sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Lá vem o Ano Novo

Ruth Rocha

Foi no dia 31 de dezembro. Vocês sabem que o dia 31 de dezembro é o último dia do ano.
Lá, na Casa do Tempo, todos estavam se preparando pra começar o novo ano.
O Ano Velho já estava muito cansado de tanto trabalhar. E o Ano Novo estava prontinho pra nascer.
Todos os ajudantes do Tempo, os segundinhos, os minutos, as senhoritas horas, as senhoras semanas, os doutores meses, todos preparavam-se pra passagem do ano.
Cada grupinho discutia seus problemas. Os segundinhos estavam muito aborrecidos:
- Ah, isso é uma injustiça. Nós, que somos os menores de todos, é que temos que trabalhar mais! E os minutos, aqueles enjoados, vivem nos empurrando! "Anda depressa! Não pode atrasar! Deixa de moleza!"
Os minutos também tinham seus problemas:
- Esses segundos nos dão muito trabalho. Temos que estar contando todo tempo, e eles são tantos! Todos parecidos! Vivem loucos para entrar no escorregador do tempo. De vez em quando, um deles entra na fila antes da hora, e sai cada confusão!
O que vale é que, lá na Terra, ninguém percebe nada.
A Meia Noite é que estava mais importante de todos. Quando na Terra se fazem grandes festas pra comemorar o Ano Novo, Dona Meia Noite estava toda vestida para a festa: de vestido comprido, plumas na cabeça. Parecia até uma estrela de cinema! E andava de um lado para o outro perguntando:
- Estou bem? Que tal meu vestido novo? Cuidado com minha cauda! Esses segundinhos são tão levados...
E lá na Terra todos se preparavam também. Na casa da vovó Emília, havia uma grande festa.
Enquanto as pessoas grandes faziam os doces e enfeitavam a casa, as crianças, todos os netinhos de Dona Emília, preparavam grandes listas de resoluções para o Ano Novo:
- Não vou mais comer escondido.
- Nem eu.
- Não vou mais faltar a aula, pra jogar futebol.
- Eu não vou mais amarrar latas no rabo do Epitácio.
- Não vou mais puxar o rabo da gata Vitiver, coitadinha...
- Não vou mais contar nenhuma mentira.
Quando estava quase na hora, Dona Emília e Seu Tonico e todos os convidados vieram para a sala. E começaram a distribuir apitos, línguas de sogra, tudo que faz bastante barulho.
Pedroca tinha trazido sua corneta:
- Eu é que vou fazer mais barulho que todo mundo!
Joãozinho já estava com alfinete na mão para estourar todas as bolas.
Mas alguma coisa muito esquisita estava se passando. O relógio continuava andando normalmente, mas a meia noite não chegava nunca!
Todos começaram a ficar espantados.
Vovô Tonico tirou até seu grande relógio de bolso, que a vovó Emília chamava de Cebolão.
Até o cuco veio dar uma espiadinha pra ver o que estava acontecendo.
É que lá na Casa do Tempo havia um grande problema: quando chegou a hora de Dona Meia Noite passar para a Terra, ela resolveu fazer greve!
- Não vou! Não vou, e pronto!
- Mas não vai por quê? - perguntou o Tempo - que é o chefão lá deles.
- Não vou, porque estou cansada de tanta fita. Olhe só lá na Terra! - e Dona Meia Noite continuou - Ah! Eu estou cansada de tanto fingimento. Todo ano é a mesma coisa! Prometem ficar bonzinhos, mas, amanhã, estão todos fazendo as mesmíssimas coisas.
Um segundinho passou reclamando:
- Dona Meia Noite, passa logo! Eu não estou acostumado a trabalhar tanto!
O Tempo já estava aflito:
- Eu não posso parar, Dona Meia Noite! Anda logo!
Dona Semana também tentou convencer a teimosa:
- Se a senhora não passar, não vai haver Ano Novo! Coitadinho dele...e o Ano Velho, coitado, vai ter que trabalhar o resto da vida! Ele que já está tão velhinho...
- Ah, não sei de nada! Desde que me entendo por gente, é a mesma coisa. Já estou cansada!
Nessa altura, apareceu a mulher do Tempo, que é a Dona Temporada, e que já estava ficando preocupada de ver tanta confusão:
- Escute, Dona Meia Noite. É verdade que todos os anos as pessoas dizem que vão melhorar, e no fim não melhoram nada. Mas, quem sabe, se este não vai ser realmente o Ano Novo? Não vai ser de verdade um Ano Bom? Olhe só para o Ano Novo, como é bonitinho, tão novinho, uma graça... Quem sabe, Dona Meia noite, hein? Quem sabe?
Dona Meia Noite pegou o Ano Novo no colo. Ele sorriu. Ela também sorriu.
Dona Temporada falou:
- Quem sabe se este aninho tão pequenino ainda não vai fazer um milage? O milagre de todos ficarem amigos, e ninguém pensar em fazer mal aos outros.
Todos aplaudiram.
- É isso mesmo!
- Coragem, Dona Meia Noite!
- Vamos!
Dona Meia Noite olhou para o Ano Novo, que continuava sorrindo.
- Sabe de uma coisa? Então, eu vou! Sai da frente pessoal, lá vou eu!
E Dona Meia Noite, toda vestida de verde, que é a cor da esperança, escorregou pelo escorregador do tempo, dando adeus a todos:
- Adeus, todo mundo! Feliz Ano Novo!
E na Terra a alegria foi grande! Todos os relógios começaram a dar meia noite.
Os foguetes estouravam no céu.
Em todas as casas todos se abraçavam e pensavam: "Quem sabe? Quem sabe? Quem sabe?"...

Com os devidos creditos, Ruth Rocha/Palavra Cantada (cd Mil Passaros):

Vai, ano velho

Affonso Romano de Sant'Anna

Vai, ano velho, vai de vez,
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um,
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum, pra trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,
a casa e o coração.
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.

Vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nossso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso,
e sacia em nós a fome
- de utopia.

Vem na areia da ampulheta com a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se
se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.

na minha voz:

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Rifa-se um coração

Ricardo Labatt

Rifa-se um coração quase novo...
Um coração idealista. Um coração como poucos. Um coração à moda antiga.
Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu usuário.
Rifa-se um coração que, na realidade, está um pouco usado, meio calejado, muito machucado e que teima em alimentar sonhos e cultivar ilusões. Um pouco inconsequente, que nunca desiste de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração que acha que Tim Maia estava certo, quando escreveu: “...não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso é que eu espero...” Um idealista. Um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende. Que não endurece, e mantém sempre viva a esperança de ser feliz, sendo simples e natural. Um coração insensato que comanda o racional, sendo louco o suficiente para se apaixonar. Um furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras. Rifa-se um coração que insiste em cometer sempre os mesmos erros. Esse coração que erra, briga, se expõe. Perde o juízo por completo, em nome de causas e paixões.
Sai do sério, e, às vezes, revê suas posições, arrependido de palavras e gestos. Este coração tantas vezes incompreendido. Tantas vezes provocado. Tantas vezes impulsivo...
Rifa-se este desequilibrado emocional, que abre sorrisos tão largos, que quase dá prá engolir as orelhas, mas que também arranca lágrimas, e faz murchar o rosto. Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes.
Um orgão abestado, indicado apenas para quem quer viver intensamente, e contra-indicado para os que apenas pretendem passar pela vida matando o tempo, defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente, que se mostra sem armaduras, e deixa louco o seu usuário. Um coração que, quando parar de bater, ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro, na hora da prestação de contas: “O Senhor pode conferir, eu fiz tudo certo. Só errei, quando coloquei sentimento. Só fiz bobagens, e me dei mal, quando ouvi este louco coração de criança, que insiste em não amadurecer, e se recusa a envelhecer”.
Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro que tenha um pouco mais de juízo. Um órgão mais fiel ao seu usuário. Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga. Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, mas que incomoda um bocado. Um verdadeiro caçador de aventuras, que ainda não foi adotado, provavelmente, por se recusar a cultivar ares selvagens, ou racionais. Por não querer perder o estilo.
Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. Um simples coração humano. Um impulsivo membro, de comportamento até meio ultrapassado. Um modelo cheio de defeitos que, mesmo estando fora do mercado, faz questão de não se modernizar, mas, vez ou outra, constrange o corpo que domina.
Um velho coração que convence seu usuário a publicar seus segredos, e a ter a petulância de se aventurar como poeta.

Voz - Elisa:

Poema das reformas

Cláudio Murilo

É preciso reformar a casa,
Abrir as janelas,
Que o vento penetre
Em todos os cantos.
É preciso destruir as cercas,
Que as crianças entrem,
Pisem nos canteiros,
Construam a sua alegria.

É preciso reformar a rua,
Que todos andem por ela.
As lojas, os bares, os cinemas
Nos mantenham assim
Unidos e em paz.

É preciso reformar a cidade.
É preciso, antes e sempre,
Reformar o homem.
É preciso despi-lo,
É preciso mostrar
Que todos somos irmãos.
É preciso um novo dilúvio.
É preciso reescrever os livros
É preciso reencontrar a terra
É preciso que uma torrente
Invada todos nós
E lave nossa alma.

Voz - Sereníssima:

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Alma-luz

Clarice Lispector

Minha alma tem o peso da luz,
Tem o peso da música,
Tem o peso da palavra nunca dita,
Tem o peso de uma lembrança,
Tem o peso de uma saudade,
Tem o peso de um olhar,
Pesa, como pesa uma ausência,
E a lágrima que não se chorou,
Tem o imaterial peso de uma solidão,
No meio de outras.

Voz - Rosany Costa:

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Encantado

El-Mara

Te espero, feito namorada debruçada no portão
a cada sombra coração em sobressalto
mas tu não vem
meus olhos seguem dia após dia
a mesma trilha o mesmo desejo
o mesmo sonho, encontrar-te
a tarde finda
a noite traz o abraço frio
mas tu não vem
noite após noite
o mesmo sonho
vejo teu rosto teu sorriso
sinto teu calor, teu beijo
te sinto,
tão real tão meu tão nós
indicas o caminho da espera
te espero,
mas tu não vem
és tu amor da noite?
te espero.

Voz - Elisa:

sábado, 25 de dezembro de 2010

Inscrições I

Helena Antoun

Era impressionante o esforço que eu fazia
Durante o banho
Para que não saísse a marca de batom
Cuidadosamente carimbada pelos lábios de minha mãe,
No dorso de minha mão.
Era um ritual só nosso.
Ela se aprontava para o trabalho
E eu, ainda tão pequena,
Acompanhava todos os seus movimentos
Com a devoção de um torcedor na arquibancada.
Quando ela estava pronta, pegava minha mão esquerda
(a do coração, dizia)
E suavemente, ali, selava seus lábios em batom.
Chamávamos isso de
‘Beijinho pra marcar’.
Não se admitia a possibilidade
De minha mãe sair
Pra onde quer que fosse
Sem que deixasse registrada
A sua presença em mim,
Através das cores e perfumes
De seus mais variados batons.
Era tão lindo, cheiroso e perfeito o contorno de sua boca...
Essa cumplicidade era de tal
Relevância em minha vida,
Que eu zelava com fervor religioso
Para que a marca perdurasse,
Até o momento do retorno de mamãe,
Quando, orgulhosa, eu lhe mostrava
O cuidado que dispensara aos seus lábios.
Na sesta,
Eu deitava com as mãos pra cima,
Segurando o espaldar da cama
De modo a recordar, mesmo durante o sono,
Que ali havia algo precioso
A ser preservado.
Ao me dar banho, Rutinha já sabia
Da proibição de tocar
Naquela área sagrada do meu corpo.
E creio que,
Por mais respeito aos lábios de mamãe
Do que a mim,
Ela seguia as determinações,
Com obediência canina.
Até hoje,
Quando olho minhas mãos,
Vejo a marca indelével
Da tatuagem feita pelos lábios de mamãe, em minha alma.

Voz - Helena Antoun:

Poema de Natal

Vinicius de Moraes

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

na minha voz:

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Canção das mulheres

Lya Luft

Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços, sem fazer perguntas demais.
Que o outro note quando preciso de silêncio, e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos, porque estou quieta.
Que o outro aceite que me preocupo com ele, e não se irrite com minha solicitude, e, se ela for excessiva, saiba me dizer isso com delicadeza, ou bom humor.
Que o outro perceba minha fragilidade, e não ria de mim, nem se aproveite disso.
Que, se eu faço uma bobagem, o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices, tantas vezes.
Que, se estou apenas cansada, o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.
Que o outro sinta quanto me dói a idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco, em lugar de voltar logo à sua vida.
Que, se estou numa fase ruim, o outro seja meu cumplice, mas sem fazer alarde, nem dizendo ''Olha que estou tendo muita paciência com você!''
Que, quando, sem querer, eu digo alguma coisa bem inadequada, diante de mais pessoas, o outro não me exponha, nem me ridicularize.
Que se, eventualmente, perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro, ainda assim, me ache linda, e me admire.
Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite, quando não estou podendo ser nada disso.
Que, finalmente, o outro entenda que, mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser, a mulher maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa - uma mulher.

Voz - Rosany Costa:

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Carta de São Paulo aos Corintios

(Paulo de Tarso)

Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e dos anjos, se eu não tivesse o amor, seria como o sino, ruidoso, ou como o címbalo, estridente. Ainda que eu tivesse o dom de profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência. Ainda que eu tivesse toda fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse o amor, eu não teria nada. Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos. Ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse o amor, nada disso me adiantaria.
O amor é paciente. O amor é prestativo. Não é invejoso. Não se ostenta. Não se enche de orgulho. Nada faz de inconveniente. Não procura seu próprio interesse. Não se irrita. Não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça. Mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa. Tudo crê. Tudo espera. Tudo suporta.
O amor jamais passará. As profecias desaparecerão. As línguas cessarão. A ciência também desaparecerá. Pois nosso conhecimento é limitado. Limitada, também, é nossa profecia. Mas, quando vier a perfeição, desaparecerá o que é limitado.
Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei adulto, deixei o que era próprio de criança. Agora, vemos como em um espelho, e de maneira confusa. Mas, depois, veremos, face a face. Agora, meu conhecimento é limitado. Mas, depois, conhecerei, como sou conhecido. Agora, portanto, permanecem estas três coisas: a fé, a esperança, e o amor. A maior delas, porém, é o amor.
Voz - Sereníssima:

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Meu avesso

Paula Xavier

Não sou pura, nem indecente,
Nem tão meiga e tolerante,
Altruísta e diferente,
Nem bela, feliz, nem carente.
Tenho manhas, uso senhas,
A voz se altera, às vezes doce,
Outras, arranha.
Sou mulher comum que
Ama, ri e também chora.
Quero o meu avesso exposto,
Como as rugas do meu rosto,
Para não me exigires outra conduta.
Quero respeito por meus defeitos,
Tolerância por minha ignorância.
Quero querer, sem te ofender,
Me vestir de trapos,
Andar descalça,
Os cabelos prender,
E, ao meu apetecer,
Ficar cintilante,
Bonita e elegante,
Sem me desculpar,
Sem te machucar.
O meu avesso irá mostrar
O que não quiseste olhar.

Voz - Elisa:

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Navio Negreiro

Castro Alves

I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir...
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer...
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...

VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Voz - Helena Antoun:

Madrigal melancólico

Manuel Bandeira

O que eu adoro em ti
Não é a tua beleza.
A beleza é em nós que existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti é a vida!

na minha voz:

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Com sabor de manga

Rosany Costa

A noite esvai-se. Escoa...
No horizonte os últimos vestígios de escuridão mesclam-se com o purpúreo.
Volto mais uma vez meu olhar para a velha mangueira.
A mesma mangueira que em noites de lua cheia ganha de adorno um halo prateado que a faz para mim, única!
Efeito desta lua que por detrás surge cingindo-a de um prateado singular, como se entalhada estivesse sobre o céu.
Aproximam-se o outono e outra lua cheia...
Ainda restam alguns frutos nesta minha amiga, que até a pouco estava carregada, pujante.
Logo não haverá mais mangas (Bourbon). E ela continuará linda, altaneira, imponentemente esperando pelas luas cheias...
E continuaremos a ter nossas longas conversas pela madrugada. Ela, eu e a lua cheia...
Somos três senhoras confidentes. Uma cheia de luz, outra cheia de frutos e a outra repleta de amor.
Temos fases, atravessamos estações e de certa forma estamos eternizadas.
A lua pelo desde sempre admirada e decantada.
Eu e minha velha amiga mangueira pelos frutos dados, por nossas sementes plantadas.

De súbito penso em tantas maravilhas que meu olhar desfruta, absorve, retêm.
Coisas que enternecem minha alma e delicadamente, suavemente contagiam-me fazendo com que deseje partilhar momentos tão sublimes.
Posso descrevê-las, relatá-las e tão somente isso.
Não.
Pode ser mais.
Somos mais!

As saberás através do meu olhar.
As sentirás pela emoção com que eu as relatar.
As tatearás pela minha voz e as verás com a tua sensibilidade.
Já desfrutamos tanto juntos e sob o mesmo olhar...
Cumplicidaremos através do amor.

Bom dia estrela-guia.
Bom dia vida.
Bom dia meu amor!
Bom dia minha vida!
Recebe meu beijo com sabor de manga...

Quem sabe... algum dia!
A lua, a mangueira, tu e eu.
Quem sabe... um dia...
Um beijo com sabor de manga!

Voz – Rosany Costa:

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A arte de ser feliz

Cecília Meireles

Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros, que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Voz - Sereníssima:

sábado, 11 de dezembro de 2010

Noturno

Ariano Suassuna

Têm para mim Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.

Será que mais Alguém vê e escuta?

Sinto o roçar das asas Amarelas
e escuto essas Canções encantatórias
que tento, em vão, de mim desapossar.

Diluídos na velha Luz da lua,
a Quem dirigem seus terríveis cantos?

Pressinto um murmuroso esvoejar:
passaram-me por cima da cabeça
e, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
a ventania me agitando em torno
esse cheiro que sai de teus cabelos.

Que vale a natureza sem teus Olhos,
ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?

Da terra sai um cheiro bom de vida
e nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mãos…

Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Águas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.

Ó meu amor, por que te ligo à Morte?

Voz – Elisa:

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Olhe ao redor

Clarice Lispector

Olhe para todos a seu redor, e veja o que temos feito de nós.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não entendemos, porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas, coisas e coisas, mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga, e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos, diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar, mas sem usar a palavra salvação, para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor, para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte, para tornar nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte, por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado, com falso amor, a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.
Temos disfarçado, com o pequeno medo, o grande medo maior, e, por isso, nunca falamos o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado, por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingênuos, para não rirmos de nós mesmos, e para que, no fim do dia, possamos dizer "pelo menos não fui tolo", e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza, a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E, a tudo isso, consideramos a vitória nossa de cada dia.
(Homenagem aos 90 anos de nascimento de Clarice Lispector - 10/12/1920 -, que nasceu Haia Pinkhasovna Lispector.)
Voz - Rosany Costa:
:

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Em mim também

Olavo Bilac

Em mim também, que descuidado vistes,
Encantado e aumentando o próprio encanto,
Tereis notado que outras cousas canto
Muito diversas das que outrora ouvistes.

Mas amastes, sem dúvida ... Portanto,
Meditai nas tristezas que sentistes:
Que eu, por mim, não conheço cousas tristes,
Que mais aflijam, que torturem tanto.

Quem ama inventa as penas em que vive;
E, em lugar de acalmar as penas, antes
Busca novo pesar com que as avive.

Pois sabei que é por isso que assim ando:
que é dos loucos somente e dos amantes,
na maior alegria, andar chorando.

Voz – Eduardo Cunha:

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O laço de fita

Castro Alves

Não sabes, criança? 'Stou louco de amores...
Prendi meus afetos, formosa Pepita.
Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?!
Não rias, prendi-me
Num laço de fita.

Na selva sombria de tuas madeixas,
Nos negros cabelos da moça bonita,
Fingindo a serpente qu'enlaça a folhagem,
Formoso, enroscava-se
O laço de fita.

Meu ser, que voava nas luzes da festa,
Qual pássaro bravo, que os ares agita,
Eu vi de repente, cativo, submisso
Rolar prisioneiro
Num laço de fita.

E agora, enleada na tênue cadeia,
Debalde, minh'alma se embate, se irrita...
O braço, que rompe cadeias de ferro,
Não quebra teus elos,
Ó laço de fita!

Meu Deusl As falenas têm asas de opala,
Os astros se libram na plaga infinita.
Os anjos repousam nas penas brilhantes...
Mas tu... tens por asas
Um laço de fita.

Há pouco voavas na célere valsa,
Na valsa que anseia, que estua e palpita.
Por que é que tremeste? Não eram meus lábios...
Beijava-te apenas...
Teu laço de fita.

Mas ai! findo o baile, despindo os adornos
N'alcova onde a vela ciosa... crepita,
Talvez da cadeia libertes as tranças
Mas eu... fico preso
No laço de fita.

Pois bem! Quando um dia na sombra do vale
Abrirem-me a cova... formosa Pepita!
Ao menos arranca meus louros da fronte,
E dá-me por c'roa...
Teu laço de fita.

Voz – Rita de Cássia:

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Dona Zita

Dora Brisa

No armazém da dona Zita
- legítima portuguesa –,
Vende-se e compra-se
Bacalhau e Vinho do Porto: “uma riqueza”.
Dona Zita vem me atender
- expressão arredia –,
Arregala os olhos para crer:
Falo português – que alegria!
Nostálgica, penso em voz alta:
“Ao monte alto o Capitão
Deu o nome de Monte Pascoal;
E à terra, Terra de Vera Cruz (...)”
Dona Zita me olha interrogativa.
- É frase de uma carta
De um tal Pero Vaz de Caminha
- respondo evasiva.
(Ela não tem obrigação
de saber. Afinal, Caminha
não endereçou a carta à dona Zita.)
A portuguesa me pede
Notícias do “nosso Brasil”,
Com o mesmo brilho no olhar
(será?)
Que um dia encantou-se um tal Cabral.
- Lembra os índios brasileiros, dona Zita?
Quase todos extintos.
Mas o Brasil tem muitos “brancos” e negros
Que perfuram as orelhas,
O umbigo, as narinas, as sobrancelhas,
Os lábios, e até a língua,
Onde penduram o que chamam “piercing”.
- Tem mais, dona Zita:
Hoje, negros e “brancos” brasileiros
Também pintam o corpo,
Como faziam os índios com urucum.
É moda.
Chamam tatuagem.
De repente, ouço um fado:
Amália Rodrigues?
Não.
É a alma de dona Zita
Que canta baixinho,
E suavemente se agita.
- Quer saber dos negros,
Bondosa portuguesa?
(negros que os seus patrícios
vilipendiaram com escravidão)
No “nosso Brasil”,
Ainda sofrem discriminação.
Como na África – resistem.
Ganha todo o povo brasileiro,
Que tem samba, capoeira,
Feijoada, vatapá,
Até Candomblé
(com a benção de
todos os Orixás).
- Futebol brasileiro, dona Zita?
Anda mal das pernas.
Não temos mais Pelé
(negro também).
Os jogadores perderam a agilidade,
Com o peso do dinheiro nos bolsos.
Nos estádios lotados,
Carregam mulheres louras
(Marias-chuteiras)
E carros importados.
- As crianças e os velhos
Do “nosso Brasil”?
Mudemos de assunto, dona Zita.
(Por favor, senhora,
não me obrigue relatar as
atrocidades cometidas
contra os filhos de ninguém.)
Apesar de e por tudo,
Dona portuguesa,
Brasileiro é um povo
Bem-humorado,
Faz piada dos portugueses,
Com quem sente afinidade.
(A propósito, a senhora
conhece aquela piada da bicha
no consultório do urologista?
Melhor não contar.)
Brasileiro é trabalhador
(pode acreditar, dona Zita):
Planta, colhe,
Só não tem o que comer.
Por isso, alimenta a alma
Sempre com um sorriso
- às vezes banguela -,
Recebendo o estrangeiro
De praias e braços abertos,
Rindo da própria desgraça;
(Não vou entristecê-la mais,
contando que a minha terra
está ficando sem palmeiras,
nem sabiá.
Por isso, as aves não
gorjeiam mais lá.)
Inesperadamente,
Pressinto o encontro das águas
Do Tejo com o Amazonas,
O Araguaia, o Guaíba,
O Velho Chico, o Parnaíba.
Recolho minhas lágrimas refletidas
No Velho Tejo que transborda.
Saio do armazém
Com a sensação de ter deixado
Dona Zita cantando um saudoso fado,
Às margens do Alentejo.
Volto para casa sentindo-me
(mais uma vez)
descoberta.
Ah, que vontade que dá
De voltar para o “nosso Brasil”,
E esperar por Cabral.
Ele poderia, dessa vez,
Levar dona Zita.
(Quem sabe?)
Pois, pois...

(Há pouco, recebi esse presente de minha mãe africana - Paula -, de Angola. Por isso, a exceção de postar a gravação de um rabisco meu, neste mês especial.)

Voz - Paula Xavier:

sábado, 4 de dezembro de 2010

Navegar, Navegar

Ivan Goffi

Fiz de minha vida um navio
E de meus sonhos, profundo mar
Lancei meu navio na água
E deixei o vento o levar
A brisa que sopra mansa
Acalenta as ondas do mar
E por mais que ele balance
Seu controle há de voltar
Voltar para as mãos seguras
Que norteiam meu navegar
A seguir o caminho às escuras
Sob a auréola de doce lar
E a luz que o iluminar
Com o brilho do amanhecer
Certamente vai me mostrar
As espumas do meu viver
Mas se um dia um recife aflorar
À frente desse navio
Não sei se vou suportar
Traçar mais esse desvio
Cansei-me de navegar
Cansei-me de tanto sofrer
Se é pra viver nessa mágoa
Prefiro, em vez de aportar,
Abrir com minhas mãos a água
Pra ver meu navio naufragar.

Voz - Rejane Cordeiro:

Mês plural

Durante este mês, vou postar aqui toda poesia que cada vez mais me emociona, me fascina... É a minha homenagem a tantos poetas desvairadamente sonhadores, docemente loucos, e tanta gente que ousou gravar essas poeticas almas que nos tiram do chão, nos arremessam ao abismo do nada, e nos mostram o quanto podemos voar – o impossível não existe!... São eles, e tantos outros, que inspiram minh’alma continuar respirando, transpirando...