quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

domingo, 30 de novembro de 2014

Por um fio

Dora Brisa
Alô?... Quer falar com quem?...
Nada de trote, por favor...
Sem essa de me chamar de ‘meu bem’!...
Afinal, quem é o senhor?...
Ricardo... Ricardo...
Desculpe por eu não lembrar...
Ex-namorado?...
Vai ser difícil adivinhar...
Ah, Ricardo!...
Resgatei na memória!...
Antigo namorado...
Faz tanto tempo essa história...
Pra você não faz tanto tempo assim?...
Oh, desculpe, por favor...
Claro que guardei em mim
Os nossos momentos de amor...
Vivíamos a volúpia da mocidade...
Como eu haveria de esquecer?...
Nossas juras, nossa saudade...
Nosso desejo de tudo viver...
Ricardo, como você amadureceu...
Até tua voz está mais grave...
Teu vocabulário também cresceu...
Um verdadeiro homem... é verdade...
Ah, não me diga isso...
Olha que eu até acredito...
Você fazia me sentir um lixo...
Eu sei... Você não gostava dos meus gritos...
Mas me conta, Ricardo:
O que você tem feito?...
Como queria, foi ser advogado?...
Nem sequer vestibular pra Direito?...
Nossa... Isso que é novidade...
Confessa: você está brincando?...
Não consigo te imaginar no centro da cidade,
Vendendo contrabando...
Eu até entendo... Confia em mim...
Está difícil ganhar a vida...
Eu?... Dou aulas de latim...
Qual era mesmo a nossa música preferida?...
Ricardo... Ah, se você soubesse...
Falando doce desse jeito,
O meu coração enlouquece,
Batendo descompassado no meu peito...
Você sempre soube me encabular...
O quê?... Nem lembro mais
O porquê de nos separar...
Não... Ninguém mais fez, ou faz...
Ah, Ricardo... Fala tudo...
Desabafa, meu amor...
Liberta esse tempo mudo...
Repete que me ama... Por favor...
Há quanto tempo eu te esperava...
O destino é sempre assim...
Quanto mais sozinha eu chorava,
Você – inteiro – se guardando pra mim...
Repete... Arrepia o meu ouvido...
Só você sabe fazer...
Todo este tempo foi castigo...
Ricardo, de amor vamos viver...
O quê?... Por que você está me chamando
De Cristina?... Seu brincalhão!...
Logo você, que vivia gritando:
- Lá vai Beatriz, meu coração...
Engano?... O que você está dizendo?...
Melhor, fica um pouco calado...
Ouve meu coração batendo:
Ricardo... Ricardo...
Você tem certeza do engano?...
Ricardo, pensa bem...
Não lembra mais daquele final de ano?...
Na barraca, só nós dois... Mais ninguém...
Desculpe... Entendi agora...
Não... Não me chamo Cristina...
Namorei Ricardo no tempo de escola...
Eu ainda sonhava... Era uma menina...
Quando sentir saudade da Cristina,
Ricardo, por favor, me ligue...
Faz eu recordar nessa neblina
   O amor que nunca tive...

Voz - Elisa:
 

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A moça e as flores

(à flor seca esquecida entre as folhas de um livro qualquer)

Quando criança, ficou maravilhada com o jardim de casa - até chegou a pensar que todas as casas tivessem jardins que floresciam o ano todo. Foi crescendo, e encontrando outras pessoas, feito ela, também maravilhadas com jardins. Em pouco tempo, especializou-se em conhecer cada espécie de flor, e todas as variações produzidas pelos enxertos.
Não demorou tanto, conheceu a perda de entes queridos, que morriam, sem qualquer aviso prévio. Ela não podia fazer qualquer coisa, a não ser resignar-se, escondida no jardim de casa. As flores a protegiam, e logo percebeu que o jardim seria sempre o melhor esconderijo, diante da dor. Quando não havia possibilidade de fuga, ia sempre aos velórios e enterros, com os braços cheios de flores - do mesmo jardim onde se refugiava.
Feito qualquer ser humano, também conheceu momentos alegres, quando saía, festiva, pelo jardim, colhendo as flores mais lindas, para presenteá-las às pessoas em festa. Não havia batizado, casamento, aniversário, formatura, ou qualquer outro evento familiar, que ela não aparecesse com os braços carregados de flores - do mesmo jardim para onde voltava com os olhos brilhando.
Descansando, em outros jardins, que já não eram os que conheceu quando menina, a moça sabia que as flores e os perfumes seriam sempre a companhia mais doce. Volta e meia, lá estava, no meio do jardim que ela mesma cultivava, colhendo braçadas de flores - as mais miúdas, ou gigantes em botão. Sempre alguém chorava, ou sorria, no caminho dela, que não abandonava a generosidade de distribuir flores.
Em alguns momentos da vida, ela e as flores foram motivo de piadas - em outras ocasiões, alento, aconchego, única companhia. Mas ela não quis pensar sobre isso, enquanto multiplicava as mudas das flores, cada vez mais coloridas e vivas - harmonia entre madressilvas, gerânios, acácias, cravinas, amor perfeito, e tantas outras que só ela conhecia a origem.
Numa tarde comum, feito tantas outras que teve a vida inteira, a moça sentiu uma pedra de gelo sufocar-lhe o coração. O que conseguiu, ainda, pensar foi que, se não estivesse no jardim, estaria em lugar nenhum. Dois dias depois, sentiram a ausência dela, durante o cortejo fúnebre da avó dela. Alguém lembrou de correr ao jardim, e encontrou-a abraçada com uma rosa branca, viva - o mesmo botão que a fizera maravilhada, uma vez mais.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Conjugação de-vida

Dora Brisa

Aos Santos você reza
Eu sinto frio e fome

O prato do dia você despreza
Eu sinto frio e fome

Você chora de solidão
Eu sinto frio e fome

Você calcula a inflação
Eu sinto frio e fome

Aniversário você festeja
Eu sinto frio e fome

Você se rebela e atira a bandeja
Eu sinto frio e fome

Emprego novo você comemora
Eu sinto frio e fome

Amor faz você perder a hora
Eu sinto frio e fome

Você faz discurso inflamado
Eu sinto frio e fome

Você reclama do trânsito parado
Eu sinto frio e fome

Você planeja sonhada viagem
Eu sinto frio e fome

Você expõe em vernissage
Eu sinto frio e fome

Você poupa para o aluguel
Eu sinto frio e fome

Você come croissant com mel
Eu sinto frio e fome

Você toma antidepressivo
Eu sinto frio e fome

Você busca oco paliativo
Eu sinto frio e fome

Você olha para mim com pena
Eu ainda sinto frio e fome

Você se perde em problema
Eu continuo sentindo frio e fome

Você não sabe o que fazer da vida
Eu sobrevivo com frio e fome

Você se suicida
Eu morro de frio e fome

Em alguma esquina perdida
Esta é a história do homem.

Voz - Helena Antoun:

domingo, 7 de setembro de 2014

Palavra

Dora Brisa

Ela nem ousava
Dizer aquela palavra,
Mas a palavra,
Ignorada e viva,
Permanecia no caminho,
Conformada.
Ela temia a palavra,
Por que sabia
Que aquela única palavra,
Com parcas letras,
Tão comum e usual,
Era verbo, ação.
Ela fazia de conta
Que a palavra não existia,
Enquanto a palavra a ignorava,
Por que o que ela e a palavra
Sabiam mais natural
Era tudo o que havia.
Ela temia a palavra,
Que não temia ninguém,
E ambas cumpriam
O que a palavra
Resumia, na vida
De tantas outras palavras.
Ela queria crer
No além da palavra,
Mas a própria palavra
Impedia revelar-se,
Silenciosa, num canto qualquer,
Numa esquina perdida.
Ela chegava a esquecer
Da palavra,
Mas a palavra, mesmo esquecida,
Lembrava a escuridão
Dos olhos dela,
Cegos do que não vinha da palavra.
Ela fugia da palavra,
Que não podia deixar de ser
A palavra que causava
Medo e fuga,
Fascínio e assombro,
Natureza mais viva.
Se a palavra a surpreendia,
Numa proximidade dolorida,
Ela se enchia de pontos
De exclamação e interrogação,
Enquanto a palavra arrastava reticências.
Quando ela deixou de existir,
A palavra fez-se revelada,
Como jamais ela imaginaria,
Tanto, tanto,
Que outra, que não era ela,
Estremeceu, diante da palavra: morte.

sábado, 16 de agosto de 2014

Gosto da liberdade

Dora Brisa

O apartamento é enorme, amplo, maior ainda para o olhar estrábico e miúdo da menina. E tudo é mais colorido. E tudo reluz. E tudo parece ser tão belo, quanto a liberdade que a menina desconhece.
A velhinha segura pela mão, os passos tímidos da menina. De repente, ambas se veem diante do piano, no centro da sala. A menina nunca tinha visto um piano tão lindo, majestoso, imponente. A menina ainda não sabia que pianos existiam, ali, dentro daquele amplo apartamento, e em tantos outros lugares.
A mão enrugada, que há pouco doava segurança à menina, que nem sabia, desliza sobre o brilho branco do piano silencioso. Um toque mais leve que o outro, sem deixar qualquer marca. O olhar miúdo da menina não enxerga mais que as pontas dos dedos envelhecidos tocando notas musicais invisíveis. A vida da menina se reduz ao instante de êxtase.
Por um momento, a menina se imagina morta. Leve torpor lhe percorre o corpo inteiro. Tudo mais esqueceria, principalmente o futuro que lhe aguardava, sôfrego. Este instante – leve toque de dedos trêmulos e macios sobre o piano mudo – teria sido a vida da menina. Em algum canto da alma infantil, a melodia continuará ecoando, mas ela não sabe.
Como quem, num estalar de dedos, retorna à consciência, após breve estado hipnótico, a menina desperta, com a voz, grave e doce, da velhinha:
- Todas as janelas estão fechadas?...
(É para ela – a menina -, a pergunta. Não há mais ninguém ali.)
- Sim... (responde a menina, cabisbaixa, percebendo a penumbra que invade a sala)
- Há quantos anos, eu nem ouso mais sentar aqui...
A voz da velhinha parece menos cansada, enquanto aproxima-se da banqueta. De olhos fechados, senta devagarinho, mantendo o ritual dos toques indeléveis sobre o instrumento. Lentamente, abre os olhos, destampa o piano, e o que a menina vê são dezenas de pedacinhos brancos, pretos, todos brilhantes, encantadores. Mas o que mais brilha, na penumbra da sala, é o olhar iluminado da menina, que descobre onde repousam todas as melodias. O coraçãozinho infantil dispara, se torna grande, enorme mesmo, maior, muito maior que o apartamento. Neste instante mágico, a menina ouve e dança todas as melodias. A alma infantil já não cabe mais no corpinho raquítico, quando escuta a velhinha murmurar, enquanto dedilha uma melodia triste no piano:
- Houve um tempo, há muitos anos atrás, em que meu marido fechava toda a casa, e me pedia para tocar para ele, mas só para ele. Meu falecido marido não admitia imaginar que alguém pudesse me ouvir tocar piano... (suspiro profundo!) Aos poucos, fui abandonando o hábito de sentar aqui, mesmo em silêncio... Nossa, faz tanto tempo que ele morreu... Não levou o piano junto com ele, como havia prometido, nos delírios da doença...
Morte – a menina já conhecia o peso dessa palavra, na alma frágil. A avó levará, para sempre e bem longe, o colo aconchegante. Sem saber o que dizer, transgride a educação que recebeu, e fala:
- Por que deixou tanto tempo os acordes silenciosos?...
- Talvez, por que a melodia da liberdade tivesse ido embora, sem poder voltar, por causa das janelas trancadas...
- E... e por que não tenta abrir as janelas?...
- Agora?... - pergunta, surpresa, a velhinha, que levanta, diante do silêncio da menina, e, em gestos ágeis e infantis, escancara as duas grandes janelas da sala. Os olhos úmidos da menina denunciam admiração, enquanto a velhinha retorna ao piano, começa a tocar Ária na Corda Sol, de Bach, e, chorando, fala às lágrimas miúdas da menina:
- Jamais tranque as janelas, pois a liberdade é um pássaro que chega...
- Pássaro não vive sem cantar... - responde, sem pensar, a alma menina.

Voz - Elisa:
 

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Última estação

Dora Brisa

Esse é o meu tempo, tempo de voltar
À velha estação de trem,
Em abandono, como eu.
É tempo de olhar a vida que passa,
Já que os trens, há muito,
Não passam mais em comboio.
Não há mais trilhos.
Por isso, minha vida descarrilada.
Sento no único banco vazio que restou,
Igual minha alma.
E o que faço é simplesmente respirar:
Inspiro, expiro,
Inspiro, expiro.
E o que sei, nesse gesto meu impensado,
É que a minha vida não expira.
Ainda não.
Por isso, agora respiro com ironia.
Encho e esvazio os pulmões, que
Um dia cessarão carcomidos, junto com o resto
Do meu corpo, que será presenteado
Aos vermes, ou fará parte, uma ínfima parte,
Dessa poluição de cidade grande. E assim
Não voltarei mais à velha estação,
Nem meu corpo ocupará espaço
No universo humano.
Simplesmente por que meu tempo
Terá expirado, junto com essa vida
Que agora respira o ar poluído
Das fábricas,
Dos motores,
Dos incineradores.
Tudo misturado, como a minha própria vida,
Que pulsa com o tempo sem porquê.
Meu tempo de vida está sendo
Cronometrado, sem eu saber.
E, sem eu saber também,
Meu tempo de morte será marcado,
Pois alguém, um dia qualquer,
Lembrará desse espectro humano.
Sem relógio, deixo-me ficar só com o tempo,
Para quebrar as algemas propositadamente.
Hoje, neste velho banco de estação,
Que o tempo não me encontre,
Pois estou sem tempo para ver
O tempo passar, o tempo escoar.
Não, não me venha o tempo
Da sentença, o tempo que só marca
O que não faço, o que não vivo, o tempo perdido.
Liberto, respiro. Não há movimento
Nas ruas, nas calçadas, nas pessoas.
Ora, não venham me dizer
Que dia é hoje, que horas são.
Não. Não quero saber de mais nada,
Nem do tempo futuro, tampouco do tempo passado,
Menos ainda do tempo que não é presente algum.
Levem para longe dos meus sentidos,
O badalar dos sinos da Catedral, que anuncia
Mais um quarto de hora passado no tempo.
Quanto tempo dura uma saudade?
E uma despedida? E a partida de
Quem se foi, sem se despedir?...
Meu coração acompanha agora
O ritmo descompassado do meu pensar,
Invadido por lembranças marcadas
Pelo tempo - este mesmo tempo
Que ora se esvai no meu olhar perdido -,
Como se ainda houvesse tempo,
Tempo para viver, e depois,
Só depois de a vida tornar-se enfadonha,
Aí sim, tempo de morrer,
Ou não morrer.
Um homem maltrapilho pára diante de mim.
Pede um trocado para continuar sobrevivendo.
Aturdido, remexo os bolsos do velho casaco.
Nem sei se trago algum dinheiro comigo.
Decido impetuosamente tirar o casaco,
E oferecê-lo ao olhar estupefato.
Preciso dizer alguma coisa, qualquer coisa.
Apenas um murmúrio sai da minha alma:
- Pode levar o casaco,
Porque você e eu morreremos.
Provavelmente, você conheça mais gente,
A quem este surrado paletó ainda possa servir.
Digo isso, tirando os sapatos:
- Esses também podem ajudar,
Na caminhada que resta...
Com o casaco no braço, o homem ainda pega o par
De sapatos rotos, e corre.
Perde um dos sapatos no caminho.
Nem olha para trás.
Fugiu de mim, como acha que
Foge da morte.
Nem pude dizer a ele que também eu sinto medo,
Medo de perder a vida, sem aviso prévio.
Sobrevivi até hoje assim:
Sob o crivo do tempo, silencioso, este mesmo
Tempo que passa na velha estação.
Envelheci. Já não posso mais correr, fugir.
Por isso, permaneço sentado
Nesse banco empedernido
Pelo sempre tempo que torna opaca
Qualquer visão humana.
Tanto eu quanto aquele homem que escafedeu-se,
Já não podemos mais crer
Em vida eterna, céu, harpas e querubins.
Todos nós, seres humanos,
Até mesmo aqueles que professam uma fé,
Sabemos que podem haver outras vidas.
Mas cada vida é única,
Como também são únicos os laços.
Quando alguém diz que não teme a morte,
Está falando por todos nós:
Eu minto,
Tu mentes,
Ele mente,
Nós mentimos,
Vós mentis,
Eles mentem.
(Duas varejeiras me perseguem.
Chegaram cedo para o banquete.
Não importa. Parecem ter
todo o tempo do mundo. Mas
também elas morrerão. Pois que
esperem o meu tempo, que
marca sentido contrário dos relógios.)
De onde surgiu este cão?
Parece velho, cansado.
Lentamente, vem se chegando ao banco.
Deita em silêncio, baixa o olhar sem brilho.
Reparo nas feridas dele,
Pelos com pus ressequido.
E eu aqui sentado, sem uma chaga sequer,
Nem mesmo um calo purulento.
Talvez, também por isso, sinto medo,
Medo de perder a vida que nunca tive.
Não trago no corpo, as chagas da crucificação
Daquele que (dizem) morreu
Por nós, os pecadores.
Eu, ordinário que sou, não saberia
Render-me à morte, com beatitude.
Não, não eu, que represento
O homus sapiens do terceiro milênio,
Com toda a sua tecnologia, toda a sua ciência,
Todo o seu horror à morte, cada vez maior.
Viver é um susto; morrer é uma fatalidade.
O cão, de olhos fechados, focinho no chão,
Não sabe disso, ignora que vai morrer.
Nem sabe que vive, por que não pensa.
Eu penso,
Tu pensas,
Ele pensa,
Nós pensamos,
Vós pensais,
Eles pensam.
Fecho também os olhos, por um momento.
Mas ainda penso.
Sinto uma vontade louca de
Encostar meu nariz no chão, e
Não mais precisar fugir do meu pensar,
Do meu medo genuíno, que
Há décadas me atormenta, farejador:
Morte!
Morte!
Morte!
Como viver, morrendo a todo instante?
Como não pensar na vida, que
Poderia ter sido vida ganha, ou perdida?
O cão não escuta minhas divagações amedrontadas
Pelo fim predestinado à vida humana.
A cada nascimento (na maioria),
Júbilo em derredor.
O choro do bebê pode ser traduzido:
- Vou morrer. Nasci para morrer.
Esse vagido permanece o resto da vida,
Até que a morte chega, e
Faz tudo calar. Definitivamente.
A vida é eterna? Mas
Eu morro.
Tu morres,
Ele morre,
Nós morremos,
Vós morreis,
Eles morrem.
(Primeiro, de medo.)
Todos, indubitavelmente.
Morre aquele que crê,
Morre aquele que não crê.
Todos – 'farinha do mesmo saco' -,
Matéria orgânica perecível, mortal.
Sempre a morte. A morte sempre
Nos aguardando à espreita,
Num navio, num avião,
Até numa estação de trem, esquecida
Pela vida que passa:
Vida célere, morte lenta.
Um dia a mais, um dia a menos.
O cão não pensa.
Invejavelmente, o cão dorme o
Sono dos justos purulentos.
Se o tempo é o melhor remédio,
Quero sorver até a última gota
Da minha parte da cicuta
Reservada a nós, miseráveis,
Temerosos, solitários, mortais seres humanos.
Do outro lado da rua, que um dia foi trilho,
Passa agora uma madame, que
Passeia com seu cachorro com pedigree.
Ela acelera o passo, após nos observar,
A mim e ao cão deitado.
A madame desvia o olhar com asco,
Visível desconforto. Segue,
Ajeitando-se pelo caminho invisível dos
Trilhos, acompanhada pelo cachorro,
Que fareja aguçadamente o trajeto.
Cachorro de madame não tem feridas,
Só mordomias invejáveis.
Também ele não sabe que vive,
Não pensa sobre a morte,
Idêntico à madame, que deve
Buscar sempre mais banalidades
Que burlem quaisquer indícios
De um breve pensar.
Mas também ela, ser humano, vai morrer.
Ainda que esconda o enfraquecimento físico, com
Cirurgias plásticas irreveláveis, a morte a espera,
Sem pressa, e também ao seu cachorro.
Porque o tempo só é limitado
Às criaturas limitadas.
Eu feneço,
Tu feneces,
Ele fenece,
Nós fenecemos,
Vós feneceis,
Eles fenecem.
Toda vida é subjugada à morte implacável,
Algoz sedento em chamar o próximo da lista
Infindável, à guilhotina.
Neste morticínio, estamos nós, seres (ainda) vivos,
No aguardo forçado da nossa vez.
Todos, meninos solitários,
Tremendo de medo, sob um único
Olhar rígido, mortal: sentença irrevogável.
Para o medo do escuro, existe a luz;
Para cuidar das tantas fobias do homem,
Existem os tratamentos terapêuticos.
Antídoto à morte? Talvez revolta.
Talvez rendição, numa única lágrima de quem
Sempre soube que um dia seria extinto
Do convívio humano, e arremessado ao desconhecido.
Foram-se os tempos
Das brincadeiras de bicho-papão,
Debaixo das macieiras.
É chegado o tempo de não haver mais tempo:
Tempo de medo.
Tempo de silêncio.
Tempo de solidão.
Tempo de quedar a cabeça.
Tempo de não ter razão.
Quanto a mim, humano descartável,
Igual à humanidade inteira, neste mundaréu de medos,
Que resultam num medo só (perder a vida),
Não há mais tempo para
Ter um filho, plantar uma árvore,
Escrever um livro...
Que importa?
Se houvesse mais tempo, com certeza,
Eu nem imaginaria fazer essas coisas todas,
Nem coisa alguma. Morrerei mesmo assim,
Morrerei igual morreram ou morrerão
Aqueles que escreveram árvores,
Plantaram filhos, tiveram livros...
Presságio fatídico.
Por certo, deixarei alguém, um só alguém
Que hoje me ama, ou me odeia,
Já não interessa mais.
Alguém que também vai morrer,
Semelhante ao cão que (ainda) adormece
Ao pé desse velho banco
(tão duro, quanto a morte),
Que não tem vida para perder,
Nem tempo a ganhar.
A morte é onipresente - onipotente.
A vida é limitada - atemorizante.
Entre a vida e a morte,
Tateia a humanidade frágil,
Assustada, indefesa.
Todo mundo sabe que, aonde for,
O que fizer, acabará num só lugar:
Morte.
Haverá sempre o fim da linha, como para o trem.
Erros e acertos oscilam num determinado tempo.
Depois, morte cruel. Não importa
Se for numa clínica moderna e equipada,
Ou num barraco de lama, onde falta até
Um toco de vela. A vida é extinta num
Tempo qualquer: seja diante
Da indignação, ou da subserviência.
Ganhamos tempo; perdemos vida.
Perdemos tempo; perdemos vida.
No final de tudo - morte -,
A eterna morte de uma vida passageira.
Depois, ainda dizem:
- Foi tão cedo.
Não interessa se viveu sete ou setenta anos.
Foi cedo, sim, por que a morte é perversa,
Arranca pela raiz o mais frágil broto,
Até a árvore frondosa,
Sem direito à contestação.
Assim é a morte (aceitam).
Sou irmão dos irmãos que não suportam
O peso da morte nos ombros da vida.
Alguns bebem, outros cheiram ou fumam:
Suicídio lento (quem tem pressa?).
Morreremos, de qualquer jeito.
A vida de uma borboleta não dura mais que
Duas semanas. Por isso, ela voa, voa...
A grande massa humana trabalha para não morrer
De frio, de fome, mas continua morrendo
De medo da morte.
Mesmo sabendo disso,
Eu insisto,
Tu insistes,
Ele insiste,
Nós insistimos,
Vós insistis,
Eles insistem.
Assim é a vida (aceitam).
O que vivemos foi vivido.
O resto é morte.
O tempo em que estou sentado no banco
Dessa velha estação, o tempo é passado.
E tudo o que eu poderia ter feito neste
Tempo que passou é morte.
Vivo agora a minha morte futura,
Sem consciência dela.
Tateio um outro tempo, fora de qualquer tempo,
Sentado apenas sem pensar no que já fiz,
Deixei de fazer, ou o que faria amanhã.
Neste momento, a minha morte respira.
Nem isso quero pensar.
Prefiro olhar para o chão, onde o cão dorme.
Nada sinto. Nem sono.
Estou aquém ou além
(que importância tem?)
Do tempo, que chego crer que eu não
Reagiria, nem por instinto, caso minha
Respiração fosse espaçando, lentamente,
Até nada mais.
Não quero saber se sou 'um grão de areia', ou
'Uma gota de oceano' no universo.
O que sei é que nem sei quem sou.
E aquele mendigo levou há pouco
Minha carteira de identidade, junto com o casaco.
Já não tenho mais sequer nome.
Sou ninguém.
E respiro agora um ar mais leve,
Um tempo tão suave, que eu nunca tive na vida.
Será a morte?... Não, não pode ser,
Porque a morte (dizem) machuca, faz doer fundo.
Nada me dói, nem o que não vivi.
Se eu pudesse,
Se tu pudesses,
Se ele pudesse,
Se nós pudéssemos,
Se vós pudésseis,
Se eles pudessem,
Escolheriam (escolheríamos, todos)
Que ninguém mais morreria.
Quem sabe, a vida fosse diferente,
A humanidade fosse mais humana,
Menos abandonada.
Quem sabe, não haveria mais a palavra
Solidão, nos dicionários das casas, das ruas...
Quem nunca, por um instante só, desejou morrer?
Não é preciso perder (mais) este tempo,
Porque a morte chega, chega sim -
Traiçoeira, desumana.
Em todo velório, a mesma coisa, o tempo todo:
Lágrimas, sentidas lágrimas.
Eu choro,
Tu choras,
Ele chora,
Nós choramos,
Vós chorais,
Eles choram.
Mas não é mais só por causa do
Falecido (já está morto).
Cada qual chora a sua própria morte
Particular, singular, imposta.
Quando as lágrimas esgotam,
Começamos nos observar, um a um,
E nos reconhecemos no olhar apavorado
Do outro, que treme de medo da morte,
Que fatalmente está a caminho.
(Quem será o próximo 'eleito'?)
O que nos resta, então, é baixarmos a cabeça,
Emudecermos, sermos tão humanos
Como foram nossos pais, avós, bisavós,
E também os tataravós dos nossos bisavós,
Como será a humanidade futura.
Neste meu caminho à morte, tenho aprendido que
Cada criatura humana é um universo
Limitado, único, por isso tão só, vulnerável.
Na minha solidão, sou toda a humanidade,
Que busca sofregamente não pensar,
Não sentir tudo isso que provém do peso de
Sermos (todos) mortais, filhos do começo, do meio e do fim.
A vida não tem sentido, nem nexo, nem seta, mas
Eu vivo,
Tu vives,
Ele vive,
Nós vivemos,
Vós viveis,
Eles vivem.
Todos tentamos decifrar, reter o sentido da vida.
Se a morte tem ou faz algum sentido,
Os mortos (só eles) devem saber,
Ou, talvez, a procura insana continua.
Apenas isso. Se assim for,
Menos sentido ainda tem tudo isso
(vida-tempo-morte).
Afinal, quem é este 'Ser' proclamado
Entre os religiosos como justo e misericordioso?
Se assim é, por que uns nascem abastados,
E outros morrem famintos?
Por que uns vivem matando,
E outros morrem assassinados?
Onde a justiça - na vida? na morte?
E ainda dizem que nasci para pagar os meus pecados.
Logo eu, pecador confesso, especialista
Na genuína arte de pecar.
Peco contra mim mesmo,
E não pago contas. Peco neste tempo todo
Que espreita meus passos trôpegos,
Meus pecados imundos. Tempo-urubu:
Paciente, hábil, à espera da minha morte,
Quando também ele, o meu tempo,
Será aniquilado, imerso no tempo eterno da morte.
No tempo da minha morte,
Não me venham prometer purgatório, céu, inferno.
Com certeza, eu morreria antes da hora,
Anteciparia a minha viagem, depois de vomitar
Toda náusea que me dá a palavra eternidade.
De nada adianta, porque
Eu acabo,
Tu acabas,
Ele acaba,
Nós acabamos,
Vós acabais,
Eles acabam.
Morte. Ponto final.
Se depois disso houver mais enredo,
Que venham todas as vidas que tiverem de vir,
Todas, todas as vidas e todas as mortes também.
Cada vida única, cada morte sofrida na solidão
Do existir sempre humano a se repetir.
Ou que não venha mais vida alguma,
Seguida de morte. Que seja o fim.
O fim de cada um. O fim de todos. O fim de tudo.
O nada. O retorno do caos, de onde podem (ou não)
Surgir outra luz, outra vida.
Que seja, ou que não seja, pois
Eu não existirei
Tu não existirás
Ele não existirá
Nós não existiremos
Vós não existireis
Eles não existirão.
E tudo será nada (recomeço?).
Definitivamente, não sei ser humano,
Ou outra coisa qualquer.
Não compreendo a criatura (também eu) que sonha sempre com
Mudanças diversas de vida, mas não admite a morte,
Que não passa de (mais) uma mudança.
Por que toda mudança pressupõe morte – fim de
Alguma coisa -, para aparecimento de outra.
Por isso, quem perde, ganha; e sempre ganha, quem perde.
Vida é mudança constante, incluindo a própria morte.
Minha incompreensão reside nisso:
Por que temo, ser humano que sou, a morte, que
Muda tanto a vida?...
Indiscreta ou sutil, mudança é sempre mudança.
Isso é inquestionável – como a morte.
E não há resposta que faça calar a alma
Humana - inquieta e trêmula.
Na minha finitude, vejo o crepúsculo morrendo
No infinito. Isso me dói. Morre o dia.
Morre o homem. Morre a luz de tudo o que é mundo humano.
De súbito, uma pedra trespassa meu olhar.
Caio de novo na realidade, e o que vejo é
Um menino de rua provocando, de longe,
O cão, que continua deitado, inerte.
Sob meu olhar inquiridor, o menino se afasta,
Arremessando mais pedras, agora na rua sem trilhos.
Olho para o cão. O corpo está hirto. Não há mais
Vida nele. O trem da morte levou a vida
Que restava no cão moribundo, que, certamente,
Não tem um só alguém que chore a sua falta.
Choro eu, cão desconhecido, eu que sou
Tão desconhecido para mim mesmo.
Choro a tua morte, o fim da tua vida sem sentido.
Choro a minha morte também, que virá sorrateira,
E deixará em abandono meu corpo cansado, indefeso.
Retiro a camisa, cubro-lhe as chagas, em silêncio.
Eis tua mortalha, cão que não deve ter sido protegido
Na vida. Também eu, ser humano que (ainda) sou,
Precisei aprender sozinho me proteger, cobrindo
As marcas infames que trago na alma.
Continua dormindo, cão sem nome.
Eu, sem nome também, velo teu sono, o sono
De quem viveu sem saber que vivia, e morre sem despertar.
Só eu sei que você está morto, cão, porque a
Escuridão da noite cobre agora a tua morte e a minha vida.
O que respiro é o ar da morte, que ainda ronda.
Sinto, pressinto, farejo, animal que sou,
Tão mortal quanto o cão rendido.
Mas não me rendo, ainda não,
Não eu, animal teimoso, negando o próprio fim.
Quero respirar também o ar do cão sem vida,
Para provar (a mim? ao cão? à morte?) que ainda vivo.
Não interessa por que, para que, até quando, até onde.
Vivo este instante – basta -, enquanto a morte permeia
Solta, poderosa. Não, não vou me refugiar
Debaixo do banco, nem fingir estar morto.
Respiro profundamente. Estou vivo. Vivo e sozinho.
Viajei tanto na vida, mas meus pés fincam
Nessa estação, onde há muito tempo equilibrei
Meu corpo infantil sobre esses trilhos hoje invisíveis.
Tanto é verdade, que agora mesmo poderia eu percorrer o
Trajeto cego dessa linha morta de trem.
Respondo ao meu menino eufórico: estou cansado.
Não viajei de trem até aqui, com o olhar extasiado em paisagens.
A minha vida humana é isso:
Tão-somente esse momento em que suspiro
Diante da morte, que se apodera de um cão.
'Um dia, todos voltaremos à casa do Pai?'
Não eu, que nunca tive pai, nem casa, sequer um lugar.
Acho mesmo que, morrendo, vou acabar
No meio do caminho - entre qualquer coisa e o nada.
E isso será tudo.
Que fiz eu da morte que vivi, até chegar aqui?
Alguns poucos diriam:
- Construíste casas (não lares).
É bem verdade: exímio construtor, visível profissional.
Debaixo da minha máscara, destruí sonhos,
Cortei caminhos, matei destinos.
Também eu poderia ter sido o chefe das construções.
De que serviria? Estaria morrendo, como tudo, como todos,
Como eu, que sempre fui sem nunca ter sido.
Nem sequer construí uma casa para mim,
Por desconhecer o mais ignóbil projeto de um lar.
Com certeza, aquela que seria minha esposa
Vive - casada - com aquele que poderia ser um
Desconhecido, ou o prefeito da cidade, ou até
O mendigo que há pouco passou por aqui.
Vou morrer sem conhecê-la, tampouco ela saberá de mim,
E terá filhos, muitos filhos, os filhos que seriam nossos.
Não importa! Ela morrerá viúva, ou ele morrerá viúvo,
Até os filhos morrerão, e eu também morrerei.
E morreremos todos, com ou sem lar.
Nunca achei graça ou desgraça na vida.
Por que haverei de culpar ou desculpar alguém na morte?
Não e não, nem a mim mesmo, que nunca soube existir.
O vento sopra a noite e a vida.
Por isso, sinto frio. Encolho-me envergonhado junto ao
Corpo do cão, que ainda morre a própria morte.
Partilho contigo tua mortalha, cão cheio de morte,
E já nem lembro que é minha a camisa que cobre teu pêlo sujo.
Quisera eu ter manchado esta, ou outra camisa qualquer.
Não. Jamais manchei de sangue vivo minha vida morta.
Acomodo minhas costas junto aos pelos caninos
Cobertos pela mortalha, que era camisa de alguém
Que parecia ser vivo, por que usava camisa.
Fecho os olhos a contragosto, e revejo o sonho,
Aquele mesmo sonho que me persegue - sonho africano -,
Sonho parecido com insônia letárgica, que
Dizima, mutila, mata restos de sonhos.
Também eu estava lá, no chão africano,
Estirado à morte, mas não morria.
Também era noite, mais escura que a pele dos mortos africanos.
Só eu não morria, por que não tinha vida.
Arregalo os olhos, o sonho se dissipa espavorido,
E a noite fria já não eriça mais os pelos do pobre cão.
Nunca bebi (vida) na vida, e me sinto embriagado,
Farto dessa mesma vida que jamais senti arder na garganta.
Façam suas apostas, senhores.
Aqui jazem um cão e um homem
Sem dono-destino, nem desatino – entregues, rendidos.
Eis aqui um cão que teve vida e morreu,
E um homem que não morreu, por que nem vida teve.
Quem dá mais, senhores?...
Quem pagar pelo cão, leva a mortalha para tapar-lhe as feridas.
Quem arrematar o homem, não paga,
Por que ser humano nada tem, além de um tempo que acaba,
Antes mesmo de a vida principiar...
(Ao longe, o apito da locomotiva – está na minha hora?
Já não enxergo mais o guichê das passagens,
Para eu escolher o destino que nunca tive.
Nem trouxe bagagem. E agora?...)