domingo, 27 de setembro de 2015

Dona Zita

Dora Brisa

No armazém da d. Zita
- legítima portuguesa –,
Vende-se e compra-se
Bacalhau e Vinho do Porto: “uma riqueza”.
D. Zita vem me atender
- expressão arredia –,
Arregala os olhos para crer:
Falo português – que alegria!
Nostálgica, penso em voz alta:
“Ao monte alto o Capitão
Deu o nome de Monte Pascoal;
E à terra, Terra de Vera Cruz (...)”
D. Zita me olha interrogativa.
- É frase de uma carta
De um tal Pero Vaz de Caminha
- respondo evasiva.
(Ela não tem obrigação
de saber. Afinal, Caminha
não endereçou a carta à d. Zita.)
A portuguesa me pede
Notícias do “nosso Brasil”,
Com o mesmo brilho no olhar
(será?)
Que um dia encantou-se um tal Cabral.
- Lembra os índios brasileiros, d. Zita?
Quase todos extintos.
Mas o Brasil tem muitos “brancos” e negros
Que perfuram as orelhas,
O umbigo, as narinas, as sobrancelhas,
Os lábios, e até a língua,
Onde penduram o que chamam “piercing”.
- Tem mais, d. Zita:
Hoje, negros e “brancos” brasileiros
Também pintam o corpo,
Como faziam os índios com urucum.
É moda.
Chamam tatuagem.
De repente, ouço um fado:
Amália Rodrigues?
Não.
É a alma de d. Zita
Que canta baixinho,
E suavemente se agita.
- Quer saber dos negros,
Bondosa portuguesa?
(negros que os seus patrícios
vilipendiaram com escravidão)
No “nosso Brasil”,
Ainda sofrem discriminação.
Como na África – resistem.
Ganha todo o povo brasileiro,
Que tem samba, capoeira,
Feijoada, vatapá,
Até Candomblé
(com a benção de
todos os Orixás).
- Futebol brasileiro, d. Zita?
Anda mal das pernas.
Não temos mais Pelé
(negro também).
Os jogadores perderam a agilidade,
Com o peso do dinheiro nos bolsos.
Nos estádios lotados,
Carregam mulheres louras
(Marias-chuteiras)
E carros importados.
- As crianças e os velhos
Do “nosso Brasil”?
Mudemos de assunto, d. Zita.
(Por favor, senhora,
não me obrigue relatar as
atrocidades cometidas
contra os filhos de ninguém.)
Apesar de e por tudo,
D. portuguesa,
Brasileiro é um povo
Bem-humorado,
Faz piada dos portugueses,
Com quem sente afinidade.
(A propósito, a senhora
conhece aquela piada da bicha
no consultório do urologista?
Melhor não contar.)
Brasileiro é trabalhador
(pode acreditar, d. Zita):
Planta, colhe,
Só não tem o que comer.
Por isso, alimenta a alma
Sempre com um sorriso
- às vezes banguela -,
Recebendo o estrangeiro
De praias e braços abertos,
Rindo da própria desgraça
(Não vou entristecê-la mais,
contando que a minha terra
está ficando sem palmeiras,
nem sabiá.
Por isso, as aves não
gorjeiam mais lá.)
Inesperadamente,
Pressinto o encontro das águas
Do Tejo com o Amazonas,
O Araguaia, o Guaíba,
O Velho Chico, o Parnaíba.
Recolho minhas lágrimas refletidas
No Velho Tejo que transborda.
Saio do armazém,
Com a sensação de ter deixado
D. Zita cantando um saudoso fado,
Às margens do Alentejo.
Volto para casa sentindo-me
(mais uma vez)
descoberta.
Ah, que vontade que dá
De voltar para o “nosso Brasil”,
E esperar por Cabral.
Ele poderia, dessa vez,
Levar d. Zita.
(Quem sabe?)
Pois, pois...

Voz - Paula Xavier:

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Almoço em família

Dora Brisa

Já passa das 14 horas, mas ninguém parece preocupado. Afinal, é domingo, almoço em família. Na extremidade da mesa quilométrica, a matriarca: pouco menos de um metro e meio, rugas na fisionomia hoje mais irônica, cabelos finos e brancos, os quais ela alisa mecanicamente, em silêncio, sem olhar a mesa farta.
Nem ousa levantar o olhar, pois sabe que só conseguiria enxergar os mais próximos. Por isso, repousa os olhos, quase fechados, voltados para o crochê da toalha, que já nem lembra mais em que época ela mesma confeccionou.
São cinco filhos. Isso ela ainda sabe. Mas já perdeu as contas dos tantos netos e bisnetos. No trajeto à mesa, ouviu chorinho de bebês em coro – serão tataranetos?... Nem pensa em abrir a boca e perguntar, até por que fala tão baixo, que ela mesma pouco tem se escutado.
Em meio ao ruído dos talheres, nas travessas e nos pratos, ela escuta frases desconexas, paralelas, tudo confuso à audição agora aguçada.
        - Soube que a filha do Martin casou pela oitava vez?
        - Não coma com a mão, menino!
        - Esta semana, a cotação do dólar surpreendeu mesmo!
        - Tive de comprar o vestido daquele estilista nordestino...
        - Não quero comer cenoura! Odeio cenoura!
        - A tintura do teu cabelo combinou mesmo foi com a bolsa!
        - Desculpem o arroto involuntário!
        - Eu quero brincar com aquele colherão ali, mamãe!
        - A velha está gagá, nem ouve mais nada...
        - Estou pensando em ir a Paris, no final do ano.
        - Ela fez lipo, eu soube no salão...
        - Maria, depois você me dá a receita dessa galinhada?...
        - Já emagreci dois quilos, agora faltam só catorze...
        - Demiti o diretor financeiro. Eu mesmo vou cuidar do serviço.
        - Sentada, eu não alcanço a mesa. Deixa eu ajoelhar, papai...
        - Olho pra mamãe, e me dá uma pena...
        - Ainda não sei se vou tentar vestibular este ano...
        - Você acha mesmo que o verde limão do meu vestido caiu bem?...
        - Para de mamar a embalagem de vinagre, garoto!
        - Ano que vem, vou ampliar as ações na Vale...
        - Encontrei um site culinário de dar água na boca!...
        - Não sei viver sem salto alto. Acho que já nasci de salto.
        - Não quero comer! Deixa eu ir na cozinha provar a sobremesa, mamãe?
        - Será que a faxineira tem vindo toda semana? Essa casa é tão grande, e mamãe parece uma autista...
        - Essa torta de espinafre está uma delícia!
        - Vá lá no escritório, para conversarmos mais a respeito...
        - Deixa eu comer as azeitonas, papai, ninguém quer...
        - O que a gente não faz, para manter as aparências?
        - Você viu que a Justiça não está perdoando ninguém mesmo, né?
        - Só falta um pouquinho de botox nos lábios, e me tornarei uma princesa...
        - Dia dez, vou marcar a próxima missa...
        - Na sua idade, eu já tinha esses três maiores aqui...
        - Encomendei o carro, mas vai demorar um mês pra chegar...
        - Oba! A sobremesa!
        - Achei melhor demiti-la, mas continuamos nos vendo semanalmente... que secretária!...
        - Você ainda acredita em Papai Noel? Pelo amor de Deus!
        - Maria, traz um pano para limpar a toalha?
        - Eu nem quis conversa com o gerente, fechei a conta imediatamente.
        - A nossa bisa não gosta de sorvete de chocolate?...
        - Você viu a foto dele, naquela revista? Que homem!
        - Não tomo mais nem refrigerante light...
        - Quem será que deu à ela aquela estatueta tão triste, desolada?...
        - Depois do almoço, vamos ao shopping com a mamãe...
        - Na mais recente, eu mandei gravar o nome do meu gato...
        - Acho que, antes de sair, vou à cozinha preparar uma marmita para levar para o jantar...
        - Imagina que ela me disse que, se eu não assinasse a carteira, ela sairia... e saiu...
        - É enjoo... Desculpe...
        - Tenho estudado demais pra esse concurso...
        - Mamãe, o Júnior roubou o morango do meu prato!...
        - Alguém pode me passar a calda de frutas?...
...
Aos poucos, vão retirando-se da mesa, enquanto enfileiram-se em torno da matriarca, beijando-lhe a cabeça, a testa, as faces, as mãos. Ela tudo vê, tudo sente, tudo silencia. Quando sai o último grupo, lentamente, ela toca uma mão na outra, sentindo-as grudarem. Depois, alisa o rosto, e também sente os resquícios da sobremesa há pouco servida.
Na outra extremidade da mesa, permanece Adelaide, a filha do meio, que mora sozinha, longe dali. Olha a filha com compaixão, a mesma que sente agora por si mesma. Suavemente, Adelaide levanta, vai ao encontro da mãe, no costumeiro mutismo tranquilizador, e a abraça com carinho.
O diálogo que estabelecem é o mesmo, há décadas:
        - Mamãe, melhor a senhora repousar...
        - Todos já foram?...
        - Sim...
        - Estão todos bem?...
        - Cada qual com os problemas e as escolhas que enxerga, mamãe...
        - Melhor assim... têm o que fazer na vida...
        - É sim, mamãe...
...
Ambas seguem à sala de estar, onde Adelaide, um domingo por mês, acomoda a mãe em sua velha cadeira de balanço. A matriarca da grande família senta, e suspira profundamente, para depois dizer:
        - Só preciso dormir um pouco, minha filha... talvez, esquecer...(vira o rosto para o lado)
Adelaide sai da sala, dirige-se à porta principal, e, vendo-se fora, vai procurar o homem responsável pela detonação da velha casa:
        - Por favor, meus fantasmas acabaram a última refeição agora... Aguarde só alguns minutos, para que a última adormeça...

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Teu mar

Dora Brisa

Sou teu mar:
Silencioso, profundo,
Protegendo teu navegar
Dos perigos deste mundo...

Nas minhas profundezas,
Escondo teus segredos...
Entre minhas maiores riquezas,
Guardo o baú dos teus medos...

Sou teu mar,
Água morna com teu calor...
Chego em ondas para teu pranto molhar,
E, à noite, faço-me reflexo da lua - puro amor...

Estou sempre a te embalar...
Nas minhas águas calmas,
Chegas a sonhar
Com outros mundos, outras almas...

Sou teu mar...
Em noites de tempestade escura,
Te concentras a buscar
Aconchego, na direção segura...

Na minha vastidão,
Tua alma se desnuda:
És puro coração
Pulsando na melodia muda...

Sou teu mar...
A ti, presenteio todo meu natural:
Peixes, conchas, até estrelas a encantar
Tua vida previsível, com sabor de sal...

Infinito que pareço,
Diante da tua esperança infantil,
Silencioso, adormeço,
Inteiro, nas tuas mãos, teu servil...

Sou teu mar,
E assim sempre serei...
Tu - barco a me acompanhar...
Eu - tua bússola - seguirei...

Voz - Rosany Costa: