Dora Brisa
O apartamento é enorme, amplo,
maior ainda para o olhar estrábico e miúdo da menina. E tudo é
mais colorido. E tudo reluz. E tudo parece ser tão belo, quanto a
liberdade que a menina desconhece.
A velhinha segura pela mão, os
passos tímidos da menina. De repente, ambas se veem diante do
piano, no centro da sala. A menina nunca tinha visto um piano tão
lindo, majestoso, imponente. A menina ainda não sabia que pianos
existiam, ali, dentro daquele amplo apartamento, e em tantos outros
lugares.
A mão enrugada, que há pouco
doava segurança à menina, que nem sabia, desliza sobre o brilho
branco do piano silencioso. Um toque mais leve que o outro, sem
deixar qualquer marca. O olhar miúdo da menina não enxerga mais que
as pontas dos dedos envelhecidos tocando notas musicais invisíveis.
A vida da menina se reduz ao instante de êxtase.
Por um momento, a menina se
imagina morta. Leve torpor lhe percorre o corpo inteiro. Tudo mais
esqueceria, principalmente o futuro que lhe aguardava, sôfrego. Este
instante – leve toque de dedos trêmulos e macios sobre o piano
mudo – teria sido a vida da menina. Em algum canto da alma
infantil, a melodia continuará ecoando, mas ela não sabe.
Como quem, num estalar de dedos,
retorna à consciência, após breve estado hipnótico, a menina
desperta, com a voz, grave e doce, da velhinha:
- Todas as janelas estão
fechadas?...
(É para ela – a menina -,
a pergunta. Não há mais ninguém ali.)
- Sim... (responde a menina,
cabisbaixa, percebendo a penumbra que invade a sala)
- Há quantos anos, eu nem ouso
mais sentar aqui...
A voz da velhinha parece
menos cansada, enquanto aproxima-se da banqueta. De olhos fechados,
senta devagarinho, mantendo o ritual dos toques indeléveis sobre o
instrumento. Lentamente, abre os olhos, destampa o piano, e o que a
menina vê são dezenas de pedacinhos brancos, pretos, todos
brilhantes, encantadores. Mas o que mais brilha, na penumbra da sala,
é o olhar iluminado da menina, que descobre onde repousam todas as
melodias. O coraçãozinho infantil dispara, se torna grande, enorme
mesmo, maior, muito maior que o apartamento. Neste instante mágico,
a menina ouve e dança todas as melodias. A alma infantil já não
cabe mais no corpinho raquítico, quando escuta a velhinha murmurar,
enquanto dedilha uma melodia triste no piano:
- Houve um tempo, há muitos anos
atrás, em que meu marido fechava toda a casa, e me pedia para tocar
para ele, mas só para ele. Meu falecido marido não admitia imaginar
que alguém pudesse me ouvir tocar piano... (suspiro profundo!) Aos
poucos, fui abandonando o hábito de sentar aqui, mesmo em
silêncio... Nossa, faz tanto tempo que ele morreu... Não levou o
piano junto com ele, como havia prometido, nos delírios da doença...
Morte – a menina já conhecia
o peso dessa palavra, na alma frágil. A avó levará, para sempre e
bem longe, o colo aconchegante. Sem saber o que dizer, transgride a
educação que recebeu, e fala:
- Por que deixou tanto tempo os
acordes silenciosos?...
- Talvez, por que a melodia da
liberdade tivesse ido embora, sem poder voltar, por causa das janelas
trancadas...
- E... e por que não tenta abrir
as janelas?...
- Agora?... - pergunta, surpresa,
a velhinha, que levanta, diante do silêncio da menina, e, em gestos
ágeis e infantis, escancara as duas grandes janelas da sala. Os
olhos úmidos da menina denunciam admiração, enquanto a velhinha
retorna ao piano, começa a tocar Ária na Corda Sol, de Bach, e,
chorando, fala às lágrimas miúdas da menina:
- Jamais tranque as janelas, pois
a liberdade é um pássaro que chega...
- Pássaro não vive sem cantar...
- responde, sem pensar, a alma menina.
Voz - Elisa: