domingo, 27 de novembro de 2011

Amnésia

Dora Brisa

Quando aqui cheguei,
Percebi que tinha perdido algo
(a memória? talvez!).
Esqueci que amor hoje
Pode ser indiferença amanhã,
Que revolta pode ser
Egoísmo simplesmente,
Que a vida pode representar
Somente nascer, viver, morrer.
Quando aqui cheguei,
Não sabia mais nada,
Nem que a inveja pode
Apresentar-se vestida de admiração,
Nem que a falsidade pode
Esconder-se no reflexo de doçura,
Nem que muitos castelos, casarões podem
Ser refúgio de máscaras familiares,
Nem que a luz pode esconder a escuridão.
Quando aqui cheguei,
Havia esquecido que,
Assim como se vive por amor,
Também se mata - se morre - por ele.
Eu - juro - não sabia
Que uma inofensiva faca de cozinha
Pode cortar mais que uma cebola.
Eu tinha esquecido que um olhar
Pode brilhar também de raiva.
Quando aqui cheguei,
Não pude ensaiar
Meu primeiro passo:
Simplesmente tropecei
Dentro de mim,
Embaracei - perdi -
O fio da meada,
Porque não havia memória,
E o pouco do nada esqueci.
Quando aqui cheguei,
Segui a marginália errante,
Que busca perguntas,
Rejeita respostas,
Foge do que alumia,
Salvando-se no colo da escuridão.
E já não me faz falta a memória,
Esse saber que nunca tive,
Porque a loucura não me deixa só na história.

Voz - Helena Antoun:

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Vida de artista

(presente do amigo Guilherme: “procura-se a autoria, para agradecer a foto, e pedir licença para mantê-la publicada”)

Dora Brisa

... e a vida é só isso: tudo. Nada...
... Nascer artista não é dom – é sina... Nascer artista é morrer para o que chamam 'normalidade'... Não se pode nascer e crescer artista (por que outro destino não há), sem se pagar um preço muito mais alto, se comparado àqueles que se reduzem à maioria...
O artista pode até se rebelar à sina, decidindo (achando que pode mesmo) ser 'normal' – jamais o será... Simplesmente por que continuará sendo artista – às vezes desleixado, outras parecendo desinteressado, ou até demonstrando sensibilidade exacerbada, a qual pode ser questionada e até mal-interpretada pelos demais (que não são artistas).
Para quem assiste, artista é atraente, por que parece viver na excentricidade – o que nada mais é que a falta de jeito no lidar com o mundo, pelo menos o mundo da 'normalidade'. Para o público e os fãs, artista não chora, não sofre, não come, não tem cefaléia, diarréia, dor de dente, não bebe, nem faz xixi – tudo é cênico, inclusive e principalmente a (miserável) vida de artista. Por isso, a criação de revistas de fofocas, por todo País, é hoje investimento sempre seguro: todo mundo quer saber dos artistas – não da vida (sina) deles, mas da aguçada imaginação daqueles fofoqueiros de plantão que resolveram melhorar de vida, às custas de vidas que nem existem.
Para quem convive com os artistas, não há nada excêntrico; pelo contrário, o cotidiano (natural à maioria) pesa nos ombros do artista. Artista vive de amores e horrores – ilusões e decepções... E isso é tudo na sina do artista, por que o resto é recheio disso – ora um tanto amargo, ora mais adocicado, mas sempre ficando um mal-estar na alma do artista... Quem convive, sabe: artista não suporta calculadora, nem cadernos de economia, política, futebol. Artista lê até classificados, quando acabam os cadernos de cotidiano e cultura. Anúncios fúnebres? Nem pensar. Artista já sofre, mesmo antes de nascer – não aguenta saber a morte dos que nem nasceram para a anormalidade do existir.
Artista tem tantas vidas, tantas quantas humanas... Tem aquela que ele nasce – artista. Tem aquela que ele sonha. Tem aquela que ele observa. Tem aquela que ele imagina. Por isso, artista é feito a ferro e fogo, forjado nesta vida, que é única.
Artista é atemporal. Fora do (seu) tempo e do (seu) espaço, ele vive o que acha que é viver... Mas o artista não pára para pensar nisso, não: ele vive além ou aquém do tempo, do espaço. O artista nunca parece estar onde está, por que onde ele está é além de onde está. O artista se debruça nas entrelinhas, como o pescador a observar o mar... E este momento é único – tudo do nada do existir...
Artista está sempre em desequilíbrio: ou se esforça, forjando uma vida que parece ser sua, ou nem levanta da cama, em dia de sol e compromissos lá fora. Oito ou oitenta: de outra forma, artista não sobrevive... Antes mesmo de nascer, sabia que ia ser assim: um dia a mais, um dia a menos... Mas artista não conta os dias, nem as emoções. Artista vive, mas nunca está seguro disso. Há momentos em que, fazendo uma coisa qualquer – tão humana, tão igual -, o artista se depára consigo mesmo, e se estranha, e se admira. Num simples prato culinário, o artista se enxerga: artista, desprovido de qualquer outra vida, senão a sua própria arte. E ninguém mais testemunha a existência do artista, neste instante.
Para quem o conhece, o artista até parece 'normal', mas, dentro dele, no fundo da alma que lateja, a vida é assombro, êxtase – o tempo inteiro... Artista não consegue se recolher numa concha, e amar uma só criatura, contentar-se com os descendentes de sangue. Não. Simplesmente por que artista ama a humanidade inteira. Artista carrega dentro da alma, muitas vidas, muitos amores – por isso, colocam-no, quase sempre, no palco da promiscuidade. Mas artista quer conhecer mais que muitos corpos. Artista quer reconhecer, na emoção do outro, a própria emoção do existir. Artista quer dar e receber amor de tanta diferente gente, como já cantou o poeta.... Por que artista é um tumor inflamado de tanto amor pela humanidade. Mas isso não serve nem para justificar a falta de regra na vida (sina) do artista.
Artista é injustificável, por que não mora no seu próprio mundo – mora no mundo vizinho, onde existem leis que só reconhecem deveres, não direitos à vida. Neste mundo vizinho, onde o artista foi despejado, só se ama verdadeiramente uma pessoa de cada vez. Mas o artista não tem tendência à poligamia – ele só quer continuar amando toda a humanidade, sentindo as emoções que fluem das almas. O artista quer sentir vida, mesmo no mundo vizinho. O artista só quer continuar sonhando que, no fundo da alma humana, todos sentem, se emocionam e também querem mudar o mundo. Enquanto isso, o artista tenta adormecer, por alguns momentos, sonhando – acordado ainda – que amanhã será outro dia. Mas o dia acorda – como todos os outros dias – com cara de insônia.
... e a vida é só isso: tudo. Nada...

domingo, 20 de novembro de 2011

Despedidas

Dora Brisa

Não deveriam haver despedidas -
Nem nas estações rodoviárias e ferroviárias,
Nem nos portos e aeroportos...
Nos cemitérios - apenas um até breve...
Não deveriam ser permitidas
As longas viagens de separação...
Não mais despedidas de grandes amores,
Sequer as pequenas dores...
Não deveriam ser permitidos
Os adeuses encharcados de lágrimas,
Nem tampouco o beijo apressado (amargo),
Com gosto de despedida...
Não deveriam ser permitidos
O choro de quem fica
E o silêncio de quem parte,
Sem saber se vai voltar...
Não deveria ser permitida
A construção de estradas
Que separam, distanciam, desviam corações...
Por lei, deveria ser permitida - tão-somente -
A viagem de quem não segue sozinho...
Toda bagagem deveria conter,
Obrigatoriamente,
Todo sentimento - coração -,
Para quando longe fosse aberta,
Surgissem a família, os amigos,
E até um pouco de chão...
Muitas árvores, passarinhos...
Um colo, uma mão amiga,
E tudo o que se mereça para ser feliz...
Para repouso, uma canção de ninar...

Voz - Sereníssima:

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sonetto

Foto: Denise
Dora Brisa

Toda madrugada sem par,
Depois que adormeço,
Vem um pássaro cantar,
Na fresta de vida em que escureço.

Canta canção triste,
Dor profunda a desamparar.
Tanto, tanto insiste,
Que dói em mim, sem cessar.

O pássaro leva meu sonho,
Para longe, bem longe, enfim.
Sem mais cantar, voa tristonho.

Nada mais resta em mim:
Eu fico sem canto, sem sonho,
E acordo cantando triste assim.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Anima

Dora Brisa

Hoje, sinto estar plena,
Plena de mim,
Plena em mim,
Plena comigo.
Fiz o que pude,
E o que não pude, também.
Se não fiz o que
Os outros desejavam,
Foi por não saber fazer,
Ou por não querer fazer,
Ou não querer saber fazer,
Ou nem lembro mais por quê.
Só não fiz o que
Dependia do outro, dos outros.
Se não foi feito,
Faltou o outro
(E eu a esperar).
Muitos não me compreenderam
(Nem eu me compreendo).
Alguns compreenderam-me pouco,
E assustaram-se
(Também, eu me assusto comigo).
Sonharam muitos sonhos,
Para mim
(Esqueceram de acordar-me).
Traçaram destinos,
À revelia da minha vida predestinada
(E eu em desatino).
Quiseram-me obediente,
Até previsível
(E eu fascinada pelo impossível).
Podaram minhas asas,
De onde nasceram
Sonhos que não voam.
Tentei falar-lhes,
Pelo idioma humano,
Mas sou indomável às palavras.
Das vidas que não vivi,
Restou-me dor dilacerante,
Ancestral!...
E o que sei é que guardo
Lembranças do que viverei,
E isso dilacera de dor,
As minhas memorias mais antigas.
Por isso, também,
Sinto-me plena,
Tão plena,
Que poderia morrer,
Nesta madrugada
Mais plena que eu,
E menos fria.
E não haverá vida
Que saiba da vida minha...

Voz - Rosany Costa:

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Fio da navalha

Dora Brisa

“Por ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar
o abismo de que sou feita.” (Clarice Lispector)

Um final de dia insosso, como o é o outono, em todos os seus lânguidos dias e noites. Restam apenas o fragor do verão e o prenúncio do frio que traz o inverno. Em passos lentos, dirijo-me ao banheiro, como quem carrega poucas roupas numa valise, procurando um só vagão na estação de trem.
Não havia planejado, mas desejo agora imergir em água morna. O desejo de tornar-me liquefeita toma conta de mim. Com certa violência – eu, que detenho em mim, gestos imperceptíveis -, começo a encher a banheira de água límpida, translúcida, vaporizando o azulejo frio e rijo do banheiro.
Ouvindo o barulho da água que jorra na banheira ainda fria, tiro do meu corpo, o vestido simples que cobriu-me do meu dia já vivido – passado. Na calcinha, uma fraca nódoa vermelha. Detenho-me na água viva que jorra, na qual banharei minha vida.
Nua, diante do espelho que circunda a banheira, deixo-me inundar pelo sentimento mais humano que prevalece: piedade. Enxergando além do corpo, com a largueza que o vapor da banheira me dá, penso nas tantas vidas vividas por este só corpo só. E é pelo espelho que vejo cair, timidamente, uma gota vermelha. E mais outra.
Quando baixo o olhar, agora rendido pela realidade, que – dominadora – se sobressai, o que vejo é um filete vermelho a escorrer na minha coxa direita. Sangue. Do meu corpo, desliza um tênue fio de navalha cortante. O mesmo sangue que escorre dentro do meu corpo, que se perde em veias, vasos, artérias, brota agora para fora de mim, como se não houvesse mais espaço lá dentro para tanta vida vermelha.
Aos poucos, o filete se alarga, e já não mais escorre somente pela coxa direita. Busca outros caminhos na coxa esquerda. E o que vejo agora é minhas pernas banharem-se de um vermelho vivo, viscoso. Meus olhos rendem-se ao vermelho cintilante, e também eu inundo-me da vida que verte de dentro de mim. No tapete, uma gota de sangue sobrepõe à outra. E mais outra.
Nada mais sinto. Neste instante único, esfacelo-me em gotículas de glóbulos brancos e vermelhos, que abandonam meu corpo íntimo, entregando-se ao primeiro capacho que as acolhe. Gota a gota.
Lentamente, uma hemorragia caudalosa se forma junto aos meus pés. Enquanto implora o que ainda não entendo, mais e mais sangue jorra de dentro de mim. Já não são gotas que juntam-se umas às outras. Rompem-se todas as comportas, e não há outro jeito, senão aceitar silenciosamente o correr das águas do rio, que retornam finalmente ao leito de origem – o chão frio, agora coagulado.
Água pura vem unir-se à pequena e presente poça de sangue. Detenho-me a olhar minuciosamente a água que tenta lavar o vermelho que pinta o azulejo de vida. Mas nem o insistente líquido transparente retira o brilho sanguinolento do chão onde se aloja. Só assim percebo que, como eu, a banheira transborda, dando passagem à água, que, como meu sangue, também é vida. Enquanto desligo a torneira, dois tipos de vidas diferentes – duas composições químicas provindas da mesma natureza – disputam espaço no azulejo inerte, fundindo-se num vermelho ainda mais líquido.
Penso. E o que penso agora é que a vida brota de dentro de mim, num só impulso desesperado, desesperador. Mas não me desespero. E ainda penso. Enquanto o fio da navalha liquefaz de vermelho o meu corpo.
Será isso o que chamam de parto? Se – finalmente – estou parindo, onde está o corpo fetal? Será que vou parir um feto coagulado no azulejo sempre inerte? Será que o coágulo – meu filho – dará vida ao azulejo?
Por que um filho – nunca por mim desejado? Estarei parindo o sonho de tantas mulheres? Por que eu – logo eu -, que nunca desejei ter um só filho? Por isso estou parindo assim: em coágulos que coagulam outros coágulos?
Será isso um aborto natural? A revolta de um filho contra a própria mãe, que nada fez para tê-lo, ou detê-lo? Que jamais imaginou desejá-lo? Que dizer a este filho-sangue, que se recusa a transformar-se carne da minha carne, neste ato insano de doação ao nada? Serei eu o nada a quem este coágulo-filho se doa pungente, num só gemido escarlate?
E se estou a parir outro Messias, outro Salvador? Mas nem me chamo Maria. E também não sou santa. Não saberia sofrer a dor de mãe, aos pés da grande cruz. Oh, Pai, afasta de mim este cálice, porque não saberei beber, num só gole, este sangue que continua a sair de dentro de mim.
“E erguendo a taça de vinho, Ele disse: Eis aqui o meu sangue”. O que jorra de dentro para fora de mim é vinho? Vinho que agora azeda abandonado no azulejo? Terei plantações de uva dentro de mim – cada vaso, uma semente? Parreiras imensas, infindas, que desfolham no outono? Serão as folhas ressecadas que agora – liquefeitas e avermelhadas – tingem minhas pernas, meus pés, até o azulejo que não é meu?
Mas ainda sinto dentro de mim, sangue a correr nas veias. Cada vez mais célere, como a multiplicar-se loucamente, na vã tentativa de compensar a falta das folhas secas, que continuam a cair, a inundar de vermelho os meus olhos.
“O meu sangue ferve por você”. É a música que a memória me traz. Cada vez mais presente aquele dia em que resolvi caminhar entre os barracos no morro. Era essa música que saía de um rádio à pilha, que escorava a porta aberta da casa da lavadeira, que, assoviando, estendia brancos lençóis ao vento. Nada mais lembro.
O sangue que escorre de mim não é fervente. Nem parece morno. Insólito. Desliza sem pressa nas minhas pernas, que às vezes estremecem. Se pelo menos o sangue fervesse, eu sentiria minhas pernas protegidas. Quem sabe até me banhasse no vermelho que escorre, buscando sentir-me tão liquefeita – o próprio sangue -, como jamais me senti na água pura e morna da banheira.
Sinto-me impelida à auto-comiseração. O sangue que até agora viveu em mim quer doar-se por inteiro – ao nada. E já não sei se, nesta doação involuntária, restará sequer uma gota de vida vermelha em mim.
Será que isso está acontecendo, por que nunca fiz sequer uma mísera doação? Será que meu sangue acumulou-se em tempo cronometrado, para, num só e decidido ímpeto, esvair-se em doação desmedida, até a última gota?
Se em mim não restar um só filete de sangue a rastejar nas veias? Serei eu a única pessoa a viver sem vida? Com certeza, tomando conhecimento do meu estranho caso de doação ao nada, cientistas me farão de cobaia em suas experimentações cada vez mais absurdas. Como absurda seria a minha vida sem sangue. Quem sabe até minhas veias recebessem doação de sangue de barata. Porque só as baratas sabem doar-se à morte, ao nada. E ainda procriam, multiplicam-se. Talvez seja por isso que barata não tenha sangue. Irei me tornar uma barata? Não. Prefiro a borboleta, voltando sempre à sua crisálida. Borboleta não tem sangue? Mas tem asas.
De dentro para fora de mim, acontece um assassinato. E eu inerte, e eu pálida, e eu pintada de vermelho insólito, como o próprio azulejo frio, indiferente. Dentro de mim, alguma coisa mata uma outra coisa que jorra sangue para fora de mim. Será um sinal? Um pedido de socorro? Mesmo que decifrado o grande enigma, quem ouviria meu pedido de socorro? Estou no vigésimo terceiro andar deste prédio emudecido. Nem que se configure a total doação involuntária – até a última gota deste sangue que coagula -, nem assim um só glóbulo vermelho chegaria à entrada desse edifício.
E se eu embalasse este sangue coagulado, e arremessasse o pequeno pacote improvisado pela janela do banheiro? Será que chegaria até lá embaixo? Será que alguém – um só alguém – se deteria, por curiosidade, ou simples compaixão, na vida que continua a brotar de dentro de mim?
Resignada e compadecida, ajoelho-me, nua (rendida), na poça pegajosa de sangue. Nada mais penso. E o que sinto é uma extrema emoção, nunca sentida por meus sentidos – todos concentrados neste instante que escorre no sangue, cada vez mais vivo, borbulhante até. Pela primeira e única vez, estou ajoelhada em cima da minha vida mais secreta, mais íntima. O que sinto nas minhas pernas e nos meus pés é o sangue que corria lá dentro, e agora se doa ao nada.
E o que sinto mais forte é que agora estou dividida: parte de mim corre entre vasos, artérias e veias, e a outra parte coagula no chão estéril, silencioso. E ainda assim vivo. E ainda o vermelho toma conta das minhas pernas, dos meus pés, colorindo até o azulejo antigo. Por um momento, fecho os olhos, e deixo-me invadir pela tontura condescendente.
Braços largados até o chão, sinto meus pulsos enfraquecerem. Será o fim? Fim de quê? Se a vida ainda brota de dentro de mim, e torna cintilante o coágulo que meus olhos – agora abertos – vislumbram. Na lápide derradeira, ficaria registrado, entre heras e ervas daninhas: Aqui jaz uma criatura que doou a vida ao nada, até a última gota. E outra coisa não restaria, porque já teriam limpado o coágulo seco deste banheiro.
Mas se de fato for a morte, de que me valeu a vida? De que valeu o escorrer do sangue pelas minhas pernas? De que valeu eu sentir o vermelho escarlate tingindo meu corpo – por dentro e por fora?
Nem sequer um filho? Mas nunca desejei parir um filho. Mas se eu desejar algum dia? De que me vale agora o fim, este sangue que coagula entre minhas pernas?
E se um dia, complacente, eu aceitar ser Maria? E quiser parir o sangue salvador? E se eu juntar todas as lágrimas e dores, para chorar aos pés da grande cruz?
E se eu decidir tomar, num impetuoso e demorado gole, de uma só vez, todo este vinho que o dentro de mim despeja para fora? E se, ainda assim, eu sentir o doce do coágulo que doa a vida ao nada? E se?...
E se eu me recusar a seguir esta doação inteira ao nada? E se eu quiser estancar este sangue que teima em sair, como lágrima incontida? E se o meu medo coagular agora – neste instante – até a última gota de sangue que resta ainda dentro de mim?
Quando criança, ouvi a benzedeira dizer, na sua sabedoria plena, que deve-se colocar compressa de açúcar, para se estancar o sangue. Quero adoçar meu sangue vermelho – não este que já está fora, que já não é mais meu. Quero tornar doce o sangue que faz meu corpo todo estremecer à sua passagem.
Se meu sangue é a minha vida, minha vida escorre agora borbulhante de benzeduras, simpatias, mandingas. Ouço as novenas das beatas fiéis à Nossa Senhora da Boa Morte.
Já não penso, porque o sangue que ainda vagueia dentro de mim transita tão-somente no meu sentir. Sinto dificuldade para respirar. E já nem sinto as veias pulsarem – sequer a aorta. O que sinto, mais que isso, é uma câimbra febril nas pernas e nos pés. Uma febre lancinante, viva. Enquanto o vermelho se faz agora em vagarosos coágulos, que obedecem a ordem da cadeia que impera, coagulando o chão – que nem mais azulejo é -, para receber a vida que se esvai.
Sem nenhum pensar, olho para a poça sanguinolenta. Minha boca está seca, sedenta do sangue que já não é mais meu. Num impulso de misericórdia – semelhante àquele da mulher que roubou três pãezinhos na padaria -, também eu roubo um coágulo da perna que continua sendo minha.
O sabor que me chega à língua é agridoce, tal qual minha vida. Pela primeira e única vez, degusto o sabor insólito da minha própria vida. Saber não é sentir. E para sentir, é preciso não saber. Por isso, nada sei da minha vida. Sinto.
Que seja esta a última gota do sangue que já foi meu. Demoro-me em degustar o agridoce de que é feito o dentro de mim. Voltando o olhar à poça no chão, sinto que me embriaguei com o meu próprio vinho, engolindo toda a vida que ainda vivia entre os coágulos agora secos.
E agora meu paladar jamais voltará a ser o mesmo. Porque antes de degustar o vinho de dentro de mim, pensava eu que sabia, que conhecia sabores. Pobre consciência, que para tudo busca definição.
O sabor da laranja não está na laranja. Porque o verdadeiro sabor da fruta é o que ela carrega no broto da flor, que se doa em fruto. O sabor é sempre genuíno – como o sangue que ainda goteja insistente entre minhas pernas amortecidas.
Aceito a doação involuntária – desde que não seja para o nada. Quero doar-me em semente, depois tronco, galhos, folhas, flor, até o bendito fruto sabor genuíno. Que meu sangue dividido – o que goteja fora de mim, e aquele que borbulha lá dentro – regue a semente do que será o sabor genuíno de todas as coisas. Porque eu experimentei, sem vacilar, o cálice do meu próprio vinho, e tomei-o à última gota vermelha.
E nada mais poderá ser como antes. Porque o meu medo foi destruído pelos coágulos sanguinolentos que continuam a coagularem-se entre si. O que se forma é uma massa espessa no chão, aparentemente dura, que se desfaz com a primeira gotícula vermelha que segue o curso natural: de dentro para fora de mim.
Meu corpo tremeluz agora na penumbra do banheiro. E a auréola da poça coagulada começa a escurecer. Já não cintila mais o sangue borbulhante. Não há mais vida? Vida existe ainda – dentro de mim. Mas fora de mim, meu corpo padece, como padecem todos os corpos que se doam desmedidamente. E já não há mais força para soerguer-me. E já nem quero mais levantar. O sangue a escorrer lentamente. Ainda.
Quiçá meu último pensamento humano: e se tudo isso for apenas um sonho, um mísero sonho de um corpo cansado? Não é um sonho. Porque o agridoce toma conta da minha boca, que chega a arder em saliva. Enquanto o dentro de mim se esvazia.
Sentir minha vida por um fio de navalha faz-me concentrar na passagem de cada glóbulo, dentro para fora de mim. Não há revolta. Nem aceitação. A desistência simples – sem artifícios, ou heroísmo – a tudo assiste. Calada. Tudo sente. E consente.
E também não há dor – porque nenhuma parte do meu corpo foi decepada. E meu sangue não esguicha, em sinal de emergência. Agora, somente um tênue fio vermelho perpassa a linha quase invisível que separa o dentro do fora de mim.
Minha cabeça cambaleia à frente. Sinto que não preciso mais manter os olhos abertos. É o meu corpo que sangra, que sente. E a vida a gotejar humildemente. Sem nenhuma pressa, ou prece.
Cada vez mais vazia de sangue, uma lembrança vaga me chega: Quando criança, eu estava sempre a aventurar-me em bicicletas, árvores enormes. De quando em quando, um arranhão aqui, outro ali. Eu não chorava. Podendo alcançar o ferimento com a língua, ficava a lamber o meu sangue – este mesmo sangue que agora sai de mim -, até estancar a ferida.
Hoje, são tantas feridas, que eu não teria saliva para lambê-las todas. Até porque o sangue que deixa de ser meu, neste instante, não brota de nenhuma cicatriz mal curada. Pelo contrário. Este sangue que coagula ao sair de mim provém da passagem mais natural, pela qual a maioria de nós nasce para a vida que está fora.
Lentamente, rastejo agora em direção do espaço vago que existe entre a banheira e o vaso sanitário. Desprovida de força humana, rastejo, deslizo sobre o sangue coagulado no piso agora morno. E meu esforço sanguinário deixa rastros vermelhos, de novo cintilantes. Pouco resta nas comportas dilaceradas, que persistem em gotejar todo o vermelho da vida que se esvai. Para onde?...
Em estado de torpor, sinto minha cabeça pesar. Pesa com tantas palavras sem sentido. E já nem sinto o pardo filete de sangue que dá seguimento à saga da desistência mórbida.
Cada vez mais palavras desconexas faz minha cabeça pender até a tampa do vaso sanitário. Chuva. Campo. Sol. Dia nublado. Branca nuvem. Folha seca. Carrossel. Pipa. Mudez. Abraço. Frio. Floresta. Mar. Noite. Solidão.
Em minha semi-consciência, as palavras se esvaem como o sangue de dentro de mim. Todas coagulando, uma a uma. E restam sílabas, letras, e depois somente hieróglifos que já não podem ser desvendados.
Silêncio. Um zunido ensurdecedor arrebenta a consciência que ainda resta. Desfaleço.
... Desperto numa cama leve, onde o colchão, o travesseiro e os lençóis são de uma leveza que combina com a brancura do ambiente. Reconheço que estou num hospital. Como vim parar aqui? Há quanto tempo estou internada? As perguntas insistentes fazem minha cabeça – agora leve – latejar.
Tento mover o corpo, para quem sabe sentir o sangue que ainda vive dentro de mim. Sinto. Só não posso mexer o braço esquerdo, preso por uma agulha até o suporte que goteja líquido vermelho, viscoso, plasma sem brilho. Será aquele mesmo sangue, coagulado no azulejo, que já foi meu, e agora retorna para dentro de mim?
Sentindo dormência no braço direito, com esforço humano, busco a campainha. Aperto ininterruptas vezes, até surgir na porta branca, uma moça sorridente, toda vestida de branco, com os cabelos pretos escondidos em alvo lenço.
Procuro minha voz, e depois palavras conexas – que atendam aos meus sentidos. Nenhum som audível. Somente eu escuto meus pensamentos, onde as perguntas continuam alojadas. A enfermeira – que assim se parece – tenta me tranqüilizar. Pede para eu não ficar nervosa, que “está tudo bem agora”.
Tudo bem? Que tudo está bem? E o que é este bem em tudo? Você escuta meus pensamentos, moça? Onde estou? Como vim parar aqui? Com certeza, não joguei-me do vigésimo terceiro andar. Se me lembro, havia uma poça de sangue coagulado no piso, que já não era mais tão frio. Meu corpo estava lá. Você lê meus pensamentos, enfermeira? Então, responda-me: O que fizeram com o sangue que, ao sair de dentro de mim, já não era mais meu? Responda. Responda.
Entre minhas perguntas sem respostas, adormeço.
Quando acordo, o que enxergo é uma pele que, de tão morena, parece negra. E nesta pele, dois olhos ávidos, um nariz franzido, e uma boca larga, com brancos dentes a combinarem com a brancura dos lençóis, da parede do quarto. É Ermelinda, a empregada fiel – mais de dez anos de convivência em casa. É ela quem vai me contar tudo o que preciso saber. Se ela está aqui, é por saber de tudo o que aconteceu comigo, depois que eu deixei de saber de mim, do meu sangue que escorria, e agora não sinto mais escorrer.
Ermelinda continua parada – sorridente – diante de mim. Nada fala. Parece estar em oração, enquanto não tira – um só segundo – os olhos de mim. Balbucia alguma coisa, que a mim chega ininteligível, e depois ergue os braços, olha para o teto branco, e diz: Amém! Amém! No meu mutismo incompreensível, repito com ela: Amém! Amém!
O que se segue é um gesto vão da minha parte. Tento, com esforço humano, erguer o antebraço direito em direção de Ermelinda, que agora se aproxima de mim. Ela fala baixo, pausadamente (agora sei por que há tanto tempo ela trabalha comigo).
Com Ermelinda por perto, nada preciso falar. Ela sabe. Ela intui. Ela sente. E é esta sabedoria que agora responde a todas as perguntas latejantes da minha cabeça. Começa dizendo para eu não exigir muito da mente, que também enfraquecera com a hemorragia. E Ermelinda me conta que, naquele domingo de folga, depois de lavar as louças do almoço, ela despediu-se de mim, e foi visitar o pai velhinho, que vive num asilo. Ainda presa à minha mudez, lembro o dia que nós duas fomos visitá-lo. E dizer que ainda guardo o aperto daquela mão emagrecida, cheia de grossas veias de sangue.
E Ermelinda verbaliza o que eu já havia deduzido: ao entardecer, logo após a missa (“Rezei tanto pela senhora!”), ela retornou à casa. E o que encontrou foram poças de sangue, na escuridão do banheiro, e um corpo nu, pálido, mais inerte que o próprio azulejo que ela limpa com tanto zelo.
Lentamente, minha mão – agora tão alva quanto o lençol que me cobre – busca as mãos calejadas da velha e fiel Ermelinda. Dos meus olhos, grossas lágrimas a fitá-la. E também Ermelinda emudece, deixando escorrerem, quase desapercebidas, lágrimas dos alvos olhos.
Uma semana depois, já estou em casa. E silenciosa, diante da porta aberta do banheiro, fico a tentar rememorar tudo o que aconteceu naquele dia. A suave fragrância de eucalipto comprova a dedicação de Ermelinda, que, atrás de mim, conta que passou meio dia ajoelhada ali, naquele piso, para retirar até o menor resquício – indelével – de todo aquele sangue coagulado. Abracei silenciosamente a velha companheira, lembrando que também eu ficara ajoelhada sobre o sangue que vertia de dentro de mim. Ermelinda retirara até a mais ínfima partícula da minha vida coagulada neste chão frio. Sinto-me – finalmente – perdoada de todos os pecados do mundo. A fiel Ermelinda apagou todas as provas da guerra sanguinolenta travada dentro de mim. Amém! Amém!
Passei dois dias com a tela no cavalete, no canto da sala. Precisava fazer gotejar ali, naquele espaço antes frio e indiferente, todo meu sangue derramado na doação involuntária ao nada.
Agora, com ajuda de Ermelinda, perfuro a parede do hall de entrada, onde meu sangue permanecerá – eternamente? – borbulhando. Para quem entrar aqui saber que há sangue a jorrar – dentro e fora de mim...

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Gosto da liberdade

O apartamento é enorme, amplo, maior ainda para o olhar estrábico e miúdo da menina. E tudo é mais colorido. E tudo reluz. E tudo parece ser tão belo, quanto a liberdade que a menina desconhece.
A velhinha segura pela mão os passos tímidos da menina. De repente, ambas se vêem diante do piano, no centro da sala. A menina nunca tinha visto um piano tão lindo, majestoso, imponente. A menina ainda não sabia que pianos existiam, ali, dentro daquele amplo apartamento, e em tantos outros lugares.
A mão enrugada, que há pouco doava segurança à menina, que nem sabia, desliza sobre o brilho branco do piano silencioso. Um toque mais leve que o outro, sem deixar qualquer marca. O olhar miúdo da menina não enxerga mais que as pontas dos dedos envelhecidos tocando notas musicais invisíveis. A vida da menina se reduz ao instante de êxtase.
Por um momento, a menina se imagina morta. Leve torpor lhe percorre o corpo inteiro. Tudo mais esqueceria, principalmente o futuro que lhe aguarda, sôfrego. Este instante – leve toque de dedos trêmulos e macios sobre o piano mudo – teria sido a vida da menina. Em algum canto da alma infantil, a melodia continuará ecoando, mas ela não sabe.
Como quem, num estalar de dedos, retorna à consciência, após breve estado hipnótico, a menina desperta, com a voz, grave e doce, da velhinha:
- Todas as janelas estão fechadas?...
(É para ela – a menina -, a pergunta. Não há mais ninguém ali.)
- Sim... (responde a menina, cabisbaixa, percebendo a penumbra que invade a sala)
- Há quantos anos, eu nem ouso mais sentar aqui...
A voz da velhinha parece menos cansada, enquanto aproxima-se da banqueta. De olhos fechados, senta devagarinho, mantendo o ritual dos toques indeléveis sobre o instrumento. Lentamente, abre os olhos, destampa o piano, e o que a menina vê são dezenas de pedacinhos brancos, pretos, todos brilhantes, encantadores. Mas o que mais brilha, na penumbra da sala, é o olhar iluminado da menina, que descobre onde repousam todas as melodias. O coraçãozinho infantil dispara, se torna grande, enorme mesmo, maior, muito maior que o apartamento. Neste instante mágico, a menina ouve e dança todas as melodias. A alma infantil já não cabe mais no corpinho raquítico, quando escuta a velhinha murmurar, enquanto dedilha uma melodia triste no piano:
- Houve um tempo, há muitos anos atrás, em que meu marido fechava toda a casa, e me pedia para tocar para ele, mas só para ele. Meu falecido marido não admitia imaginar que alguém pudesse me ouvir tocar piano... (suspiro profundo!) Aos poucos, fui abandonando o hábito de sentar aqui, mesmo em silêncio... Nossa, faz tanto tempo que ele morreu... Não levou o piano junto com ele, como havia prometido, nos delírios da doença...
Morte – a menina já conhecia o peso dessa palavra, na alma frágil. A avó levara, para sempre e bem longe, o colo aconchegante. Sem saber o que dizer, transgride a educação que recebeu, e pergunta:
- Por que deixou tanto tempo os acordes silenciosos?...
- Talvez, por que a melodia da liberdade tivesse ido embora, sem poder voltar, por causa das janelas trancadas...
- E... e por que não tenta abrir as janelas?...
- Agora?... - pergunta, surpresa, a velhinha, que levanta, diante do silêncio da menina, e, em gestos ágeis e infantis, escancara as duas grandes janelas da sala. Os olhos úmidos da menina denunciam admiração, enquanto a velhinha retorna ao piano, começa tocar Ária na Corda Sol, de Bach, e, chorando, fala às lágrimas miúdas da menina:
- Jamais tranque as janelas, pois a liberdade é um pássaro que chega...
- Pássaro não vive sem cantar... - responde, sem pensar, a alma menina.

Voz - Elisa:

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Verão frio

Foto: Denise


Dora Brisa

O meu verão
Chegou frio,
Agasalhado de
Ausências...
O meu verão
Chegou frio,
Indiferente à
Minha dor...
O meu verão
Chegou frio,
Não trouxe calor,
Veio vazio...
O meu verão
Chegou frio,
Silencioso,
Melancólico..
O meu verão
Chegou frio,
Lavou minha alma,
E partiu...