quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Eu e minhas naturezas

Foto: Lara

Dora Brisa

I
Sou filha
De um amor louco
Da madrugada
Com o luar
Por isso o olhar
Sempre desperto
Distante do sol
Buscando nuvens
Nos holofotes das estrelas

II
A lua me bateu nos olhos
Alguém viu
No atrito
Meus olhos
Transbordaram estrelas
Ninguém viu
Nem meus olhos
Que se perderam
Na poça d’água
Que embalava a lua

III
Vivo sob a influência
Do tempo
Não esse tempo tosco
Cronometrado por relógios
Tempo que brinca com toda gente
No passar de cada hora
Seguindo lentamente
Quando já deveria ter
Ido embora

IV
O vento soprou
No meu rosto
Queria brincar
De brisa
Eu não podia
A casa estava cheia
Pessoas
Problemas
Todos os “pes”
O vento foi embora
Soprou longe
As nuvens
Que não pude ver

V
Da minha terra
Brotou a chuva
Que lavou o céu
E deixou brancas
As nuvens
Que caíram
Em outras terras
Secas
Que não eram minhas

VI
O mar banhou-me
A alma
Cheio de profundezas
Nunca mais
Perdi o gosto do sal
No doce sabor
Da minha alma
Que ainda arde
Em direção do mar

VII
Perco-me na mata nativa
Que não deixa rastros
Nem aponta caminhos
Mata menos escura
Menos fechada
Que a minha alma
Que brota em musgos
Os sonhos adormecidos
Pelo descaminho
E segue sem bússola
O silêncio da mata
Cheio de sombras

VIII
Eu sem sentido
Fiz as pazes
Com todos os sentidos
Que se rebelaram
Num repente
A visão foi tateando
A audição começou a cheirar
O tato passou a ter paladar
O olfato ouvia tudo calado
Enquanto o paladar a enxergar
De imediato
Meti os pés pelas mãos

domingo, 25 de dezembro de 2011

sábado, 24 de dezembro de 2011

Acalanto

Foto: Denise
Dora Brisa

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu fecho as cortinas, para que
o sol clareie cedo tudo só lá fora...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu leio estórias, para que
os teus medos vão embora...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu sopro o teu canto
no ar da tua realidade...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu despejo teu pranto
no baú da saudade...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu embalo teu sono
na rede da ternura...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu protejo teu sonho
da tempestade escura...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu guardo tudo o que é teu
na caixinha de corações...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu escondo debaixo
da cama, as tuas ilusões...

Dorme, criança, dorme...
Já é tarde...
Ainda tão cedo...
Os pássaros ensaiam alarde...
Também durmo - não percebo...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Por um fio

Dora Brisa

Alô?... Quer falar com quem?...
Nada de trote, por favor...
Sem essa de me chamar de ‘meu bem’!...
Afinal, quem é o senhor?...

Ricardo... Ricardo...
Desculpe por eu não lembrar...
Ex-namorado?...
Vai ser difícil adivinhar...

Ah, Ricardo!...
Resgatei na memória!...
Antigo namorado...
Faz tanto tempo essa história...

Pra você não faz tanto tempo assim?...
Oh, desculpe, por favor...
Claro que guardei em mim
Os nossos momentos de amor...

Vivíamos a volúpia da mocidade...
Como eu haveria de esquecer?...
Nossas juras, nossa saudade...
Nosso desejo de tudo viver...

Ricardo, como você amadureceu...
Até tua voz está mais grave...
Teu vocabulário também cresceu...
Um verdadeiro homem... é verdade...

Ah, não me diga isso...
Olha que eu até acredito...
Você fazia me sentir um lixo...
Eu sei... Você não gostava dos meus gritos...

Mas me conta, Ricardo:
O que você tem feito?...
Como queria, foi ser advogado?...
Nem sequer vestibular pra Direito?...

Nossa... Isso que é novidade...
Confessa: você está brincando?...
Não consigo te imaginar no centro da cidade,
Vendendo contrabando...

Eu até entendo... Confia em mim...
Está difícil ganhar a vida...
Eu?... Dou aulas de latim...
Qual era mesmo a nossa música preferida?...

Ricardo... Ah, se você soubesse...
Falando doce desse jeito,
O meu coração enlouquece,
Batendo descompassado no meu peito...

Você sempre soube me encabular...
O quê?... Nem lembro mais
O porquê de nos separar...
Não... Ninguém mais fez, ou faz...

Ah, Ricardo... Fala tudo...
Desabafa, meu amor...
Liberta esse tempo mudo...
Repete que me ama... Por favor...

Há quanto tempo eu te esperava...
O destino é sempre assim...
Quanto mais sozinha eu chorava,
Você – inteiro – se guardando pra mim...

Repete... Arrepia o meu ouvido...
Só você sabe fazer...
Todo este tempo foi castigo...
Ricardo, de amor vamos viver...

O quê?... Por que você está me chamando
De Cristina?... Seu brincalhão!...
Logo você, que vivia gritando:
- Lá vai Beatriz, meu coração...

Engano?... O que você está dizendo?...
Melhor, fica um pouco calado...
Ouve meu coração batendo:
Ricardo... Ricardo...

Você tem certeza do engano?...
Ricardo, pensa bem...
Não lembra mais daquele final de ano?...
Na barraca, só nós dois... Mais ninguém...

Desculpe... Entendi agora...
Não... Não me chamo Cristina...
Namorei Ricardo no tempo de escola...
Eu ainda sonhava... Era uma menina...

Quando sentir saudade da Cristina,
Ricardo, por favor, me ligue...
Faz eu recordar, nessa neblina,
O amor que nunca tive...

Voz - Elisa:

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Quem não sou

Dora Brisa

Não sou o tempo
Do meu tempo,
Nem ocupo o espaço
Do meu espaço.
Sou o impossível
De mim mesmo,
Vivendo o possível
De alguém que não sou eu,
Nem sabe quem é também.
Um dia, minha história
Será contada em roda
De loucos, que também
Não saberão se foram,
Ou o que não serão.
Mas tudo isso não fará
A menor diferença,
Pois tudo o que fui
Será nada do que não fui,
E o que não fui
Será tudo que era para eu ter sido.
Desacreditei de tudo
Do que acreditei ser nada,
E hoje não há nada em mim
Que me faça acreditar ser.
Tudo e nada já não me fazem
Sentido, há tanto tempo,
Que já não sei se vivo
O meu tempo real,
Ou transito por um tempo,
Passado ou futuro,
Que não me pertence,
Nem me pertenceria,
Se eu fosse eu.
Mas nem sei quem sou,
Para exigir de mim
Algum tempo que seja meu.
A verdade maior é que
Não existe verdade,
Nem mesmo a ínfima verdade
Sinalizando uma verdade maior.
Não sou, mas nem sei quem eu seria,
Porque quem quer eu fosse
Não pensaria em ser,
Por que já era,
Não seria mais eu, nem menos.
Sei que ocupo um espaço
Que não é meu,
Porque sempre estou
Onde não estou,
E tudo me leva ao nada.
Ainda que houvesse no mundo,
Um só espaço meu,
Não seria meu espaço,
Porque eu estaria ocupando
Um outro espaço, que,
Por não ser meu,
Não seria eu a ocupá-lo.
Por isso, tudo na vida me pesa,
Pesa tanto quanto uma pena,
A pena que não sinto de mim.
Porque não sou eu nas coisas todas,
E por isso a vida não me pesa,
Por que também a vida não me pertence,
Por que nem eu sei pertencer a mim mesmo.
Por que haveria a vida de pertencer-me?
Já não sei de mim,
Nunca soube do meu tempo,
Se é que tive algum tempo meu,
Ou espaço que me pertencesse.
Esse não saber, não ser, me torna
Tão vasto, que passo existir
Em tudo, em todos, em nada.
Não havendo verdade, tempo, espaço,
Eu mesmo também não existo
No tempo que não é meu,
Nem no espaço que ocupo,
Sem verdade alguma para
Proteger-me de mim mesmo,
Eu - que nem sei quem sou,
Porque não sou quem sei ser.
Eu – perdido do meu tempo,
Do espaço que nunca foi meu.
Eu – perdido de mim mesmo,
Sem saber se sou eu,
Ou um outro eu, achado por acaso,
Numa sarjeta qualquer,
Enquanto lavavam a calçada
Do prédio destruído pelo fogo
Ateado por um louco que se dizia deus,
Criador de seres perdidos.
Eu – há tanto tempo perdido,
Num tempo que não é meu,
Ocupando um espaço de outro ser,
Que nem sabe que é,
Por nunca ter sido.
Eu – que só sei cambalear
Perdido de mim mesmo,
Sem saber quem sou eu,
Nem quem eu poderia ter sido,
Se eu soubesse de mim,
E não fosse quem sou,
Porque quem sou não sou eu,
Nem quem eu imaginaria ter sido,
Se um dia quisesse ser eu...

domingo, 11 de dezembro de 2011

Procissão

Dora Brisa

Minha nega, acenda a lareira,
Que teu nego vai chegar.
Estou descendo a ladeira,
Tão só, cansado de caminhar.
Prepara a espreguiçadeira,
Porque tenho tanto pra te contar.

Imagino teu sorriso brejeiro,
Dizendo que não foi tanto tempo assim.
Minha nega, você não sabe do nevoeiro
Que há depois do Monte Sem-Fim.
Em cidade grande, tudo é ligeiro,
Abrindo feridas profundas, como essas em mim.

Você compreende, minha nega, a vontade
De ir ardia mais e mais no peito.
Era qualquer coisa de saudade,
Que não tive outro jeito.
Depois, ainda tinha a tal curiosidade
De tudo conhecer, saber direito.

Já te contei tantas vezes a mesma história:
Meu velho trabalhava lá, na cidade grande.
As imagens mais coloridas da minha memória
São do meu pai voltando, tocando o berrante.
Minha mãe largava a semeadura da chicória,
E corria, ladeira acima, comigo no peito arfante.

Meu velho falava horas, dias sem parar,
Contava que na cidade tudo era lindo,
As pessoas eram boas, só sabiam amar.
O tempo passava, e meu pai já estava indo
Novamente à cidade trabalhar.
Eu ficava com minha mãe, sonhando, sorrindo.


Até que um dia meu pai não mais voltou.
Minha mãe ficou no pé da ladeira,
Esperando, esperando, até que chorou.
Imaginei meu pai fazendo brincadeira,
Mas a realidade dura chegou,
Minha mãe não mais sorriu, nem acendeu a lareira.

Desde sempre, minha nega, você sabia,
Eu precisava conhecer onde meu pai trabalhava.
Fui lá, não acreditava no que via.
Hoje sei, em tudo o que o velho falava,
De real, só o nome da cidade existia.
Meu pai não nos queria tristes, e tudo fantasiava.

Lá longe, minha nega, onde chamam cidade,
Teu nego foi cuspido, pisoteado.
Lá em cima, minha nega, não existe bondade,
E o poder está com quem vive armado.
Lá, minha nega, alta sociedade
É sinônimo de valor vendido, trocado.

Vi muito cachorro de madame
Desfilar com empregados pela calçada,
Enquanto comia lixo o mendigo infame.
Vi cães e gatos com alimentação balanceada,
Trabalhadores sem segurança caindo de andaime,
Gente infeliz rebolando em roupa apertada.

Tinha gente com cara tão esticada,
Minha nega, se você visse,
Se desse uma só gargalhada,
Provavelmente a costura se abrisse.
Se a fantasia fosse rasgada,
Desconhecido seria o espectro que surgisse.

Nas praças, o lago está sempre cheio
De crianças a brincar,
Pombos circulam pelo meio,
Dividindo os restos de comida do lugar.
De repente, a polícia chega em tiroteio,
Espanta os pombos, e contra os meninos sai a atirar.

Minha nega, de onde eu desço,
É preso e torturado, o pobre que rouba um pão.
O pior de tudo, isso não esqueço,
É a idolatria aos que roubam mais de um milhão.
Se tudo naquela cidade tem um preço,
Dignidade está sempre em liquidação.

Teu nego retorna cansado,
Querendo nos teus braços tudo esquecer.
Minha nega, prepara aquele refogado
Que só você sabe fazer.
Teu nego passou frio, fome, volta mais magro,
Triste, desiludido, vivo só pra você.

Queria tanto te trazer alegria,
Histórias verdadeiras de um mundo bonito,
Mas o que trago no peito é a agonia
Que dói em desilusão, sem um grito.
Todo aquele tempo, tua alma eu via,
Só queria voltar, cada vez mais aflito.

Desço a ladeira finalmente,
E tudo aqui me parece tão mais claro,
Apesar da noite escura, vejo tudo calmamente,
Até nosso barraco, lugar tão raro.
E saber que estou voltando me faz tão contente,
Minha nega, mesmo exausto, não paro.

Você já deve estar dormindo,
E o teu sonho vai chegando.
Quando a porta eu estiver abrindo,
Tenho certeza, tua felicidade irá despertando.
Minha nega abrirá os braços sorrindo,
Enquanto minha alma em pedaços estará chorando.

Ficaremos um tempo abraçados, emudecidos,
Depois misturaremos dores, saudades, emoção.
Trocaremos olhares enternecidos,
Falaremos tanta coisa desconexa, sem razão.
Aos poucos, os olhos ficarão umedecidos,
A todos os sentimentos dando vazão.

Sentarei contigo no colo, junto à lareira,
Evitando contar fatos da cidade.
Perguntarei do pomar, do jardim, da horta, da palmeira.
Depois, farei minha nega sorrir a maior felicidade:
Precisamos saber onde mora uma parteira,
Porque vamos ter um filho. É verdade.

Neste momento, pode ser até que eu não diga,
Mas não quero filho nosso subindo o Monte Sem-Fim.
Vamos fazer melhor: Cercamos tudo com arame e urtiga.
Precisamos proteger nosso filho. Acredita em mim.
Não quero um neguinho depois desiludido, cheio de ferida.
Minha nega, nossa família será feliz assim.

Ah, eu já ia quase esquecendo,
Minha nega, o teu presente:
Um vestido de chita que só vendo.
Você vai abrir o embrulho num repente,
Cada vez mais se surpreendendo,
Vai perguntar o que acho, com o vestido à tua frente.

E vamos, junto à lareira, dançar,
Minha nega com seu novo vestido,
E o nego com nova alma a respirar.
O resto lá em cima esquecido,
Nada mais a lembrar, chorar.
Só por isso, valeu ter sobrevivido.

Minha nega, pode acreditar,
Nessa ladeira, não há cansaço.
Quanto mais desço a imaginar
Teu beijo, tua saudade, teu abraço,
A ladeira fica macia, ajuda o andar,
E coisa mais leve não há que o meu passo.

Agora falta pouco descer,
O nosso barraco já consigo enxergar.
Apesar do escuro a entontecer,
Surgem a porta, as janelas alumiando o meu olhar.
Com toda luz, minha imaginação traz você,
Que corre em minha direção a me abraçar.

Num soco, sou tragado pela realidade:
Tem tiroteio lá em cima, por onde passei.
Desço correndo, fugindo da cidade,
Lembrando e chorando tudo o que penei.
Mais tiros que vêm da atrocidade
Daquele mundo desumano, sem lei.

Minha nega, eles estão descendo,
São muitos chegando perto.
Estou no final da ladeira correndo,
Nenhuma árvore pra me fazer encoberto.
Eles continuam atirando, o chão estremecendo,
E eu mais uma vez fugindo de olho aberto.

As costas me ardem por um momento,
Depois do mais forte estampido.
Curvado, arrasto o corpo no tormento.
O nosso barraco à minha frente, vivo.
Tento levantar o braço, um só movimento,
Seguro o mais que posso o pacote com teu vestido.

De repente, a porta fechada,
Minha nega acendendo a lareira,
Nós dois abraçados na madrugada,
Trocando saudades, lágrimas, falando de palmeira,
Fazendo planos, filho, a noite enluarada,
Minha nega dançando com vestido de chita, toda faceira.

Perdão, minha nega, por tudo na vida:
Perdão por eu ter chegado sem avisar,
Perdão pelo meu sangue no teu vestido de chita,
Perdão por mais uma vez eu te fazer chorar,
Perdão pelo filho que não deixei na tua barriga,
Perdão por eu ter voltado, e não poder mais te abraçar.

Música - Encruzamares - Márcio Arruda/Voz - Reinadi Sampaio:

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Tempus Fugit

Foto: Denise
Dora Brisa

Um dia,
Eu morrerei,
Tu morrerás,
Ele morrerá,
Nós morreremos,
Vós morrereis,
Eles morrerão.
Assim mesmo:
Num dia qualquer,
Numa noite qualquer.
Não importa.
Morreremos – todos.
No primeiro dia,
Chorarão a nossa morte,
Em lágrimas de saudade
E arrependimento.
No centésimo décimo sexto dia,
Lembrarão a nossa morte,
Na justificativa de um
Fracasso qualquer.
No milésimo centésimo terceiro dia,
Saberão a nossa morte,
Com a curiosidade turística
Do olhar que visita terra estranha.
No milionésimo vigésimo oitavo dia,
Já não chorarão, nem lembrarão a nossa morte.
No meio de entulhos ignorados pelo tempo,
Alguém (sem saber) guarda a nossa existência.
Displicentemente.

domingo, 27 de novembro de 2011

Amnésia

Dora Brisa

Quando aqui cheguei,
Percebi que tinha perdido algo
(a memória? talvez!).
Esqueci que amor hoje
Pode ser indiferença amanhã,
Que revolta pode ser
Egoísmo simplesmente,
Que a vida pode representar
Somente nascer, viver, morrer.
Quando aqui cheguei,
Não sabia mais nada,
Nem que a inveja pode
Apresentar-se vestida de admiração,
Nem que a falsidade pode
Esconder-se no reflexo de doçura,
Nem que muitos castelos, casarões podem
Ser refúgio de máscaras familiares,
Nem que a luz pode esconder a escuridão.
Quando aqui cheguei,
Havia esquecido que,
Assim como se vive por amor,
Também se mata - se morre - por ele.
Eu - juro - não sabia
Que uma inofensiva faca de cozinha
Pode cortar mais que uma cebola.
Eu tinha esquecido que um olhar
Pode brilhar também de raiva.
Quando aqui cheguei,
Não pude ensaiar
Meu primeiro passo:
Simplesmente tropecei
Dentro de mim,
Embaracei - perdi -
O fio da meada,
Porque não havia memória,
E o pouco do nada esqueci.
Quando aqui cheguei,
Segui a marginália errante,
Que busca perguntas,
Rejeita respostas,
Foge do que alumia,
Salvando-se no colo da escuridão.
E já não me faz falta a memória,
Esse saber que nunca tive,
Porque a loucura não me deixa só na história.

Voz - Helena Antoun:

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Vida de artista

(presente do amigo Guilherme: “procura-se a autoria, para agradecer a foto, e pedir licença para mantê-la publicada”)

Dora Brisa

... e a vida é só isso: tudo. Nada...
... Nascer artista não é dom – é sina... Nascer artista é morrer para o que chamam 'normalidade'... Não se pode nascer e crescer artista (por que outro destino não há), sem se pagar um preço muito mais alto, se comparado àqueles que se reduzem à maioria...
O artista pode até se rebelar à sina, decidindo (achando que pode mesmo) ser 'normal' – jamais o será... Simplesmente por que continuará sendo artista – às vezes desleixado, outras parecendo desinteressado, ou até demonstrando sensibilidade exacerbada, a qual pode ser questionada e até mal-interpretada pelos demais (que não são artistas).
Para quem assiste, artista é atraente, por que parece viver na excentricidade – o que nada mais é que a falta de jeito no lidar com o mundo, pelo menos o mundo da 'normalidade'. Para o público e os fãs, artista não chora, não sofre, não come, não tem cefaléia, diarréia, dor de dente, não bebe, nem faz xixi – tudo é cênico, inclusive e principalmente a (miserável) vida de artista. Por isso, a criação de revistas de fofocas, por todo País, é hoje investimento sempre seguro: todo mundo quer saber dos artistas – não da vida (sina) deles, mas da aguçada imaginação daqueles fofoqueiros de plantão que resolveram melhorar de vida, às custas de vidas que nem existem.
Para quem convive com os artistas, não há nada excêntrico; pelo contrário, o cotidiano (natural à maioria) pesa nos ombros do artista. Artista vive de amores e horrores – ilusões e decepções... E isso é tudo na sina do artista, por que o resto é recheio disso – ora um tanto amargo, ora mais adocicado, mas sempre ficando um mal-estar na alma do artista... Quem convive, sabe: artista não suporta calculadora, nem cadernos de economia, política, futebol. Artista lê até classificados, quando acabam os cadernos de cotidiano e cultura. Anúncios fúnebres? Nem pensar. Artista já sofre, mesmo antes de nascer – não aguenta saber a morte dos que nem nasceram para a anormalidade do existir.
Artista tem tantas vidas, tantas quantas humanas... Tem aquela que ele nasce – artista. Tem aquela que ele sonha. Tem aquela que ele observa. Tem aquela que ele imagina. Por isso, artista é feito a ferro e fogo, forjado nesta vida, que é única.
Artista é atemporal. Fora do (seu) tempo e do (seu) espaço, ele vive o que acha que é viver... Mas o artista não pára para pensar nisso, não: ele vive além ou aquém do tempo, do espaço. O artista nunca parece estar onde está, por que onde ele está é além de onde está. O artista se debruça nas entrelinhas, como o pescador a observar o mar... E este momento é único – tudo do nada do existir...
Artista está sempre em desequilíbrio: ou se esforça, forjando uma vida que parece ser sua, ou nem levanta da cama, em dia de sol e compromissos lá fora. Oito ou oitenta: de outra forma, artista não sobrevive... Antes mesmo de nascer, sabia que ia ser assim: um dia a mais, um dia a menos... Mas artista não conta os dias, nem as emoções. Artista vive, mas nunca está seguro disso. Há momentos em que, fazendo uma coisa qualquer – tão humana, tão igual -, o artista se depára consigo mesmo, e se estranha, e se admira. Num simples prato culinário, o artista se enxerga: artista, desprovido de qualquer outra vida, senão a sua própria arte. E ninguém mais testemunha a existência do artista, neste instante.
Para quem o conhece, o artista até parece 'normal', mas, dentro dele, no fundo da alma que lateja, a vida é assombro, êxtase – o tempo inteiro... Artista não consegue se recolher numa concha, e amar uma só criatura, contentar-se com os descendentes de sangue. Não. Simplesmente por que artista ama a humanidade inteira. Artista carrega dentro da alma, muitas vidas, muitos amores – por isso, colocam-no, quase sempre, no palco da promiscuidade. Mas artista quer conhecer mais que muitos corpos. Artista quer reconhecer, na emoção do outro, a própria emoção do existir. Artista quer dar e receber amor de tanta diferente gente, como já cantou o poeta.... Por que artista é um tumor inflamado de tanto amor pela humanidade. Mas isso não serve nem para justificar a falta de regra na vida (sina) do artista.
Artista é injustificável, por que não mora no seu próprio mundo – mora no mundo vizinho, onde existem leis que só reconhecem deveres, não direitos à vida. Neste mundo vizinho, onde o artista foi despejado, só se ama verdadeiramente uma pessoa de cada vez. Mas o artista não tem tendência à poligamia – ele só quer continuar amando toda a humanidade, sentindo as emoções que fluem das almas. O artista quer sentir vida, mesmo no mundo vizinho. O artista só quer continuar sonhando que, no fundo da alma humana, todos sentem, se emocionam e também querem mudar o mundo. Enquanto isso, o artista tenta adormecer, por alguns momentos, sonhando – acordado ainda – que amanhã será outro dia. Mas o dia acorda – como todos os outros dias – com cara de insônia.
... e a vida é só isso: tudo. Nada...

domingo, 20 de novembro de 2011

Despedidas

Dora Brisa

Não deveriam haver despedidas -
Nem nas estações rodoviárias e ferroviárias,
Nem nos portos e aeroportos...
Nos cemitérios - apenas um até breve...
Não deveriam ser permitidas
As longas viagens de separação...
Não mais despedidas de grandes amores,
Sequer as pequenas dores...
Não deveriam ser permitidos
Os adeuses encharcados de lágrimas,
Nem tampouco o beijo apressado (amargo),
Com gosto de despedida...
Não deveriam ser permitidos
O choro de quem fica
E o silêncio de quem parte,
Sem saber se vai voltar...
Não deveria ser permitida
A construção de estradas
Que separam, distanciam, desviam corações...
Por lei, deveria ser permitida - tão-somente -
A viagem de quem não segue sozinho...
Toda bagagem deveria conter,
Obrigatoriamente,
Todo sentimento - coração -,
Para quando longe fosse aberta,
Surgissem a família, os amigos,
E até um pouco de chão...
Muitas árvores, passarinhos...
Um colo, uma mão amiga,
E tudo o que se mereça para ser feliz...
Para repouso, uma canção de ninar...

Voz - Sereníssima:

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sonetto

Foto: Denise
Dora Brisa

Toda madrugada sem par,
Depois que adormeço,
Vem um pássaro cantar,
Na fresta de vida em que escureço.

Canta canção triste,
Dor profunda a desamparar.
Tanto, tanto insiste,
Que dói em mim, sem cessar.

O pássaro leva meu sonho,
Para longe, bem longe, enfim.
Sem mais cantar, voa tristonho.

Nada mais resta em mim:
Eu fico sem canto, sem sonho,
E acordo cantando triste assim.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Anima

Dora Brisa

Hoje, sinto estar plena,
Plena de mim,
Plena em mim,
Plena comigo.
Fiz o que pude,
E o que não pude, também.
Se não fiz o que
Os outros desejavam,
Foi por não saber fazer,
Ou por não querer fazer,
Ou não querer saber fazer,
Ou nem lembro mais por quê.
Só não fiz o que
Dependia do outro, dos outros.
Se não foi feito,
Faltou o outro
(E eu a esperar).
Muitos não me compreenderam
(Nem eu me compreendo).
Alguns compreenderam-me pouco,
E assustaram-se
(Também, eu me assusto comigo).
Sonharam muitos sonhos,
Para mim
(Esqueceram de acordar-me).
Traçaram destinos,
À revelia da minha vida predestinada
(E eu em desatino).
Quiseram-me obediente,
Até previsível
(E eu fascinada pelo impossível).
Podaram minhas asas,
De onde nasceram
Sonhos que não voam.
Tentei falar-lhes,
Pelo idioma humano,
Mas sou indomável às palavras.
Das vidas que não vivi,
Restou-me dor dilacerante,
Ancestral!...
E o que sei é que guardo
Lembranças do que viverei,
E isso dilacera de dor,
As minhas memorias mais antigas.
Por isso, também,
Sinto-me plena,
Tão plena,
Que poderia morrer,
Nesta madrugada
Mais plena que eu,
E menos fria.
E não haverá vida
Que saiba da vida minha...

Voz - Rosany Costa:

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Fio da navalha

Dora Brisa

“Por ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar
o abismo de que sou feita.” (Clarice Lispector)

Um final de dia insosso, como o é o outono, em todos os seus lânguidos dias e noites. Restam apenas o fragor do verão e o prenúncio do frio que traz o inverno. Em passos lentos, dirijo-me ao banheiro, como quem carrega poucas roupas numa valise, procurando um só vagão na estação de trem.
Não havia planejado, mas desejo agora imergir em água morna. O desejo de tornar-me liquefeita toma conta de mim. Com certa violência – eu, que detenho em mim, gestos imperceptíveis -, começo a encher a banheira de água límpida, translúcida, vaporizando o azulejo frio e rijo do banheiro.
Ouvindo o barulho da água que jorra na banheira ainda fria, tiro do meu corpo, o vestido simples que cobriu-me do meu dia já vivido – passado. Na calcinha, uma fraca nódoa vermelha. Detenho-me na água viva que jorra, na qual banharei minha vida.
Nua, diante do espelho que circunda a banheira, deixo-me inundar pelo sentimento mais humano que prevalece: piedade. Enxergando além do corpo, com a largueza que o vapor da banheira me dá, penso nas tantas vidas vividas por este só corpo só. E é pelo espelho que vejo cair, timidamente, uma gota vermelha. E mais outra.
Quando baixo o olhar, agora rendido pela realidade, que – dominadora – se sobressai, o que vejo é um filete vermelho a escorrer na minha coxa direita. Sangue. Do meu corpo, desliza um tênue fio de navalha cortante. O mesmo sangue que escorre dentro do meu corpo, que se perde em veias, vasos, artérias, brota agora para fora de mim, como se não houvesse mais espaço lá dentro para tanta vida vermelha.
Aos poucos, o filete se alarga, e já não mais escorre somente pela coxa direita. Busca outros caminhos na coxa esquerda. E o que vejo agora é minhas pernas banharem-se de um vermelho vivo, viscoso. Meus olhos rendem-se ao vermelho cintilante, e também eu inundo-me da vida que verte de dentro de mim. No tapete, uma gota de sangue sobrepõe à outra. E mais outra.
Nada mais sinto. Neste instante único, esfacelo-me em gotículas de glóbulos brancos e vermelhos, que abandonam meu corpo íntimo, entregando-se ao primeiro capacho que as acolhe. Gota a gota.
Lentamente, uma hemorragia caudalosa se forma junto aos meus pés. Enquanto implora o que ainda não entendo, mais e mais sangue jorra de dentro de mim. Já não são gotas que juntam-se umas às outras. Rompem-se todas as comportas, e não há outro jeito, senão aceitar silenciosamente o correr das águas do rio, que retornam finalmente ao leito de origem – o chão frio, agora coagulado.
Água pura vem unir-se à pequena e presente poça de sangue. Detenho-me a olhar minuciosamente a água que tenta lavar o vermelho que pinta o azulejo de vida. Mas nem o insistente líquido transparente retira o brilho sanguinolento do chão onde se aloja. Só assim percebo que, como eu, a banheira transborda, dando passagem à água, que, como meu sangue, também é vida. Enquanto desligo a torneira, dois tipos de vidas diferentes – duas composições químicas provindas da mesma natureza – disputam espaço no azulejo inerte, fundindo-se num vermelho ainda mais líquido.
Penso. E o que penso agora é que a vida brota de dentro de mim, num só impulso desesperado, desesperador. Mas não me desespero. E ainda penso. Enquanto o fio da navalha liquefaz de vermelho o meu corpo.
Será isso o que chamam de parto? Se – finalmente – estou parindo, onde está o corpo fetal? Será que vou parir um feto coagulado no azulejo sempre inerte? Será que o coágulo – meu filho – dará vida ao azulejo?
Por que um filho – nunca por mim desejado? Estarei parindo o sonho de tantas mulheres? Por que eu – logo eu -, que nunca desejei ter um só filho? Por isso estou parindo assim: em coágulos que coagulam outros coágulos?
Será isso um aborto natural? A revolta de um filho contra a própria mãe, que nada fez para tê-lo, ou detê-lo? Que jamais imaginou desejá-lo? Que dizer a este filho-sangue, que se recusa a transformar-se carne da minha carne, neste ato insano de doação ao nada? Serei eu o nada a quem este coágulo-filho se doa pungente, num só gemido escarlate?
E se estou a parir outro Messias, outro Salvador? Mas nem me chamo Maria. E também não sou santa. Não saberia sofrer a dor de mãe, aos pés da grande cruz. Oh, Pai, afasta de mim este cálice, porque não saberei beber, num só gole, este sangue que continua a sair de dentro de mim.
“E erguendo a taça de vinho, Ele disse: Eis aqui o meu sangue”. O que jorra de dentro para fora de mim é vinho? Vinho que agora azeda abandonado no azulejo? Terei plantações de uva dentro de mim – cada vaso, uma semente? Parreiras imensas, infindas, que desfolham no outono? Serão as folhas ressecadas que agora – liquefeitas e avermelhadas – tingem minhas pernas, meus pés, até o azulejo que não é meu?
Mas ainda sinto dentro de mim, sangue a correr nas veias. Cada vez mais célere, como a multiplicar-se loucamente, na vã tentativa de compensar a falta das folhas secas, que continuam a cair, a inundar de vermelho os meus olhos.
“O meu sangue ferve por você”. É a música que a memória me traz. Cada vez mais presente aquele dia em que resolvi caminhar entre os barracos no morro. Era essa música que saía de um rádio à pilha, que escorava a porta aberta da casa da lavadeira, que, assoviando, estendia brancos lençóis ao vento. Nada mais lembro.
O sangue que escorre de mim não é fervente. Nem parece morno. Insólito. Desliza sem pressa nas minhas pernas, que às vezes estremecem. Se pelo menos o sangue fervesse, eu sentiria minhas pernas protegidas. Quem sabe até me banhasse no vermelho que escorre, buscando sentir-me tão liquefeita – o próprio sangue -, como jamais me senti na água pura e morna da banheira.
Sinto-me impelida à auto-comiseração. O sangue que até agora viveu em mim quer doar-se por inteiro – ao nada. E já não sei se, nesta doação involuntária, restará sequer uma gota de vida vermelha em mim.
Será que isso está acontecendo, por que nunca fiz sequer uma mísera doação? Será que meu sangue acumulou-se em tempo cronometrado, para, num só e decidido ímpeto, esvair-se em doação desmedida, até a última gota?
Se em mim não restar um só filete de sangue a rastejar nas veias? Serei eu a única pessoa a viver sem vida? Com certeza, tomando conhecimento do meu estranho caso de doação ao nada, cientistas me farão de cobaia em suas experimentações cada vez mais absurdas. Como absurda seria a minha vida sem sangue. Quem sabe até minhas veias recebessem doação de sangue de barata. Porque só as baratas sabem doar-se à morte, ao nada. E ainda procriam, multiplicam-se. Talvez seja por isso que barata não tenha sangue. Irei me tornar uma barata? Não. Prefiro a borboleta, voltando sempre à sua crisálida. Borboleta não tem sangue? Mas tem asas.
De dentro para fora de mim, acontece um assassinato. E eu inerte, e eu pálida, e eu pintada de vermelho insólito, como o próprio azulejo frio, indiferente. Dentro de mim, alguma coisa mata uma outra coisa que jorra sangue para fora de mim. Será um sinal? Um pedido de socorro? Mesmo que decifrado o grande enigma, quem ouviria meu pedido de socorro? Estou no vigésimo terceiro andar deste prédio emudecido. Nem que se configure a total doação involuntária – até a última gota deste sangue que coagula -, nem assim um só glóbulo vermelho chegaria à entrada desse edifício.
E se eu embalasse este sangue coagulado, e arremessasse o pequeno pacote improvisado pela janela do banheiro? Será que chegaria até lá embaixo? Será que alguém – um só alguém – se deteria, por curiosidade, ou simples compaixão, na vida que continua a brotar de dentro de mim?
Resignada e compadecida, ajoelho-me, nua (rendida), na poça pegajosa de sangue. Nada mais penso. E o que sinto é uma extrema emoção, nunca sentida por meus sentidos – todos concentrados neste instante que escorre no sangue, cada vez mais vivo, borbulhante até. Pela primeira e única vez, estou ajoelhada em cima da minha vida mais secreta, mais íntima. O que sinto nas minhas pernas e nos meus pés é o sangue que corria lá dentro, e agora se doa ao nada.
E o que sinto mais forte é que agora estou dividida: parte de mim corre entre vasos, artérias e veias, e a outra parte coagula no chão estéril, silencioso. E ainda assim vivo. E ainda o vermelho toma conta das minhas pernas, dos meus pés, colorindo até o azulejo antigo. Por um momento, fecho os olhos, e deixo-me invadir pela tontura condescendente.
Braços largados até o chão, sinto meus pulsos enfraquecerem. Será o fim? Fim de quê? Se a vida ainda brota de dentro de mim, e torna cintilante o coágulo que meus olhos – agora abertos – vislumbram. Na lápide derradeira, ficaria registrado, entre heras e ervas daninhas: Aqui jaz uma criatura que doou a vida ao nada, até a última gota. E outra coisa não restaria, porque já teriam limpado o coágulo seco deste banheiro.
Mas se de fato for a morte, de que me valeu a vida? De que valeu o escorrer do sangue pelas minhas pernas? De que valeu eu sentir o vermelho escarlate tingindo meu corpo – por dentro e por fora?
Nem sequer um filho? Mas nunca desejei parir um filho. Mas se eu desejar algum dia? De que me vale agora o fim, este sangue que coagula entre minhas pernas?
E se um dia, complacente, eu aceitar ser Maria? E quiser parir o sangue salvador? E se eu juntar todas as lágrimas e dores, para chorar aos pés da grande cruz?
E se eu decidir tomar, num impetuoso e demorado gole, de uma só vez, todo este vinho que o dentro de mim despeja para fora? E se, ainda assim, eu sentir o doce do coágulo que doa a vida ao nada? E se?...
E se eu me recusar a seguir esta doação inteira ao nada? E se eu quiser estancar este sangue que teima em sair, como lágrima incontida? E se o meu medo coagular agora – neste instante – até a última gota de sangue que resta ainda dentro de mim?
Quando criança, ouvi a benzedeira dizer, na sua sabedoria plena, que deve-se colocar compressa de açúcar, para se estancar o sangue. Quero adoçar meu sangue vermelho – não este que já está fora, que já não é mais meu. Quero tornar doce o sangue que faz meu corpo todo estremecer à sua passagem.
Se meu sangue é a minha vida, minha vida escorre agora borbulhante de benzeduras, simpatias, mandingas. Ouço as novenas das beatas fiéis à Nossa Senhora da Boa Morte.
Já não penso, porque o sangue que ainda vagueia dentro de mim transita tão-somente no meu sentir. Sinto dificuldade para respirar. E já nem sinto as veias pulsarem – sequer a aorta. O que sinto, mais que isso, é uma câimbra febril nas pernas e nos pés. Uma febre lancinante, viva. Enquanto o vermelho se faz agora em vagarosos coágulos, que obedecem a ordem da cadeia que impera, coagulando o chão – que nem mais azulejo é -, para receber a vida que se esvai.
Sem nenhum pensar, olho para a poça sanguinolenta. Minha boca está seca, sedenta do sangue que já não é mais meu. Num impulso de misericórdia – semelhante àquele da mulher que roubou três pãezinhos na padaria -, também eu roubo um coágulo da perna que continua sendo minha.
O sabor que me chega à língua é agridoce, tal qual minha vida. Pela primeira e única vez, degusto o sabor insólito da minha própria vida. Saber não é sentir. E para sentir, é preciso não saber. Por isso, nada sei da minha vida. Sinto.
Que seja esta a última gota do sangue que já foi meu. Demoro-me em degustar o agridoce de que é feito o dentro de mim. Voltando o olhar à poça no chão, sinto que me embriaguei com o meu próprio vinho, engolindo toda a vida que ainda vivia entre os coágulos agora secos.
E agora meu paladar jamais voltará a ser o mesmo. Porque antes de degustar o vinho de dentro de mim, pensava eu que sabia, que conhecia sabores. Pobre consciência, que para tudo busca definição.
O sabor da laranja não está na laranja. Porque o verdadeiro sabor da fruta é o que ela carrega no broto da flor, que se doa em fruto. O sabor é sempre genuíno – como o sangue que ainda goteja insistente entre minhas pernas amortecidas.
Aceito a doação involuntária – desde que não seja para o nada. Quero doar-me em semente, depois tronco, galhos, folhas, flor, até o bendito fruto sabor genuíno. Que meu sangue dividido – o que goteja fora de mim, e aquele que borbulha lá dentro – regue a semente do que será o sabor genuíno de todas as coisas. Porque eu experimentei, sem vacilar, o cálice do meu próprio vinho, e tomei-o à última gota vermelha.
E nada mais poderá ser como antes. Porque o meu medo foi destruído pelos coágulos sanguinolentos que continuam a coagularem-se entre si. O que se forma é uma massa espessa no chão, aparentemente dura, que se desfaz com a primeira gotícula vermelha que segue o curso natural: de dentro para fora de mim.
Meu corpo tremeluz agora na penumbra do banheiro. E a auréola da poça coagulada começa a escurecer. Já não cintila mais o sangue borbulhante. Não há mais vida? Vida existe ainda – dentro de mim. Mas fora de mim, meu corpo padece, como padecem todos os corpos que se doam desmedidamente. E já não há mais força para soerguer-me. E já nem quero mais levantar. O sangue a escorrer lentamente. Ainda.
Quiçá meu último pensamento humano: e se tudo isso for apenas um sonho, um mísero sonho de um corpo cansado? Não é um sonho. Porque o agridoce toma conta da minha boca, que chega a arder em saliva. Enquanto o dentro de mim se esvazia.
Sentir minha vida por um fio de navalha faz-me concentrar na passagem de cada glóbulo, dentro para fora de mim. Não há revolta. Nem aceitação. A desistência simples – sem artifícios, ou heroísmo – a tudo assiste. Calada. Tudo sente. E consente.
E também não há dor – porque nenhuma parte do meu corpo foi decepada. E meu sangue não esguicha, em sinal de emergência. Agora, somente um tênue fio vermelho perpassa a linha quase invisível que separa o dentro do fora de mim.
Minha cabeça cambaleia à frente. Sinto que não preciso mais manter os olhos abertos. É o meu corpo que sangra, que sente. E a vida a gotejar humildemente. Sem nenhuma pressa, ou prece.
Cada vez mais vazia de sangue, uma lembrança vaga me chega: Quando criança, eu estava sempre a aventurar-me em bicicletas, árvores enormes. De quando em quando, um arranhão aqui, outro ali. Eu não chorava. Podendo alcançar o ferimento com a língua, ficava a lamber o meu sangue – este mesmo sangue que agora sai de mim -, até estancar a ferida.
Hoje, são tantas feridas, que eu não teria saliva para lambê-las todas. Até porque o sangue que deixa de ser meu, neste instante, não brota de nenhuma cicatriz mal curada. Pelo contrário. Este sangue que coagula ao sair de mim provém da passagem mais natural, pela qual a maioria de nós nasce para a vida que está fora.
Lentamente, rastejo agora em direção do espaço vago que existe entre a banheira e o vaso sanitário. Desprovida de força humana, rastejo, deslizo sobre o sangue coagulado no piso agora morno. E meu esforço sanguinário deixa rastros vermelhos, de novo cintilantes. Pouco resta nas comportas dilaceradas, que persistem em gotejar todo o vermelho da vida que se esvai. Para onde?...
Em estado de torpor, sinto minha cabeça pesar. Pesa com tantas palavras sem sentido. E já nem sinto o pardo filete de sangue que dá seguimento à saga da desistência mórbida.
Cada vez mais palavras desconexas faz minha cabeça pender até a tampa do vaso sanitário. Chuva. Campo. Sol. Dia nublado. Branca nuvem. Folha seca. Carrossel. Pipa. Mudez. Abraço. Frio. Floresta. Mar. Noite. Solidão.
Em minha semi-consciência, as palavras se esvaem como o sangue de dentro de mim. Todas coagulando, uma a uma. E restam sílabas, letras, e depois somente hieróglifos que já não podem ser desvendados.
Silêncio. Um zunido ensurdecedor arrebenta a consciência que ainda resta. Desfaleço.
... Desperto numa cama leve, onde o colchão, o travesseiro e os lençóis são de uma leveza que combina com a brancura do ambiente. Reconheço que estou num hospital. Como vim parar aqui? Há quanto tempo estou internada? As perguntas insistentes fazem minha cabeça – agora leve – latejar.
Tento mover o corpo, para quem sabe sentir o sangue que ainda vive dentro de mim. Sinto. Só não posso mexer o braço esquerdo, preso por uma agulha até o suporte que goteja líquido vermelho, viscoso, plasma sem brilho. Será aquele mesmo sangue, coagulado no azulejo, que já foi meu, e agora retorna para dentro de mim?
Sentindo dormência no braço direito, com esforço humano, busco a campainha. Aperto ininterruptas vezes, até surgir na porta branca, uma moça sorridente, toda vestida de branco, com os cabelos pretos escondidos em alvo lenço.
Procuro minha voz, e depois palavras conexas – que atendam aos meus sentidos. Nenhum som audível. Somente eu escuto meus pensamentos, onde as perguntas continuam alojadas. A enfermeira – que assim se parece – tenta me tranqüilizar. Pede para eu não ficar nervosa, que “está tudo bem agora”.
Tudo bem? Que tudo está bem? E o que é este bem em tudo? Você escuta meus pensamentos, moça? Onde estou? Como vim parar aqui? Com certeza, não joguei-me do vigésimo terceiro andar. Se me lembro, havia uma poça de sangue coagulado no piso, que já não era mais tão frio. Meu corpo estava lá. Você lê meus pensamentos, enfermeira? Então, responda-me: O que fizeram com o sangue que, ao sair de dentro de mim, já não era mais meu? Responda. Responda.
Entre minhas perguntas sem respostas, adormeço.
Quando acordo, o que enxergo é uma pele que, de tão morena, parece negra. E nesta pele, dois olhos ávidos, um nariz franzido, e uma boca larga, com brancos dentes a combinarem com a brancura dos lençóis, da parede do quarto. É Ermelinda, a empregada fiel – mais de dez anos de convivência em casa. É ela quem vai me contar tudo o que preciso saber. Se ela está aqui, é por saber de tudo o que aconteceu comigo, depois que eu deixei de saber de mim, do meu sangue que escorria, e agora não sinto mais escorrer.
Ermelinda continua parada – sorridente – diante de mim. Nada fala. Parece estar em oração, enquanto não tira – um só segundo – os olhos de mim. Balbucia alguma coisa, que a mim chega ininteligível, e depois ergue os braços, olha para o teto branco, e diz: Amém! Amém! No meu mutismo incompreensível, repito com ela: Amém! Amém!
O que se segue é um gesto vão da minha parte. Tento, com esforço humano, erguer o antebraço direito em direção de Ermelinda, que agora se aproxima de mim. Ela fala baixo, pausadamente (agora sei por que há tanto tempo ela trabalha comigo).
Com Ermelinda por perto, nada preciso falar. Ela sabe. Ela intui. Ela sente. E é esta sabedoria que agora responde a todas as perguntas latejantes da minha cabeça. Começa dizendo para eu não exigir muito da mente, que também enfraquecera com a hemorragia. E Ermelinda me conta que, naquele domingo de folga, depois de lavar as louças do almoço, ela despediu-se de mim, e foi visitar o pai velhinho, que vive num asilo. Ainda presa à minha mudez, lembro o dia que nós duas fomos visitá-lo. E dizer que ainda guardo o aperto daquela mão emagrecida, cheia de grossas veias de sangue.
E Ermelinda verbaliza o que eu já havia deduzido: ao entardecer, logo após a missa (“Rezei tanto pela senhora!”), ela retornou à casa. E o que encontrou foram poças de sangue, na escuridão do banheiro, e um corpo nu, pálido, mais inerte que o próprio azulejo que ela limpa com tanto zelo.
Lentamente, minha mão – agora tão alva quanto o lençol que me cobre – busca as mãos calejadas da velha e fiel Ermelinda. Dos meus olhos, grossas lágrimas a fitá-la. E também Ermelinda emudece, deixando escorrerem, quase desapercebidas, lágrimas dos alvos olhos.
Uma semana depois, já estou em casa. E silenciosa, diante da porta aberta do banheiro, fico a tentar rememorar tudo o que aconteceu naquele dia. A suave fragrância de eucalipto comprova a dedicação de Ermelinda, que, atrás de mim, conta que passou meio dia ajoelhada ali, naquele piso, para retirar até o menor resquício – indelével – de todo aquele sangue coagulado. Abracei silenciosamente a velha companheira, lembrando que também eu ficara ajoelhada sobre o sangue que vertia de dentro de mim. Ermelinda retirara até a mais ínfima partícula da minha vida coagulada neste chão frio. Sinto-me – finalmente – perdoada de todos os pecados do mundo. A fiel Ermelinda apagou todas as provas da guerra sanguinolenta travada dentro de mim. Amém! Amém!
Passei dois dias com a tela no cavalete, no canto da sala. Precisava fazer gotejar ali, naquele espaço antes frio e indiferente, todo meu sangue derramado na doação involuntária ao nada.
Agora, com ajuda de Ermelinda, perfuro a parede do hall de entrada, onde meu sangue permanecerá – eternamente? – borbulhando. Para quem entrar aqui saber que há sangue a jorrar – dentro e fora de mim...

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Gosto da liberdade

O apartamento é enorme, amplo, maior ainda para o olhar estrábico e miúdo da menina. E tudo é mais colorido. E tudo reluz. E tudo parece ser tão belo, quanto a liberdade que a menina desconhece.
A velhinha segura pela mão os passos tímidos da menina. De repente, ambas se vêem diante do piano, no centro da sala. A menina nunca tinha visto um piano tão lindo, majestoso, imponente. A menina ainda não sabia que pianos existiam, ali, dentro daquele amplo apartamento, e em tantos outros lugares.
A mão enrugada, que há pouco doava segurança à menina, que nem sabia, desliza sobre o brilho branco do piano silencioso. Um toque mais leve que o outro, sem deixar qualquer marca. O olhar miúdo da menina não enxerga mais que as pontas dos dedos envelhecidos tocando notas musicais invisíveis. A vida da menina se reduz ao instante de êxtase.
Por um momento, a menina se imagina morta. Leve torpor lhe percorre o corpo inteiro. Tudo mais esqueceria, principalmente o futuro que lhe aguarda, sôfrego. Este instante – leve toque de dedos trêmulos e macios sobre o piano mudo – teria sido a vida da menina. Em algum canto da alma infantil, a melodia continuará ecoando, mas ela não sabe.
Como quem, num estalar de dedos, retorna à consciência, após breve estado hipnótico, a menina desperta, com a voz, grave e doce, da velhinha:
- Todas as janelas estão fechadas?...
(É para ela – a menina -, a pergunta. Não há mais ninguém ali.)
- Sim... (responde a menina, cabisbaixa, percebendo a penumbra que invade a sala)
- Há quantos anos, eu nem ouso mais sentar aqui...
A voz da velhinha parece menos cansada, enquanto aproxima-se da banqueta. De olhos fechados, senta devagarinho, mantendo o ritual dos toques indeléveis sobre o instrumento. Lentamente, abre os olhos, destampa o piano, e o que a menina vê são dezenas de pedacinhos brancos, pretos, todos brilhantes, encantadores. Mas o que mais brilha, na penumbra da sala, é o olhar iluminado da menina, que descobre onde repousam todas as melodias. O coraçãozinho infantil dispara, se torna grande, enorme mesmo, maior, muito maior que o apartamento. Neste instante mágico, a menina ouve e dança todas as melodias. A alma infantil já não cabe mais no corpinho raquítico, quando escuta a velhinha murmurar, enquanto dedilha uma melodia triste no piano:
- Houve um tempo, há muitos anos atrás, em que meu marido fechava toda a casa, e me pedia para tocar para ele, mas só para ele. Meu falecido marido não admitia imaginar que alguém pudesse me ouvir tocar piano... (suspiro profundo!) Aos poucos, fui abandonando o hábito de sentar aqui, mesmo em silêncio... Nossa, faz tanto tempo que ele morreu... Não levou o piano junto com ele, como havia prometido, nos delírios da doença...
Morte – a menina já conhecia o peso dessa palavra, na alma frágil. A avó levara, para sempre e bem longe, o colo aconchegante. Sem saber o que dizer, transgride a educação que recebeu, e pergunta:
- Por que deixou tanto tempo os acordes silenciosos?...
- Talvez, por que a melodia da liberdade tivesse ido embora, sem poder voltar, por causa das janelas trancadas...
- E... e por que não tenta abrir as janelas?...
- Agora?... - pergunta, surpresa, a velhinha, que levanta, diante do silêncio da menina, e, em gestos ágeis e infantis, escancara as duas grandes janelas da sala. Os olhos úmidos da menina denunciam admiração, enquanto a velhinha retorna ao piano, começa tocar Ária na Corda Sol, de Bach, e, chorando, fala às lágrimas miúdas da menina:
- Jamais tranque as janelas, pois a liberdade é um pássaro que chega...
- Pássaro não vive sem cantar... - responde, sem pensar, a alma menina.

Voz - Elisa:

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Verão frio

Foto: Denise


Dora Brisa

O meu verão
Chegou frio,
Agasalhado de
Ausências...
O meu verão
Chegou frio,
Indiferente à
Minha dor...
O meu verão
Chegou frio,
Não trouxe calor,
Veio vazio...
O meu verão
Chegou frio,
Silencioso,
Melancólico..
O meu verão
Chegou frio,
Lavou minha alma,
E partiu...

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Poema em linha torta

Dora Brisa
(À persona de Fernando Pessoa)

Imagina você,
Moço,
Que eu, analfabeta
De pai e mãe
(com muito respeito),
Já sonhei em fazer versos,
Versos bonitos,
Enfileirados,
Bem traçados
e trançados.
Já sonhei em fazer versos,
Moço,
Em rodas de ciranda,
De capoeira,
De maracatu,
De candomblé.
Já sonhei em fazer versos,
Moço,
No Cristo Redentor,
Na Praça do Ipiranga,
Na Estátua do Laçador,
Na Mangueira – minha escola de samba.

Tanto sonhei em fazer versos,
Moço,
Que um dia o poema apareceu,
Assim, por acaso,
Meio andando de lado,
Cabisbaixo,
Parecia embriagado.
Em passo trôpego,
Deixou o seu recado:
Sou o poema de pé quebrado,
Torto,
Desmesurado.

Poema abjeto,
Escrachado,
Objeto
Despudorado.

Nos meus versos,
O poeta não despeja lágrima –
Deixa sempre a última gota
De cachaça,
Ou o vômito que engasga.

Poema deixado em
Parede de banheiro.
Cheio de palavrões,
Irônico, verdadeiro.

Sou o poema que rasteja
Nas mesas de bar.
Nasce num porre de cerveja,
Morre antes do dia clarear.

Poema amassado,
Esquecido,
No lixo jogado.

Poema que não fala
Da doce amada.
Nem o mais barato perfume exala,
Enquanto rola na escada.

Poema de uma perna só,
Que se apóia pelos muros,
Maltrapilho de dar dó,
Cochilando pelos becos escuros.

Tua opinião?...
Que me importa!
Não preciso de razão,
Sou poema em linha torta.

Voz - Helena Antoun:

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Sob o mesmo teto azul

Foto: Denise

Dora Brisa

Quando observo a vida alheia,
Vejo-me, num lapso, sem pensar,
Nascendo, multiplicando, morrendo.
Como invejo todos os movimentos,
Esforços sempre variados e repetidos,
Na vida sem sentido, sem questionamentos.

Quando observo a vida aleatória,
Vejo-me, num lapso, com alegria,
Ajuntando dinheiro em sacrifícios,
Arriscando até o que não tenho na sorte,
Preenchendo a pobre vida sem sentido,
Na tentativa de adiar a própria morte.

Quando observo a vida alienada,
Vejo-me, num lapso, sem nada ver.
Isso me dá tamanha tranquilidade,
Verdadeira euforia (in) consciente.
Sinto-me a própria vida sem sentido
Batendo no coração de toda gente.

Quando observo a mim,
Vejo-me, num lapso, mais um,
Dos milhões de transeuntes inseguros,
Pensando o impensável,
Sentindo o insensível,
Mísero sentido de vida
Mendigando restos do impossível.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O peso do peso

Dora Brisa

A vida me pesa como o ar me pesa nos pulmões. Ainda assim, vivo. Sei que não sobreviveria sem esse peso original. Por isso, peso tanto quanto – ou até mais – que a própria vida minha. Daí provém todo o meu cansaço de alma. O que me pesa mais é pensar sobre isso. As pálpebras me pesam. Tudo me pesa – cá fora e lá dentro. Rendo-me ao sono que me chega, como o ar da vida: pesado, sem chave de pensamento algum. Não sou mais que peso atmosférico. Rarefeito.

sábado, 15 de outubro de 2011

Dona Zita

Dora Brisa

No armazém da d. Zita
- legítima portuguesa –,
Vende-se e compra-se
Bacalhau e Vinho do Porto: “uma riqueza”.
D. Zita vem me atender
- expressão arredia –,
Arregala os olhos para crer:
Falo português – que alegria!
Nostálgica, penso em voz alta:
“Ao monte alto o Capitão
Deu o nome de Monte Pascoal;
E à terra, Terra de Vera Cruz (...)”
D. Zita me olha interrogativa.
- É frase de uma carta
De um tal Pero Vaz de Caminha
- respondo evasiva.
(Ela não tem obrigação
de saber. Afinal, Caminha
não endereçou a carta à d. Zita.)
A portuguesa me pede
Notícias do “nosso Brasil”,
Com o mesmo brilho no olhar
(será?)
Que um dia encantou-se um tal Cabral.
- Lembra os índios brasileiros, d. Zita?
Quase todos extintos.
Mas o Brasil tem muitos “brancos” e negros
Que perfuram as orelhas,
O umbigo, as narinas, as sobrancelhas,
Os lábios, e até a língua,
Onde penduram o que chamam “piercing”.
- Tem mais, d. Zita:
Hoje, negros e “brancos” brasileiros
Também pintam o corpo,
Como faziam os índios com urucum.
É moda.
Chamam tatuagem.
De repente, ouço um fado:
Amália Rodrigues?
Não.
É a alma de d. Zita
Que canta baixinho,
E suavemente se agita.
- Quer saber dos negros,
Bondosa portuguesa?
(negros que os seus patrícios
vilipendiaram com escravidão)
No “nosso Brasil”,
Ainda sofrem discriminação.
Como na África – resistem.
Ganha todo o povo brasileiro,
Que tem samba, capoeira,
Feijoada, vatapá,
Até Candomblé
(com a benção de
todos os Orixás).
- Futebol brasileiro, d. Zita?
Anda mal das pernas.
Não temos mais Pelé
(negro também).
Os jogadores perderam a agilidade,
Com o peso do dinheiro nos bolsos.
Nos estádios lotados,
Carregam mulheres louras
(Marias-chuteiras)
E carros importados.
- As crianças e os velhos
Do “nosso Brasil”?
Mudemos de assunto, d. Zita.
(Por favor, senhora,
não me obrigue relatar as
atrocidades cometidas
contra os filhos de ninguém.)
Apesar de e por tudo,
D. portuguesa,
Brasileiro é um povo
Bem-humorado,
Faz piada dos portugueses,
Com quem sente afinidade.
(A propósito, a senhora
conhece aquela piada da bicha
no consultório do urologista?
Melhor não contar.)
Brasileiro é trabalhador
(pode acreditar, d. Zita):
Planta, colhe,
Só não tem o que comer.
Por isso, alimenta a alma
Sempre com um sorriso
- às vezes banguela -,
Recebendo o estrangeiro
De praias e braços abertos,
Rindo da própria desgraça
(Não vou entristecê-la mais,
contando que a minha terra
está ficando sem palmeiras,
nem sabiá.
Por isso, as aves não
gorjeiam mais lá.)
Inesperadamente,
Pressinto o encontro das águas
Do Tejo com o Amazonas,
O Araguaia, o Guaíba,
O Velho Chico, o Parnaíba.
Recolho minhas lágrimas refletidas
No Velho Tejo que transborda.
Saio do armazém,
Com a sensação de ter deixado
D. Zita cantando um saudoso fado,
Às margens do Alentejo.
Volto para casa sentindo-me
(mais uma vez)
descoberta.
Ah, que vontade que dá
De voltar para o “nosso Brasil”,
E esperar por Cabral.
Ele poderia, dessa vez,
Levar d. Zita.
(Quem sabe?)
Pois, pois...

Voz - Paula Xavier:

sábado, 8 de outubro de 2011

Anima

Foto: Denise
Dora Brisa

Hoje, sinto estar plena,
Plena de mim,
Plena em mim,
Plena comigo.
Fiz o que pude,
E o que não pude, também.
Se não fiz o que
Os outros desejavam,
Foi por não saber fazer,
Ou por não querer fazer,
Ou não querer saber fazer,
Ou nem lembro mais por quê.
Só não fiz o que
Dependia do outro, dos outros.
Se não foi feito,
Faltou o outro
(E eu a esperar).
Muitos não me compreenderam
(Nem eu me compreendo).
Alguns compreenderam-me pouco,
E assustaram-se
(Também, eu me assusto comigo).
Sonharam muitos sonhos,
Para mim
(Esqueceram de acordar-me).
Traçaram destinos,
À revelia da minha vida predestinada
(E eu em desatino).
Quiseram-me obediente,
Até previsível
(E eu fascinada pelo impossível).
Podaram minhas asas,
De onde nasceram
Sonhos que não voam.
Tentei falar-lhes,
Pelo idioma humano,
Mas sou indomável às palavras.
Das vidas que não vivi,
Restou-me dor dilacerante,
Ancestral!...
E o que sei é que guardo
Lembranças do que viverei,
E isso dilacera de dor,
As minhas memorias mais antigas.
Por isso, também,
Sinto-me plena,
Tão plena,
Que poderia morrer,
Nesta madrugada
Mais plena que eu,
E menos fria.
E não haverá vida
Que saiba da vida minha...

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Eu e minha alma

Dora Brisa

Minha alma encara
A arma na cara,
O nó desata:
Mata, mata...
Mas morre de medo
De um sapo
Sem arma, sem alma,
Guardado em segredo...
Minha alma se cala
Diante de elogio,
Só fica à vontade,
Quando tudo está frio...
Minha alma é desfeita
Por pedaços, cacos,
Por contradições refeita...
Minha alma é facetada,
Mosaico de uma história
Mal escrita, mal contada...
Minha alma morre de fome,
Diante da mesa farta,
Enquanto todo mundo come...
Minha alma vive sem memória,
Observando outras almas,
Tantas vidas - uma só história...
Minha alma enxerga lá adiante,
Mas não é capaz de ver
O próprio reflexo no semelhante...
Minha alma carrega uma ternura
Tão seca, tão inútil,
Que não faz sossego na brandura...
Minha alma já não ouve
O próprio silêncio que
Em nenhum momento coube...
Minha alma não sabe, nem entende,
Não é sabida, nem entendida,
Porque não se solta, nem se prende...
Minha alma é tudo do nada
Que aprendi a não ser,
Por que, nesta estrada,
O que minha alma sabe é morrer...

Voz - Eduardo Cunha:

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Hora vaga

Foto: Jani
Dora Brisa

Atrás da bola,
Vai a criança.
Atrás da criança,
Vai o adulto.
Atrás do adulto,
Vai o sonho.
Atrás do sonho,
Vai a realidade.
Atrás da realidade,
Vai o cansaço.
Atrás do cansaço,
Vai o descanso.
Atrás do descanso,
Vai o pescador.
Atrás do pescador,
Vai o peixe,
Tatuado na bola,
Que flutua
No mar...

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Conjugação de-vida

Dora Brisa

Aos Santos você reza
Eu sinto frio e fome

O prato do dia você despreza
Eu sinto frio e fome

Você chora de solidão
Eu sinto frio e fome

Você calcula a inflação
Eu sinto frio e fome

Aniversario você festeja
Eu sinto frio e fome

Você se rebela e atira a bandeja
Eu sinto frio e fome

Emprego novo você comemora
Eu sinto frio e fome

Amor faz você perder a hora
Eu sinto frio e fome

Você faz discurso inflamado
Eu sinto frio e fome

Você reclama do trânsito parado
Eu sinto frio e fome

Você planeja sonhada viagem
Eu sinto frio e fome

Você expõe em vernissage
Eu sinto frio e fome

Você poupa para o aluguel
Eu sinto frio e fome

Você come croissant com mel
Eu sinto frio e fome

Você toma antidepressivo
Eu sinto frio e fome

Você busca oco paliativo
Eu sinto frio e fome

Você olha para mim com pena
Eu ainda sinto frio e fome

Você se perde em problema
Eu continuo sentindo frio e fome

Você não sabe o que fazer da vida
Eu sobrevivo com frio e fome

Você se suicida
Eu morro de frio e fome

Em alguma esquina perdida
Esta é a historia do homem.

Voz - Helena Antoun:

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Subversão

Dora Brisa

Neste subverso
Em que me atrevo,
Revelo o inverso
Do que me é segredo.

Vou contar-lhe aqui
Como deixei de ser,
Antes do tempo em que nasci,
Subversiva sem viver.

Nasci em tempos de opressão,
Tempos de apatia aparente,
Mascara da subversão,
Que unia toda gente.

(Enquanto, fora, sangue verte,
No utero quase a parir,
Um corpo quase inerte,
Que ainda sabe dormir.)

Fui parida, de madrugada,
Pelo medo e pela ousadia,
Carregadores do nada,
Diante do tudo que exigia.

Não me chamaram
À trincheira clandestina,
Nem me batizaram
Com nome de beata menina.

Meu primeiro caminhar
Foi em direção do trem,
Que me ensinou a viajar,
E querer ver mais além.

Semelhante a tantos,
Também eu cresci na ignorancia:
Acordada, sonhava encantos,
Dormindo, despertava a infancia.

Cedo, quis aprender a ler,
E escrever era vontade incontida
(Eu queria tanta coisa dizer),
Naquela vida incompreendida.

Aprendi a ler, na placa da estação,
À beira dos trilhos esquecidos:
“Pare Olhe Escute” – minha primeira lição.
Até hoje, tantos universos lidos...

Cresci na revolução.
A revolução cresceu em mim.
Se ainda falo de coração,
É por acreditar no coração, enfim.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Estátua de sal

Dora Brisa

É noite escura...
É madrugada fria...
Busco o mar,
Tão novo,
Tão antigo...
Quero afogar-me
Com tanta vida à beira.
Sorvo, lentamente,
Na concha das minhas mãos,
Toda vida que
O mar regurgita,
Entre fúria e desespero.
O mar, sedutor como a vida,
Leva-me com ele,
Num balanço encantado
De ondas invisíveis.
Doloridamente, o mar
Abre-me, num soluço,
Todas as feridas d'alma,
Esculpindo-me estátua de sal.
Os meus pés presos à areia,
A minha alma solta no mar...
Ainda assim, quero a vida,
A vida que escapou-me
Nas águas de um mar
Talvez mais profundo,
Talvez mais escuro,
Talvez mais amedrontador...
O mar parece compreender-me
Os pensamentos d'alma,
E liberta meus passos,
Que nunca tiveram chão...
Na superfície, adormece o mar...
Do fundo das águas,
Desperta a vida sufocada...
O mar arremessa-me o corpo,
Arranca-me o medo...
Também ele sabe que
Vivo só em desequilíbrio...
Eis que ressuscito das águas,
Estátua de sal que sou,
Fruto agora do mar,
Concha vazia, oca,
Sem pérola, sem voz...
O mar penteia-me os cabelos
De estátua, como escultor
A cuidar da obra inacabada...
Águas salgadas escorrem
Pelo meu corpo que se liquefaz,
A cada onda latejante do mar...
O sal encharca e cobre
As feridas da estátua,
Onde, no fundo escuro, a alma
Se contorce em dor...
No horizonte, o dia
Faz o mar despertar,
E já não há mais sonho,
Nem vontade de dormir...
A janela entreaberta
Traz o mar para dentro
Do quarto da estátua de sal,
Que ainda se contorce, se desfaz
Em lágrimas e sangue salgados,
Encharcados pelo mar,
Que tudo leva, pouco refaz...

Voz - Elisa:

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Roteiro

Foto: Ronaldo

Dora Brisa

A vida pulsa entre
o som e o ruído
o silencio e o nada
o novo e o puído
a parede e a estrada
a interrogação e o sentido
a bruxa e a fada
o grito e o gemido
a partida e a chegada
a descoberta e o perdido
a omissão e a madrugada
o botox e o mendigo
o abraço e a bofetada
a ordem e o pedido
o pranto e a risada
o bemol e o sustenido
o perigo e a boiada
depois do vivido
e do não vivido
a vida acaba
e mais nada.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Procura

Dora Brisa

Quero ouvir aquela canção
Que canta o amor, a paz,
O olhar, o perdão,
E muito mais...

Não é essa música, não,
Nem aquela lançada ano passado...
É outra, que fala de tudo do coração,
Extingue a palavra pecado...

Também quero aquela poesia
Que fala de outros tempos,
Do nosso dia-a-dia,
Quando voávamos com outros ventos...

Não, não é aquela poesia,
Porque falta alguma coisa nela:
Talvez uma rede vazia,
Ou uma esperança na janela...

Quero música, poesia,
Procuro-as por todo lugar,
Mas nada preenche minha busca vazia,
E, louca, continuo a pesquisar...

Cansada de vasculhar,
Deixo minha procura, enfim...
Sozinha, busco o caminho do mar:
Eis a música e a poesia dentro de mim...

Voz - Rosany Costa:

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Última estação

Dora Brisa

Esse é o meu tempo, tempo de voltar
À velha estação de trem
Em abandono, como eu.
É tempo de olhar a vida que passa,
Já que os trens, há muito,
Não passam mais em comboio.
Não há mais trilhos.
Por isso, minha vida descarrilada.
Sento no único banco vazio que restou,
Igual minha alma.
E o que faço é simplesmente respirar:
Inspiro, expiro,
Inspiro, expiro.
E o que sei, nesse gesto meu impensado,
É que a minha vida não expira.
Ainda não.
Por isso, agora respiro com ironia.
Encho e esvazio os pulmões, que
Um dia cessarão carcomidos, junto com o resto
Do meu corpo, que será presenteado
Aos vermes, ou fará parte, uma ínfima parte,
Dessa poluição de cidade grande. E assim
Não voltarei mais à velha estação,
Nem meu corpo ocupará espaço
No universo humano.
Simplesmente por que meu tempo
Terá expirado, junto com essa vida
Que agora respira o ar poluído
Das fábricas,
Dos motores,
Dos incineradores.
Tudo misturado, como a minha própria vida,
Que pulsa com o tempo sem porquê.
Meu tempo de vida está sendo
Cronometrado, sem eu saber.
E, sem eu saber também,
Meu tempo de morte será marcado,
Pois alguém, um dia qualquer,
Lembrará desse espectro humano.
Sem relógio, deixo-me ficar só com o tempo,
Para quebrar as algemas propositadamente.
Hoje, neste velho banco de estação,
Que o tempo não me encontre,
Pois estou sem tempo para ver
O tempo passar, o tempo escoar.
Não, não me venha o tempo
Da sentença, o tempo que só marca
O que não faço, o que não vivo, o tempo perdido.
Liberto, respiro. Não há movimento
Nas ruas, nas calçadas, nas pessoas.
Ora, não venham me dizer
Que dia é hoje, que horas são.
Não. Não quero saber de mais nada,
Nem do tempo futuro, tampouco do tempo passado,
Menos ainda do tempo que não é presente algum.
Levem para longe dos meus sentidos,
O badalar dos sinos da Catedral, que anuncia
Mais um quarto de hora passado no tempo.
Quanto tempo dura uma saudade?
E uma despedida? E a partida de
Quem se foi, sem se despedir?...
Meu coração acompanha agora
O ritmo descompassado do meu pensar,
Invadido por lembranças marcadas
Pelo tempo - este mesmo tempo
Que ora se esvai no meu olhar perdido -,
Como se ainda houvesse tempo,
Tempo para viver, e depois,
Só depois de a vida tornar-se enfadonha,
Aí sim, tempo de morrer,
Ou não morrer.
Um homem maltrapilho pára diante de mim.
Pede um trocado para continuar sobrevivendo.
Aturdido, remexo os bolsos do velho casaco.
Nem sei se trago algum dinheiro comigo.
Decido impetuosamente tirar o casaco,
E oferecê-lo ao olhar estupefato.
Preciso dizer alguma coisa, qualquer coisa.
Apenas um murmúrio sai da minha alma:
– Pode levar o casaco,
Porque você e eu morreremos.
Provavelmente, você conheça mais gente,
A quem este surrado paletó ainda possa servir.
Digo isso, tirando os sapatos:
– Esses também podem ajudar
Na caminhada que resta...
Com o casaco no braço, o homem ainda pega o par
De sapatos rotos, e corre.
Perde um dos sapatos no caminho.
Nem olha para trás.
Fugiu de mim, como acha que
Foge da morte.
Nem pude dizer a ele que também eu sinto medo,
Medo de perder a vida, sem aviso prévio.
Sobrevivi até hoje assim:
Sob o crivo do tempo, silencioso, este mesmo
Tempo que passa na velha estação.
Envelheci. Já não posso mais correr, fugir.
Por isso, permaneço sentado
Nesse banco empedernido
Pelo sempre tempo que torna opaca
Qualquer visão humana.
Tanto eu, quanto aquele homem que escafedeu-se,
Já não podemos mais crer
Em vida eterna, céu, harpas e querubins.
Todos nós, seres humanos,
Até mesmo aqueles que professam uma fé,
Sabemos que podem haver outras vidas.
Mas cada vida é única,
Como também são únicos os laços.
Quando alguém diz que não teme a morte,
Está falando por todos nós:
Eu minto,
Tu mentes,
Ele mente,
Nós mentimos,
Vós mentis,
Eles mentem.
(Duas varejeiras me perseguem.
Chegaram cedo para o banquete.
Não importa. Parecem ter
todo o tempo do mundo. Mas
também elas morrerão. Pois que
esperem o meu tempo, que
marca sentido contrário dos relógios.)
De onde surgiu este cão?
Parece velho, cansado.
Lentamente, vem se chegando ao banco.
Deita em silêncio, baixa o olhar sem brilho.
Reparo nas feridas dele,
Pêlos com pus ressequido.
E eu aqui sentado, sem uma chaga sequer,
Nem mesmo um calo purulento.
Talvez, também por isso, sinto medo,
Medo de perder a vida que nunca tive.
Não trago no corpo, as chagas da crucificação
Daquele que (dizem) morreu
Por nós, os pecadores.
Eu, ordinário que sou, não saberia
Render-me à morte, com beatitude.
Não, não eu, que represento
O homus sapiens do terceiro milênio,
Com toda a sua tecnologia, toda a sua ciência,
Todo o seu horror à morte, cada vez maior.
Viver é um susto; morrer é uma fatalidade.
O cão, de olhos fechados, focinho no chão,
Não sabe disso, ignora que vai morrer.
Nem sabe que vive, por que não pensa.
Eu penso,
Tu pensas,
Ele pensa,
Nós pensamos,
Vós pensais,
Eles pensam.
Fecho também os olhos, por um momento.
Mas ainda penso.
Sinto uma vontade louca de
Encostar meu nariz no chão, e
Não mais precisar fugir do meu pensar,
Do meu medo genuíno, que
Há décadas me atormenta, farejador:
Morte!
Morte!
Morte!
Como viver, morrendo a todo instante?
Como não pensar na vida, que
Poderia ter sido vida ganha, ou perdida?
O cão não escuta minhas divagações amedrontadas
Pelo fim predestinado à vida humana.
A cada nascimento (na maioria),
Júbilo em derredor.
O choro do bebê pode ser traduzido:
– Vou morrer. Nasci para morrer.
Esse vagido permanece o resto da vida,
Até que a morte chega, e
Faz tudo calar. Definitivamente.
A vida é eterna? Mas
Eu morro.
Tu morres,
Ele morre,
Nós morremos,
Vós morreis,
Eles morrem.
(Primeiro, de medo.)
Todos, indubitavelmente.
Morre aquele que crê,
Morre aquele que não crê.
Todos – 'farinha do mesmo saco' -,
Matéria orgânica perecível, mortal.
Sempre a morte. A morte sempre
Nos aguardando à espreita,
Num navio, num avião,
Até numa estação de trem, esquecida
Pela vida que passa:
Vida célere, morte lenta.
Um dia a mais, um dia a menos.
O cão não pensa.
Invejavelmente, o cão dorme o
Sono dos justos purulentos.
Se o tempo é o melhor remédio,
Quero sorver até a última gota
Da minha parte da cicuta
Reservada a nós, miseráveis,
Temerosos, solitários, mortais seres humanos.
Do outro lado da rua, que um dia foi trilho,
Passa agora uma madame, que
Passeia com seu cachorro com pedigree.
Ela acelera o passo, após nos observar,
A mim e ao cão deitado.
A madame desvia o olhar com asco,
Visível desconforto. Segue,
Ajeitando-se pelo caminho invisível dos
Trilhos, acompanhada pelo cachorro,
Que fareja aguçadamente o trajeto.
Cachorro de madame não tem feridas,
Só mordomias invejáveis.
Também ele não sabe que vive,
Não pensa sobre a morte,
Idêntico à madame, que deve
Buscar sempre mais banalidades
Que burlem quaisquer indícios
De um breve pensar.
Mas também ela, ser humano, vai morrer.
Ainda que esconda o enfraquecimento físico, com
Cirurgias plásticas irreveláveis, a morte a espera,
Sem pressa, e também ao seu cachorro.
Porque o tempo só é limitado
Às criaturas limitadas.
Eu feneço,
Tu feneces,
Ele fenece,
Nós fenecemos,
Vós feneceis,
Eles fenecem.
Toda vida é subjugada à morte implacável,
Algoz sedento em chamar o próximo da lista
Infindável, à guilhotina.
Neste morticínio, estamos nós, seres (ainda) vivos,
No aguardo forçado da nossa vez.
Todos, meninos solitários,
Tremendo de medo, sob um único
Olhar rígido, mortal: sentença irrevogável.
Para o medo do escuro, existe a luz;
Para cuidar das tantas fobias do homem,
Existem os tratamentos terapêuticos.
Antídoto à morte? Talvez revolta.
Talvez rendição, numa única lágrima de quem
Sempre soube que um dia seria extinto
Do convívio humano, e arremessado ao desconhecido.
Foram-se os tempos
Das brincadeiras de bicho-papão,
Debaixo das macieiras.
É chegado o tempo de não haver mais tempo:
Tempo de medo.
Tempo de silêncio.
Tempo de solidão.
Tempo de quedar a cabeça.
Tempo de não ter razão.
Quanto a mim, humano descartável,
Igual à humanidade inteira, neste mundaréu de medos,
Que resultam num medo só (perder a vida),
Não há mais tempo para
Ter um filho, plantar uma árvore,
Escrever um livro...
Que importa?
Se houvesse mais tempo, com certeza,
Eu nem imaginaria fazer essas coisas todas,
Nem coisa alguma. Morrerei mesmo assim,
Morrerei igual morreram ou morrerão
Aqueles que escreveram árvores,
Plantaram filhos, tiveram livros...
Presságio fatídico.
Por certo, deixarei alguém, um só alguém
Que hoje me ama, ou me odeia,
Já não interessa mais.
Alguém que também vai morrer,
Semelhante ao cão que (ainda) adormece
Ao pé desse velho banco
(tão duro, quanto a morte),
Que não tem vida para perder,
Nem tempo a ganhar.
A morte é onipresente - onipotente.
A vida é limitada - atemorizante.
Entre a vida e a morte,
Tateia a humanidade frágil,
Assustada, indefesa.
Todo mundo sabe que, aonde for,
O que fizer, acabará num só lugar:
Morte.
Haverá sempre o fim da linha, como para o trem.
Erros e acertos oscilam num determinado tempo.
Depois, morte cruel. Não importa
Se for numa clínica moderna e equipada,
Ou num barraco de lama, onde falta até
Um toco de vela. A vida é extinta num
Tempo qualquer: seja diante
Da indignação, ou da subserviência.
Ganhamos tempo; perdemos vida.
Perdemos tempo; perdemos vida.
No final de tudo – morte -,
A eterna morte de uma vida passageira.
Depois, ainda dizem:
– Foi tão cedo.
Não interessa se viveu sete ou setenta anos.
Foi cedo, sim, por que a morte é perversa,
Arranca pela raiz o mais frágil broto,
Até a árvore frondosa,
Sem direito à contestação.
Assim é a morte (aceitam).
Sou irmão dos irmãos que não suportam
O peso da morte nos ombros da vida.
Alguns bebem, outros cheiram ou fumam:
Suicídio lento (quem tem pressa?).
Morreremos, de qualquer jeito.
A vida de uma borboleta não dura mais que
Duas semanas. Por isso, ela voa, voa...
A grande massa humana trabalha para não morrer
De frio, de fome, mas continua morrendo
De medo da morte.
Mesmo sabendo disso,
Eu insisto,
Tu insistes,
Ele insiste,
Nós insistimos,
Vós insistis,
Eles insistem.
Assim é a vida (aceitam).
O que vivemos foi vivido.
O resto é morte.
O tempo em que estou sentado no banco
Dessa velha estação, o tempo é passado.
E tudo o que eu poderia ter feito neste
Tempo que passou é morte.
Vivo agora a minha morte futura,
Sem consciência dela.
Tateio um outro tempo, fora de qualquer tempo,
Sentado apenas sem pensar no que já fiz,
Deixei de fazer, ou o que faria amanhã.
Neste momento, a minha morte respira.
Nem isso quero pensar.
Prefiro olhar para o chão, onde o cão dorme.
Nada sinto. Nem sono.
Estou aquém ou além
(que importância tem?)
Do tempo, que chego crer que eu não
Reagiria, nem por instinto, caso minha
Respiração fosse espaçando, lentamente,
Até nada mais.
Não quero saber se sou 'um grão de areia', ou
'Uma gota de oceano' no universo.
O que sei é que nem sei quem sou.
E aquele mendigo levou há pouco
Minha carteira de identidade, junto com o casaco.
Já não tenho mais sequer nome.
Sou ninguém.
E respiro agora um ar mais leve,
Um tempo tão suave, que eu nunca tive na vida.
Será a morte?... Não, não pode ser,
Porque a morte (dizem) machuca, faz doer fundo.
Nada me dói, nem o que não vivi.
Se eu pudesse,
Se tu pudesses,
Se ele pudesse,
Se nós pudéssemos,
Se vós pudésseis,
Se eles pudessem,
Escolheriam (escolheríamos, todos)
Que ninguém mais morreria.
Quem sabe, a vida fosse diferente,
A humanidade fosse mais humana,
Menos abandonada.
Quem sabe, não haveria mais a palavra
Solidão, nos dicionários das casas, das ruas...
Quem nunca, por um instante só, desejou morrer?
Não é preciso perder (mais) este tempo,
Porque a morte chega, chega sim -
Traiçoeira, desumana.
Em todo velório, a mesma coisa, o tempo todo:
Lágrimas, sentidas lágrimas.
Eu choro,
Tu choras,
Ele chora,
Nós choramos,
Vós chorais,
Eles choram.
Mas não é mais só por causa do
Falecido (já está morto).
Cada qual chora a sua própria morte
Particular, singular, imposta.
Quando as lágrimas esgotam,
Começamos nos observar, um a um,
E nos reconhecemos no olhar apavorado
Do outro, que treme de medo da morte,
Que fatalmente está a caminho.
(Quem será o próximo 'eleito'?)
O que nos resta, então, é baixarmos a cabeça,
Emudecermos, sermos tão humanos
Como foram nossos pais, avós, bisavós,
E também os tataravós dos nossos bisavós,
Como será a humanidade futura.
Neste meu caminho à morte, tenho aprendido que
Cada criatura humana é um universo
Limitado, único, por isso tão só, vulnerável.
Na minha solidão, sou toda a humanidade,
Que busca sofregamente não pensar,
Não sentir tudo isso que provém do peso de
Sermos (todos) mortais, filhos do começo, do meio e do fim.
A vida não tem sentido, nem nexo, nem seta, mas
Eu vivo,
Tu vives,
Ele vive,
Nós vivemos,
Vós viveis,
Eles vivem.
Todos tentamos decifrar, reter o sentido da vida.
Se a morte tem ou faz algum sentido,
Os mortos (só eles) devem saber,
Ou, talvez, a procura insana continua.
Apenas isso. Se assim for,
Menos sentido ainda tem tudo isso
(vida-tempo-morte).
Afinal, quem é este 'Ser' proclamado
Entre os religiosos como justo e misericordioso?
Se assim é, por que uns nascem abastados,
E outros morrem famintos?
Por que uns vivem matando,
E outros morrem assassinados?
Onde a justiça – na vida? na morte?
E ainda dizem que nasci para pagar os meus pecados.
Logo eu, pecador confesso, especialista
Na genuína arte de pecar.
Peco contra mim mesmo,
E não pago contas. Peco neste tempo todo
Que espreita meus passos trôpegos,
Meus pecados imundos. Tempo-urubu:
Paciente, hábil, à espera da minha morte,
Quando também ele, o meu tempo,
Será aniquilado, imerso no tempo eterno da morte.
No tempo da minha morte,
Não me venham prometer purgatório, céu, inferno.
Com certeza, eu morreria antes da hora,
Anteciparia a minha viagem, depois de vomitar
Toda náusea que me dá a palavra eternidade.
De nada adianta, porque
Eu acabo,
Tu acabas,
Ele acaba,
Nós acabamos,
Vós acabais,
Eles acabam.
Morte. Ponto final.
Se depois disso houver mais enredo,
Que venham todas as vidas que tiverem de vir,
Todas, todas as vidas e todas as mortes também.
Cada vida única, cada morte sofrida na solidão
Do existir sempre humano a se repetir.
Ou que não venha mais vida alguma,
Seguida de morte. Que seja o fim.
O fim de cada um. O fim de todos. O fim de tudo.
O nada. O retorno do caos, de onde podem (ou não)
Surgir outra luz, outra vida.
Que seja, ou que não seja, pois
Eu não existirei
Tu não existirás
Ele não existirá
Nós não existiremos
Vós não existireis
Eles não existirão.
E tudo será nada (recomeço?).
Definitivamente, não sei ser humano,
Ou outra coisa qualquer.
Não compreendo a criatura (também eu) que sonha sempre com
Mudanças diversas de vida, mas não admite a morte,
Que não passa de (mais) uma mudança.
Por que toda mudança pressupõe morte – fim de
Alguma coisa -, para aparecimento de outra.
Por isso, quem perde, ganha; e sempre ganha, quem perde.
Vida é mudança constante, incluindo a própria morte.
Minha incompreensão reside nisso:
Por que temo, ser humano que sou, a morte, que
Muda tanto a vida?...
Indiscreta ou sutil, mudança é sempre mudança.
Isso é inquestionável – como a morte.
E não há resposta que faça calar a alma
Humana – inquieta e trêmula.
Na minha finitude, vejo o crepúsculo morrendo
No infinito. Isso me dói. Morre o dia.
Morre o homem. Morre a luz de tudo o que é mundo humano.
De súbito, uma pedra trespassa meu olhar.
Caio de novo na realidade, e o que vejo é
Um menino de rua provocando, de longe,
O cão, que continua deitado, inerte.
Sob meu olhar inquiridor, o menino se afasta,
Arremessando mais pedras, agora na rua sem trilhos.
Olho para o cão. O corpo está hirto. Não há mais
Vida nele. O trem da morte levou a vida
Que restava no cão moribundo, que, certamente,
Não tem um só alguém que chore a sua falta.
Choro eu, cão desconhecido, eu que sou
Tão desconhecido para mim mesmo.
Choro a tua morte, o fim da tua vida sem sentido.
Choro a minha morte também, que virá sorrateira,
E deixará em abandono meu corpo cansado, indefeso.
Retiro a camisa, cubro-lhe as chagas, em silêncio.
Eis tua mortalha, cão que não deve ter sido protegido
Na vida. Também eu, ser humano que (ainda) sou,
Precisei aprender sozinho me proteger, cobrindo
As marcas infames que trago na alma.
Continua dormindo, cão sem nome.
Eu, sem nome também, velo teu sono, o sono
De quem viveu sem saber que vivia, e morre sem despertar.
Só eu sei que você está morto, cão, porque a
Escuridão da noite cobre agora a tua morte e a minha vida.
O que respiro é o ar da morte, que ainda ronda.
Sinto, pressinto, farejo, animal que sou,
Tão mortal quanto o cão rendido.
Mas não me rendo, ainda não,
Não eu, animal teimoso, negando o próprio fim.
Quero respirar também o ar do cão sem vida,
Para provar (a mim? ao cão? à morte?) que ainda vivo.
Não interessa por que, para que, até quando, até onde.
Vivo este instante – basta -, enquanto a morte permeia
Solta, poderosa. Não, não vou me refugiar
Debaixo do banco, nem fingir estar morto.
Respiro profundamente. Estou vivo. Vivo e sozinho.
Viajei tanto na vida, mas meus pés fincam
Nessa estação, onde há muito tempo equilibrei
Meu corpo infantil sobre esses trilhos hoje invisíveis.
Tanto é verdade, que agora mesmo poderia eu percorrer o
Trajeto cego dessa linha morta de trem.
Respondo ao meu menino eufórico: estou cansado.
Não viajei de trem até aqui, com o olhar extasiado em paisagens.
A minha vida humana é isso:
Tão-somente esse momento em que suspiro
Diante da morte, que se apodera de um cão.
'Um dia, todos voltaremos à casa do Pai?'
Não eu, que nunca tive pai, nem casa, sequer um lugar.
Acho mesmo que, morrendo, vou acabar
No meio do caminho - entre qualquer coisa e o nada.
E isso será tudo.
Que fiz eu da morte que vivi, até chegar aqui?
Alguns poucos diriam:
– Construíste casas (não lares).
É bem verdade: exímio construtor, visível profissional.
Debaixo da minha máscara, destruí sonhos,
Cortei caminhos, matei destinos.
Também eu poderia ter sido o chefe das construções.
De que serviria? Estaria morrendo, como tudo, como todos,
Como eu, que sempre fui sem nunca ter sido.
Nem sequer construí uma casa para mim,
Por desconhecer o mais ignóbil projeto de um lar.
Com certeza, aquela que seria minha esposa
Vive – casada – com aquele que poderia ser um
Desconhecido, ou o prefeito da cidade, ou até
O mendigo que há pouco passou por aqui.
Vou morrer sem conhecê-la, tampouco ela saberá de mim,
E terá filhos, muitos filhos, os filhos que seriam nossos.
Não importa! Ela morrerá viúva, ou ele morrerá viúvo,
Até os filhos morrerão, e eu também morrerei.
E morreremos todos, com ou sem lar.
Nunca achei graça ou desgraça na vida.
Por que haverei de culpar ou desculpar alguém na morte?
Não e não, nem a mim mesmo, que nunca soube existir.
O vento sopra a noite e a vida.
Por isso, sinto frio. Encolho-me envergonhado junto ao
Corpo do cão, que ainda morre a própria morte.
Partilho contigo tua mortalha, cão cheio de morte,
E já nem lembro que é minha a camisa que cobre teu pêlo sujo.
Quisera eu ter manchado esta, ou outra camisa qualquer.
Não. Jamais manchei de sangue vivo minha vida morta.
Acomodo minhas costas junto aos pêlos caninos
Cobertos pela mortalha, que era camisa de alguém
Que parecia ser vivo, por que usava camisa.
Fecho os olhos a contragosto, e revejo o sonho,
Aquele mesmo sonho que me persegue - sonho africano -,
Sonho parecido com insônia letárgica, que
Dizima, mutila, mata restos de sonhos.
Também eu estava lá, no chão africano,
Estirado à morte, mas não morria.
Também era noite, mais escura que a pele dos mortos africanos.
Só eu não morria, por que não tinha vida.
Arregalo os olhos, o sonho se dissipa espavorido,
E a noite fria já não eriça mais os pêlos do pobre cão.
Nunca bebi (vida) na vida, e me sinto embriagado,
Farto dessa mesma vida que jamais senti arder na garganta.
Façam suas apostas, senhores.
Aqui jazem um cão e um homem
Sem dono-destino, nem desatino – entregues, rendidos.
Eis aqui um cão que teve vida e morreu,
E um homem que não morreu, por que nem vida teve.
Quem dá mais, senhores?...
Quem pagar pelo cão, leva a mortalha para tapar-lhe as feridas.
Quem arrematar o homem, não paga,
Por que ser humano nada tem, além de um tempo que acaba,
Antes mesmo de a vida principiar...
(Ao longe, o apito da locomotiva – está na minha hora?
Já não enxergo mais o guichê das passagens,
Para eu escolher o destino que nunca tive.
Nem trouxe bagagem. E agora?...)