sábado, 15 de outubro de 2011

Dona Zita

Dora Brisa

No armazém da d. Zita
- legítima portuguesa –,
Vende-se e compra-se
Bacalhau e Vinho do Porto: “uma riqueza”.
D. Zita vem me atender
- expressão arredia –,
Arregala os olhos para crer:
Falo português – que alegria!
Nostálgica, penso em voz alta:
“Ao monte alto o Capitão
Deu o nome de Monte Pascoal;
E à terra, Terra de Vera Cruz (...)”
D. Zita me olha interrogativa.
- É frase de uma carta
De um tal Pero Vaz de Caminha
- respondo evasiva.
(Ela não tem obrigação
de saber. Afinal, Caminha
não endereçou a carta à d. Zita.)
A portuguesa me pede
Notícias do “nosso Brasil”,
Com o mesmo brilho no olhar
(será?)
Que um dia encantou-se um tal Cabral.
- Lembra os índios brasileiros, d. Zita?
Quase todos extintos.
Mas o Brasil tem muitos “brancos” e negros
Que perfuram as orelhas,
O umbigo, as narinas, as sobrancelhas,
Os lábios, e até a língua,
Onde penduram o que chamam “piercing”.
- Tem mais, d. Zita:
Hoje, negros e “brancos” brasileiros
Também pintam o corpo,
Como faziam os índios com urucum.
É moda.
Chamam tatuagem.
De repente, ouço um fado:
Amália Rodrigues?
Não.
É a alma de d. Zita
Que canta baixinho,
E suavemente se agita.
- Quer saber dos negros,
Bondosa portuguesa?
(negros que os seus patrícios
vilipendiaram com escravidão)
No “nosso Brasil”,
Ainda sofrem discriminação.
Como na África – resistem.
Ganha todo o povo brasileiro,
Que tem samba, capoeira,
Feijoada, vatapá,
Até Candomblé
(com a benção de
todos os Orixás).
- Futebol brasileiro, d. Zita?
Anda mal das pernas.
Não temos mais Pelé
(negro também).
Os jogadores perderam a agilidade,
Com o peso do dinheiro nos bolsos.
Nos estádios lotados,
Carregam mulheres louras
(Marias-chuteiras)
E carros importados.
- As crianças e os velhos
Do “nosso Brasil”?
Mudemos de assunto, d. Zita.
(Por favor, senhora,
não me obrigue relatar as
atrocidades cometidas
contra os filhos de ninguém.)
Apesar de e por tudo,
D. portuguesa,
Brasileiro é um povo
Bem-humorado,
Faz piada dos portugueses,
Com quem sente afinidade.
(A propósito, a senhora
conhece aquela piada da bicha
no consultório do urologista?
Melhor não contar.)
Brasileiro é trabalhador
(pode acreditar, d. Zita):
Planta, colhe,
Só não tem o que comer.
Por isso, alimenta a alma
Sempre com um sorriso
- às vezes banguela -,
Recebendo o estrangeiro
De praias e braços abertos,
Rindo da própria desgraça
(Não vou entristecê-la mais,
contando que a minha terra
está ficando sem palmeiras,
nem sabiá.
Por isso, as aves não
gorjeiam mais lá.)
Inesperadamente,
Pressinto o encontro das águas
Do Tejo com o Amazonas,
O Araguaia, o Guaíba,
O Velho Chico, o Parnaíba.
Recolho minhas lágrimas refletidas
No Velho Tejo que transborda.
Saio do armazém,
Com a sensação de ter deixado
D. Zita cantando um saudoso fado,
Às margens do Alentejo.
Volto para casa sentindo-me
(mais uma vez)
descoberta.
Ah, que vontade que dá
De voltar para o “nosso Brasil”,
E esperar por Cabral.
Ele poderia, dessa vez,
Levar d. Zita.
(Quem sabe?)
Pois, pois...

Voz - Paula Xavier:

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