sexta-feira, 27 de maio de 2011

Mergulho

Dora Brisa

Já não ouço mais o vento,
Nem a festa dos insetos no gramado...
Já não falo mais sozinha,
Nem canto em ritmo desafinado...

Já não sinto o cheiro da terra molhada,
Nem do churrasquinho na avenida...
Não vejo o desenho das nuvens,
Nem enxergo além da vida...

Já não tenho mais resposta pronta,
Nem pergunta a intimidar...
Meu silêncio é feito de vazio,
Oco, profundo, sem ecoar...

Já não espero o trem na estação,
Nem a carta que jamais chegou...
Meus pés paralisados no chão...
No meu olhar, nada restou...

Já não abro a porta...
A janela enguiçou...
Pela vidraça embaçada,
A vida passou...

Meu mergulho é mudo, cego, surdo,
Insano, profundo...
Sou cobaia de mim mesma,
Neste misterioso mar do meu mundo...

Conheço mais o mar
Que lava a areia da praia
Do que este mar onde mergulho,
E minha alma desmaia...

Pobre de mim,
Náufrago solitário, resignado...
Só o mergulho restou-me na vida,
Que hoje aprendo a nado...

... E nadar neste nada
Faz-me sentir o nada
Que o nada me traz,
Ao mergulhar na água que afaga
O nada que aqui jaz...

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Procissão

Dora Brisa

Minha nega, acenda a lareira,
Que teu nego vai chegar.
Estou descendo a ladeira,
Tão só, cansado de caminhar.
Prepara a espreguiçadeira,
Porque tenho tanto pra te contar.

Imagino teu sorriso brejeiro,
Dizendo que não foi tanto tempo assim.
Minha nega, você não sabe do nevoeiro
Que há depois do Monte Sem-Fim.
Em cidade grande, tudo é ligeiro,
Abrindo feridas profundas, como essas em mim.

Você compreende, minha nega, a vontade
De ir ardia mais e mais no peito.
Era qualquer coisa de saudade,
Que não tive outro jeito.
Depois, ainda tinha a tal curiosidade
De tudo conhecer, saber direito.

Já te contei tantas vezes a mesma história:
Meu velho trabalhava lá, na cidade grande.
As imagens mais coloridas da minha memória
São do meu pai voltando, tocando o berrante.
Minha mãe largava a semeadura da chicória,
E corria, ladeira acima, comigo no peito arfante.

Meu velho falava horas, dias sem parar,
Contava que na cidade tudo era lindo,
As pessoas eram boas, só sabiam amar.
O tempo passava, e meu pai já estava indo
Novamente à cidade trabalhar.
Eu ficava com minha mãe, sonhando, sorrindo.


Até que um dia meu pai não mais voltou.
Minha mãe ficou no pé da ladeira,
Esperando, esperando, até que chorou.
Imaginei meu pai fazendo brincadeira,
Mas a realidade dura chegou,
Minha mãe não mais sorriu, nem acendeu a lareira.

Desde sempre, minha nega, você sabia,
Eu precisava conhecer onde meu pai trabalhava.
Fui lá, não acreditava no que via.
Hoje sei, em tudo o que o velho falava,
De real, só o nome da cidade existia.
Meu pai não nos queria tristes, e tudo fantasiava.

Lá longe, minha nega, onde chamam cidade,
Teu nego foi cuspido, pisoteado.
Lá em cima, minha nega, não existe bondade,
E o poder está com quem vive armado.
Lá, minha nega, alta sociedade
É sinônimo de valor vendido, trocado.

Vi muito cachorro de madame
Desfilar com empregados pela calçada,
Enquanto comia lixo o mendigo infame.
Vi cães e gatos com alimentação balanceada,
Trabalhadores sem segurança caindo de andaime,
Gente infeliz rebolando em roupa apertada.

Tinha gente com cara tão esticada,
Minha nega, se você visse,
Se desse uma só gargalhada,
Provavelmente a costura se abrisse.
Se a fantasia fosse rasgada,
Desconhecido seria o espectro que surgisse.

Nas praças, o lago está sempre cheio
De crianças a brincar,
Pombos circulam pelo meio,
Dividindo os restos de comida do lugar.
De repente, a polícia chega em tiroteio,
Espanta os pombos, e contra os meninos sai a atirar.

Minha nega, de onde eu desço,
É preso e torturado, o pobre que rouba um pão.
O pior de tudo, isso não esqueço,
É a idolatria aos que roubam mais de um milhão.
Se tudo naquela cidade tem um preço,
Dignidade está sempre em liquidação.

Teu nego retorna cansado,
Querendo nos teus braços tudo esquecer.
Minha nega, prepara aquele refogado
Que só você sabe fazer.
Teu nego passou frio, fome, volta mais magro,
Triste, desiludido, vivo só pra você.

Queria tanto te trazer alegria,
Histórias verdadeiras de um mundo bonito,
Mas o que trago no peito é a agonia
Que dói em desilusão, sem um grito.
Todo aquele tempo, tua alma eu via,
Só queria voltar, cada vez mais aflito.

Desço a ladeira finalmente,
E tudo aqui me parece tão mais claro,
Apesar da noite escura, vejo tudo calmamente,
Até nosso barraco, lugar tão raro.
E saber que estou voltando me faz tão contente,
Minha nega, mesmo exausto, não paro.

Você já deve estar dormindo,
E o teu sonho vai chegando.
Quando a porta eu estiver abrindo,
Tenho certeza, tua felicidade irá despertando.
Minha nega abrirá os braços sorrindo,
Enquanto minha alma em pedaços estará chorando.

Ficaremos um tempo abraçados, emudecidos,
Depois misturaremos dores, saudades, emoção.
Trocaremos olhares enternecidos,
Falaremos tanta coisa desconexa, sem razão.
Aos poucos, os olhos ficarão umedecidos,
A todos os sentimentos dando vazão.

Sentarei contigo no colo, junto à lareira,
Evitando contar fatos da cidade.
Perguntarei do pomar, do jardim, da horta, da palmeira.
Depois, farei minha nega sorrir a maior felicidade:
Precisamos saber onde mora uma parteira,
Porque vamos ter um filho. É verdade.

Neste momento, pode ser até que eu não diga,
Mas não quero filho nosso subindo o Monte Sem-Fim.
Vamos fazer melhor: Cercamos tudo com arame e urtiga.
Precisamos proteger nosso filho. Acredita em mim.
Não quero um neguinho depois desiludido, cheio de ferida.
Minha nega, nossa família será feliz assim.

Ah, eu já ia quase esquecendo,
Minha nega, o teu presente:
Um vestido de chita que só vendo.
Você vai abrir o embrulho num repente,
Cada vez mais se surpreendendo,
Vai perguntar o que acho, com o vestido à tua frente.

E vamos, junto à lareira, dançar,
Minha nega com seu novo vestido,
E o nego com nova alma a respirar.
O resto lá em cima esquecido,
Nada mais a lembrar, chorar.
Só por isso, valeu ter sobrevivido.

Minha nega, pode acreditar,
Nessa ladeira, não há cansaço.
Quanto mais desço a imaginar
Teu beijo, tua saudade, teu abraço,
A ladeira fica macia, ajuda o andar,
E coisa mais leve não há que o meu passo.

Agora falta pouco descer,
O nosso barraco já consigo enxergar.
Apesar do escuro a entontecer,
Surgem a porta, as janelas alumiando o meu olhar.
Com toda luz, minha imaginação traz você,
Que corre em minha direção a me abraçar.

Num soco, sou tragado pela realidade:
Tem tiroteio lá em cima, por onde passei.
Desço correndo, fugindo da cidade,
Lembrando e chorando tudo o que penei.
Mais tiros que vêm da atrocidade
Daquele mundo desumano, sem lei.

Minha nega, eles estão descendo,
São muitos chegando perto.
Estou no final da ladeira correndo,
Nenhuma árvore pra me fazer encoberto.
Eles continuam atirando, o chão estremecendo,
E eu mais uma vez fugindo de olho aberto.

As costas me ardem por um momento,
Depois do mais forte estampido.
Curvado, arrasto o corpo no tormento.
O nosso barraco à minha frente, vivo.
Tento levantar o braço, um só movimento,
Seguro o mais que posso o pacote com teu vestido.

De repente, a porta fechada,
Minha nega acendendo a lareira,
Nós dois abraçados na madrugada,
Trocando saudades, lágrimas, falando de palmeira,
Fazendo planos, filho, a noite enluarada,
Minha nega dançando com vestido de chita, toda faceira.

Perdão, minha nega, por tudo na vida:
Perdão, por eu ter chegado sem avisar,
Perdão, pelo meu sangue no teu vestido de chita,
Perdão, por mais uma vez eu te fazer chorar,
Perdão, pelo filho que não deixei na tua barriga,
Perdão, por eu ter voltado, e não poder mais te abraçar.

Voz - Reinadi Sampaio/Musica - Encruzamares - Márcio Arruda:

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Ao que vai chegar

Dora Brisa

Nem sequer um testamento,
Nem isso deixamos a ti.
O que fica são cinzas
Do que era para ter sido,
E acabou, antes de acontecer.
Tua herança fica
Nas balas perdidas,
Nos livros de botânica,
Com fotos de plantas que,
Quando havia cor verde, existiram.
Receba a poluição
Do ar, do solo, das águas,
Como presente do nosso passado.
Estuda os esqueletos,
Descobertos por teus arqueólogos,
Pois foram nossos animais domésticos.
Teus olhos de futuro brilham,
Enternecidos, diante dos desenhos
De pássaros, cães, gatos,
Seres acinzentados pelo tempo.
Teu futuro guarda a natureza,
Nas páginas de livros
Que tu só encontras em museus.
Se te sentires sozinho,
Ao voltares para casa,
Pensa que teu passado
Preparou a cômoda poltrona
Do não existir.
E já não precisas mais,
Como teu passado,
Pensar, sentir, viver,
Por que pouco restou
Para ser pensado, sentido,
E viver o futuro
Tem conotação de passado:
Fluido.
Fugidio.
Fugaz.
Natureza – coisa do passado.
Vida – coisa que já passou.
Ser humano – aquele que se foi.
Consciência – não há provas de que existiu.
Nem precisas debruçar
A alma sobre livros de poesia,
Por que já não há coração.
Sentimento passou,
Como toda vida passa.
E nada mais restou, resta, ou restará.
Tudo o que te falarem, além disso,
Não é a nossa história humana.
Pode ser a poesia mais louca,
Que algum desvairado ainda esconde,
Nos vãos dos escombros do futuro,
Que também já passou.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Mulher

Dora Brisa

Não sou mulher de uma noite
Nem de um dia só

Sou mulher que tem mais fases
Que a lua
Mais estrelas
Que o céu
Mais calor
Que o sol
Mais segredos
Que o universo

Não sou mulher para comemorar
Um dia
Que nada mais é
Que um dia
Um dia qualquer

Não sou mulher de receber flores
Quero logo o jardim

Não sou mulher de uma vida
Nem “foi bom enquanto durou”
Da lembrança banida
No tempo que passou

Não sou mulher do amanhã
(Amanhã será outro dia)

Sou a mulher bandida
Vadia
Mendiga
Vazia

Mulher que perambula na rua
Com pouca roupa
Maltrapilha, louca
De alma nua

Sou a mulher do infinito
Meu nome é eternidade
Neste dia não deixo sequer o meu grito

Sou a mulher que passa na esquina
Carregando crianças pela mão
Trouxa de roupas a lavar
Carrinho de papelão
Marido bêbado a escandalizar

Sou a mulher que apanha
Em casa
Na calçada
No trabalho
Só porrada

Sou a mulher que cala
Consente
Fala
Mente

Sou mulher que não tem dia
Tempo
Hora
Memória

Mulher sem identidade
Sem história

Amores? Todos que vivi.
Sou apenas (mais uma) mulher.
Meu nome? Geni.

Voz - Helena Antoun:

sábado, 7 de maio de 2011

Lembrança

Dora Brisa

Hoje, lembrei de mim,
Não quem fui,
Ou quem acho que sou.
Hoje, lembrei de mim,
Não o que vivi,
Ou o que vivo.
Hoje lembrei de mim,
Não dos livros que li,
Ou das canções que ouvi.
Hoje, lembrei de mim,
Não com quem convivi,
Ou com quem convivo.
Hoje, lembrei de mim,
Não do chão onde já pisei,
Ou das nuvens em que voei.
Hoje, lembrei de mim,
Não do jeito que já lembrei,
Ou do jeito que já esqueci.
Hoje, lembrei de mim,
Não das pessoas que vi,
Ou das pessoas que ouvi.
Hoje, lembrei de mim,
Não do que eu poderia ter sido,
Ou do que não quis ser.
Hoje, lembrei de mim,
De quem não sou,
Por não saber de mim.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Alguém viu?

Dora Brisa

Alguém viu meu sonho?
Ele deve ter passado por aqui,
Pois sinto o cheiro envelhecido dele...
Alguém viu meu sonho?
É pequenininho, raquítico,
Fala pouco, discreto...
Alguém viu meu sonho?
Não parece ser um sonho,
Pois anda sempre maltrapilho,
Olhando para o nada...
Alguém viu meu sonho?
Ele nem sabe que a mim pertence,
Mas o tenho como meu,
Meu sonho sempre perdido...
Alguém viu meu sonho?
Passa sempre desapercebido,
Não é um sonho grande, inteiro,
É meio verde, meio podre...
Alguém viu meu sonho?
Parece criança, mas é bem velhinho,
Curvado e ranzinza...
Só os sonhos do poeta
Não envelhecem...
Meu sonho vagueia pelas sarjetas,
Na companhia de uma garrafa de vinho
Mais velho que ele,
É atropelado por pesadelos
Que vêm e vão, nesta grande cidade...
Alguém viu?...

Voz - Elisa:

terça-feira, 3 de maio de 2011

Felizes

Dora Brisa

Final de tarde. Avenida movimentada. Duas mulheres pela rua conversam descontraidamente. Parecem cansadas, mas mostram-se felizes - como cada uma concebe felicidade.
A mulher que vai um pouco à frente gesticula, fala alto, e em tom animado, olhando para trás, pergunta à outra:
- Quer ajuda?
- Preciso não, já estou habituada.
Às vezes, o barulho ensurdecedor dos motores, das buzinas, impede que a fala de Celina chegue à Maria, que, acompanhando a gesticulação da companheira, sorri da forma mais simples que a vida lhe dá.
É Celina quem insiste:
- Imagine, Maria, que ainda tenho de preparar a janta, lavar roupa e adiantar a limpeza da casa para amanhã.
Mas tudo isso não parece preocupá-la, que continua a caminhar animadamente.Celina tem marido, cinco filhos, sem contar a mãe doente que vive no mesmo barraco. Maria mora sozinha, nunca conheceu família. Quando nasceu, foi colocada numa caixa de sapato, naquela favela. Na época, todos queriam saber da "mãe desnaturada" de Maria, mas enquanto buscavam respostas, a menina crescia, de barraco em barraco, até conseguir aqueles pedaços de tábuas e telhas, onde ainda mora.
De volta para casa, é Maria, pensativa, que interrompe a amiga, dizendo:
- Por mais que dê trabalho, Celina, esta vida é abençoada por Deus. Todos os dias, agradeço poder levantar e continuar trabalhando.E agradeço a Deus também por contar com tua ajuda, no trabalho.
- Que nada, Maria, trabalhamos juntas. Sempre foi assim. Já perdi as contas há quantos anos saímos todos os dias, para trabalhar. Você ainda lembra?
- Sei não, Celina, até porque pouco estudei. O que sei é que sempre fomos vizinhas, e sempre nos demos bem - responde Maria, junto com um sorriso meio tímido.
Enquanto os veículos passam, Celina continua a falar sem parar, gesticulando sempre mais. Repentinamente, olha para trás, secando o suor que lhe escorre à testa, e grita com a amiga, em tom zombeteiro:
- Quase chegando, Maria. Só faltam umas trocentas quadras.
E ambas continuam o trajeto que, mecanicamente, fazem todos os dias. A volta para casa é sempre razão de alívio, sossego, ainda que o cansaço seja cada vez maior. Mas isso não parece afetá-las, ao menos enquanto percorrem a avenida movimentada, em mais um final de tarde ensolarada e cansativa.
Nunca Maria e Celina tiveram um relógio sequer, nem receberam de presente um daqueles "clocks" Made in China que os sacoleiros oferecem na praça central, depois de escaparem da Polícia Federal, na fronteira com o Paraguai. Mas relógio jamais fez falta a elas, que sabem que chegam em casa, todos os dias, com o pôr-do-sol. Quando chove, interrompem o trabalho, debaixo de uma marquise qualquer, à espera confiante de uma chuva mais fina.
São décadas de labuta diária, e todo final de tarde encenam o mesmo roteiro: percorrem a avenida animadamente, até enxergarem a favela onde moram. O asfalto ficou para trás, e Celina e Maria buscam desviar ao máximo do esgoto que corre a céu aberto, denunciando o descaso com aquelas centenas de famílias que teimam em sobreviver.
Quando já nem rua mais parece existir, Celina abandona o carrinho cheio de papelão, que até então empurrara, para ajudar Maria, que redobra esforço no equilíbrio na cadeira de rodas. O carrinho improvisado fica na entrada da viela, ironicamente estacionado, no aguardo de Celina, que agora empurra a cadeira de rodas, que Maria não consegue mais conduzir.
Hoje, ainda é dia de sol, elas continuam a conversar, em tom mais baixo, mas animadamente. Quando chove, a lama impede a rotina das duas, que buscam sempre, com olhar metódico, o caminho transitável. Por vezes, Celina escorrega na lama, e a cadeira de Maria desliza até chocar-se numa pedra qualquer, enquanto as duas sonham que ainda são crianças, e riem sem parar, uma olhando para o rosto enlameado da outra.
Só depois que Celina consegue colocar a cadeira de rodas dentro do barraco de Maria é que retorna para empurrar o carrinho de papelão, que ficará guardado até amanhecer, quando será levado ao comprador de sucatas. Todos os dias são assim: Maria e Celina percorrem a cidade catando papelão.
Amanhã, com certeza, estarão novamente transitando pelas mesmas ruas. E enquanto Celina gesticula, fala alto, empurrando o carrinho, Maria sorri timidamente, empurrando o próprio corpo. E isso parece bastar para ambas serem felizes.