco tempo depois, a casa foi vendida para um casal que (ainda) acreditava na convivência das semelhanças. Provavelmente, Sebastião e Suzana morreram infelizes (ou não) para sempre.
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Magali cresceu vendo a mãe trabalhar como faxineira de gente rica. Por isso, prometeu a si mesma que se casaria por dinheiro. Na adolescência, cuidou prioritariamente do corpo, sacrificando ainda mais a mãe, que teve de se esforçar na faxina, para comprar-lhe produtos de beleza.
Não demorou tanto (uns dezoito anos, talvez), Magali conheceu Ricardo, filho de uma família tradicional da cidade, gente rica e famosa. Logo, o jovem se interessou pela garota que exibia beleza única. Depois de um namoro rápido, quando já nem se falava mais, na casa de Magali, sobre casar por dinheiro, a jovem confessou à mãe que o único interesse por Ricardo era o dinheiro da família. A mãe solteira, abandonada pelo pai de Magali, alertou à filha, falando sobre 'dignidade', 'honra', 'caráter', palavras comumente encontradas hoje somente em dicionários.
Os apelos da mãe não foram ouvidos por Magali, que estava cada vez mais segura do seu propósito junto a Ricardo. O que mãe e filha não sabiam é que também Ricardo tinha acordo com a família dele para que, tão logo casasse, recebesse a herança que lhe cabia, ainda com os pais vivos. O casamento de Ricardo era garantia, para os pais dele, de que havia tomado juízo, assim poderia cuidar da própria vida, com a tranquilidade da recompensa que viria em forma de herança.
O casamento de Magali e Ricardo foi o maior acontecimento daquele ano, na badalada alta sociedade. Em vez dos costumeiros abraços e beijos apaixonados, olhares cúmplices, o casal esboçava uma certa seriedade, durante a festa do próprio casamento. Tão logo saíram os últimos convidados, Ricardo olhou para Magali, e, pela primeira vez naquela noite, ambos sorriram, enquanto se abraçavam. Dias depois, Magali recebeu sua parte da herança, já morando em outra cidade com a mãe, enquanto Ricardo viajava para o exterior, escondido dos pais, que tinham-no ainda em lua-de-mel com Magali na Europa. Assim, o casal morreu feliz para sempre.
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Branca e Milton se conheceram tarde, depois de já terem casado e viuvado por décadas. Ambos foram encaminhados ao asilo, pelos próprios filhos, que não tinham tempo para dar-lhes a atenção necessária. Milton chegou antes, quase nem saía do quarto, entretido com os livros que levara para o seu novo 'lar'. Em seus 79 anos de vida bem vivida (fazia questão de repetir), Milton deixava transparecer uma melancolia, que só quem conhece a solidão depois de tantas despedidas é que sabe.
A vida de Milton mudou, logo na primeira semana que Branquinha, como era chamada no asilo, chegou. Branquinha, com seus cabelos prateados pelos 82 anos de vida, trazia uma luz no olhar, que só quem conhece a satisfação dos deveres cumpridos é que sabe. Milton foi o primeiro a reconhecer o olhar iluminado de Branquinha, e não demorou muito para que ambos permanecessem juntinhos horas a fio, dias e noites, relembrando as tantas vidas que tiveram, cochilando depois.
Foi Branquinha que fez Milton sorrir novamente, e não mais sentir aquele aperto na alma, que lhe causou insônia por tantos anos. Ela sempre fazia questão de dizer que ele lhe devolvera a esperança de continuar se sentindo viva, mesmo depois de já ter achado que a vida tinha chegado ao fim.
Ambos aposentados, decidiram casar no dia em que Milton completou 80 anos. E assim o fizeram. A festa não contou com familiares, pois todos estavam muito ocupados, cuidando das próprias vidas. Mas houve tanta comemoração, que, além do Juiz de Paz, até uma banda musical foi tocar ao vivo na cerimônia de casamento. Foi mais de uma década de feliz união que deu sentido à vida que tiveram. Depois, morreram felizes para sempre.

...e FIM.

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