sexta-feira, 24 de junho de 2011

Calçada da fama

Dora Brisa

Ele não chegava ser o melhor, mas era bom, em tudo o que fazia – e o que fazia era tão pouco. Realmente, se esforçava para ser bom – sabia que não era. Mas sabia também que era o melhor que podia ser.
Na vida, teve um só caminho – que já não enxergava mais. Entre tantos descaminhos, embriagava-se do não existir, e sonhava com o existir que não existia. Não sabia ele que o caminho (do sonho) é que mantinha o rumo sem rumo em que ele sempre se via.
Poucos o enxergavam, por que o que era visível, nele, transitava rarefeito, na multidão. Nada o identificava como ser humano unico, no meio de tantos seres humanos unicos. Jamais pensara sobre isso. Obedecia a servidão, que seguia à frente dele – em tudo, por todos os lugares.
Nem podia sequer pensar que perdera o rumo – não era predestinado. Sabia disso, sem pensar. Qualquer descaminho poderia representar um caminho. E, entre um gole e outro de aguardente viva, sabia ele, sem pensar, que a vida o consumia, o afastava do que ele nem sabia, e, por isso, não pensava.
Fizera escolhas, a vida inteira – também, sabia disso. Por vezes, fora escolhido por outras pessoas, e escolheu caminhar com elas, por algum tempo, até a beira dos abismos humanos – que eram tantos, ele pensara, uma vez. Mas todo caminho tinha fim – de linha. E não havia mais para onde caminhar. Ele sabia, sem pensar. Com alguns seres tão humanos quanto ele, chegou percorrer caminhos abismais – dores e tonturas sem fim. Mas ele – sabia – não poderia teimar tanto. Não existiria o fim do fim. E fim.
Ele percorrera descaminhos que a inveja chamava sucesso, fama, lucros inimagináveis na Bolsa. Não queria pensar sobre isso. Todos, descaminhos afastando-o – mais e mais – do caminho que ele nem sabia mais qual era, e, por isso, não podia retornar. Já não sabia mais se o caminho verdadeiramente existiu, ou foi um caminho sonhado, entre uma embriaguez e outra de uma vida que nunca sentiu pertencer-lhe. Ainda assim, ele caminhava – cambaleava entre os descaminhos, os caminhantes e desencaminhados. Sem pensar, sentia que tinha um caminho – dele proprio, unico. Não sabia que caminho mais poderia ser.
Sabia que, um dia, morreria. Nem sobre isso queria pensar – não tinha o que pensar a respeito. Retirou a gravata e o casaco de griffe italiana, os sapatos que trouxera de Londres, enrolando-os em forma de travesseiro. Depois, acomodou-se nas pedras disformes da calçada. Deitou, finalmente, o corpo cansado. Adormeceu. Dos transeuntes que por ali passaram, nas horas que seguiram, poucos o enxergaram. Um deles roubou-lhe o casaco, levando a gravata, desajeitada em um dos bolsos. Uma senhora deixou-lhe uma moeda, junto à mão dele, inerte na calçada. O sonho dele tinha valor - finalmente. Dez centavos.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

A alma da mata

Dora Brisa

A alma desata
Um grito engasgado,
Na boca da mata,
Terreno sagrado...

Suspiro contido,
Respiração ofegante,
Nenhum ruído...
Só o instante...

A mata sagrada
Convida o caminhante
A seguir a luz da estrada,
Ainda que vacilante...

Em passo incerto,
Adentra a mata...
A luz, cada vez mais perto...
A alma se dilata...

O humano ficou para trás,
Feito lembrança...
Silenciosa, a mata faz
Brincar a criança...

Mata - mistério,
segredos,
cemitério
de todos os medos...

O mundo já não existe mais...
Só troncos, folhas - Vida!
...E muita paz
Na alma agradecida...

Mata - que tanto bem nos faz,
Companhia segura,
Nos desvenda
A vida mais pura...

Por entre as árvores seguimos
Os passos dos Donos da mata...
Seguros, nosso caminho abrimos
Na consciência que se desata...

Brisa suave nos faz continuar...
De mãos dadas,
Eles insistem em nos mostrar
A seguir suas pegadas...

E lá vamos nós,
Seguros, mata adentro...
Escutando sempre a voz
Das folhas, da cascata, do vento...

Voz - Rosany Costa:

domingo, 12 de junho de 2011

Nos limites do amor

Dora Brisa

Todos dizemos que o amor desconhece limites...
Engano seu...
Engano meu...
Engano nosso...
Os limites do amor são nossos,
Tão nossos,
Que não há amor
Que não passe desapercebido
Pelos sentimentos de posse e ciúme...
Não há amor imune
À desconfiança e à insegurança...
Não há amor que não passe pelo crivo
Da saudade e da solidão...
Não há amor sem limite...
Alguns amores vão mais longe:
Passam pela amizade...
Outros, mais adiante:
Chegam à cumplicidade...
Outros e outros: quem sabe onde vão ancorar?
Não se vive
Um pequeno ou grande amor:
Se vive – apenas isso...
Aportando mais perto, ou mais longe,
Todos amores...
Todos limitados por nós mesmos,
Que sequer assumimos
Nossos próprios limites,
Inclusive o de amar – amar com limites...

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Bendita

Dora Brisa

Muito bem dita
A tua palavra - bendita!
Bendizes a vida apre(e)ndida,
a vida maldita...
Bendita palavra
Que bendiz o encontro - sorte...
o desencontro - morte...
E bendizes a terra,
a água,
o ar,
o fogo...
Bendizes a lareira - abraço...
o caminho - compasso...
Bendita luz do teu olhar - girassol...
Bendito silêncio, na ausência do sol...
Por que bendizer a dor?
Respondes tu: É a
Última esperança (ferida) do amor...
Caminhas bendizendo,
De olhos fechados e infelizes...
Bendizes o choro abafado,
o som das perdizes...
Bendita flor,
Que no teu caminho nasce,
Para perfumar
Tua esperança, até que passes...
Bendita eternidade,
Que te faz lembrada, esquecida...
Bendito fruto que se doa em
Semente - vida!
Bendita és tu!...

Voz - Elisa:
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segunda-feira, 6 de junho de 2011

Habitué

Dora Brisa

Não remo contra a maré,
Não tenho remos,
Não tenho fé.

Nem extremos.

Não estou na senzala,
Não sei meu endereço,
Não consulto a Cabala.

Nem sempre amanheço.

Não compreendo gente,
Não sei de mim,
Não sou coerente.

Sempre desvio do fim.

Neste habitué sempre vulgar,
Não procuro caminho,
Não tenho lugar.

Em constante voo sem ninho.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Dora Brisa

Nosso olhar não é mais um só...
Nossas mãos não se tocam mais...
Das lembranças, apenas pó,
Para alguém que não se permite mais sonhar...

Ao longe, tuas palavras ainda ecoam...
Aqui dentro, o silêncio arde...
Inseguros pensamentos sobrevoam
A certeza de que tudo passou: Já é tarde!...

Com o vazio da vida, o coração emudece...
A noite chega escura, lentamente...
Com a brisa, teu nome aparece...
Em vão, busco tornar-te presente...

Mas teu coração não parece mais sentir...
Em vez da tua mão, toco apenas o ar...
Da caminhada, não posso desistir...
Reergo-me - só -, com o coração a chorar...

Pior do que a certeza de ser só,
É saber que perdeu,
Não um tesouro humano – pó -,
Mas um espírito-irmão que te esqueceu...

Assim, continuo a viver:
Sem tua mão, teu olhar...
E a alma - solitária - a sofrer
A falta do colo a sonhar...

Voz - Helena Antoun:
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