segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Receita de Ano Novo



Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
 

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Vem

Dora Brisa

Vem, toca as minhas mãos,
Vê como são trêmulas e frias,
Tão trêmulas e tão frias,
Como devem ser as mãos
De toda gente.

Vem, me dá um abraço,
Um abraço de alma inteira,
Um abraço aconchegante, quente,
Um abraço silencioso,
Como deveria ter toda gente.

Vem, ouve meu mutismo cansado,
Silêncio feito de nadas,
Depois de ter ouvido tudo,
Até os gritos de dor, de medo,
Gritos de toda gente.

Vem, me conta histórias,
Fala de vidas que não são minhas,
Lembra comigo a tua infância,
Chora e ri da minha (tua) vida,
Tão vivida, como de toda gente.

Vem me dizer que tudo passa:
As nuvens, o sol, a chuva,
As feridas que sangram e cicatrizam.
Mas me diga que também a vida
Passa, como toda gente.

Vem, embala minha alma cansada,
Canta a tua canção pra mim.
Não, não diga mais nada,
Adormeça comigo, na noite sem fim,
Enquanto ainda sonha toda gente.

Vem... Vem...

Voz - Rosany Costa:
 

domingo, 16 de setembro de 2012

De tempo em tempo

Foto: Denise
Dora Brisa

O presente
torna-se passado,
antes mesmo
de ser digerido,
saboreado na essência.
No passado,
queremos,
urgente e
impacientemente,
o futuro.
Quando,
inesperadamente,
o futuro chega,
acabamos nos alimentando
do passado.
De tempo em tempo,
tudo é nada,
e nada é tudo novo
de novo.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Procura cega

Dora Brisa

Enquanto você, cabisbaixo,
Me procura nas coisas que parecem minhas,
Eu simplesmente me acho
Nas silenciosas entrelinhas...
Você me procura na sala escura,
E eu banhada pela luz
Da solidão mais pura...
Você pede de mim aos vizinhos,
E eu – ajoelhada, dolorida –
A retirar seus espinhos...
Você me questiona, surdo,
Sobre política, macrobiótica,
Enquanto eu vivo do absurdo:
Sou bio – nada lógica...
Você me procura em igrejas,
Me chama de querubim,
E eu – pagã – bebo cachaça com cerejas,
Na esquina, no botequim...
Você sai à minha cata,
Em cerimônias, coquetéis,
E eu fico com a minha coca-cola em lata,
Em casa, comendo pastéis...
Decidido, você me presenteia
Farto estojo de maquiagem,
Sem saber que esta alma incendeia,
Despudorada, derretendo a imagem.
No circo, lá vai você perdido,
Com o olhar me buscando no público inteiro,
Ignorando que eu sou o pobre aturdido
Palhaço sem a menor graça no picadeiro...
Enquanto você fica parado no portão,
À minha procura (cega) lá fora,
Bato forte a porta do coração,
Definitivamente: vou embora...

Voz - Helena Antoun:

terça-feira, 31 de julho de 2012

Pausas

Foto: Cristiano A. Costa


Dora Brisa

Quando a madrugada faz,
finalmente,
adormecer o dia,
sonhos breves
deslizam do céu,
das estrelas cadentes,
dos edifícios,
das árvores,
dos telhados,
das igrejas,
das janelas,
das montanhas,
sonhos que pousam,
suavemente,
no mais fundo
da alma de
toda gente.

Mesmo antes de
o dia insinuar-se,
a lida começa,
em todos os cantos,
feitos de
entusiasmos e
desencantos,
no novelo
a desfiar e fiar
a história,
irremediavelmente,
sem remendos,
ou ensaios,
vestindo a vida
de toda gente,
com desejos e medos,
em toscos balaios.

Quando a luz
se ausenta,
na imponência
da noite
que prenuncia,
o cansaço do dia
faz brilhar
outras luzes
de repouso,
de euforia,
e não há quem
não perceba
adormecer
alguma coisa
que se fez presente,
em mais um dia
acompanhado de
menos vida,
sob o jugo do
final
de algo que
só a manhã
anuncia.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Teu mar

Dora Brisa

Sou teu mar:
Silencioso, profundo,
Protegendo teu navegar
Dos perigos deste mundo...

Nas minhas profundezas,
Escondo teus segredos...
Entre minhas maiores riquezas,
Guardo o baú dos teus medos...

Sou teu mar,
Água morna com teu calor...
Chego em ondas para teu pranto molhar,
E à noite, faço-me reflexo da lua - puro amor...

Estou sempre a te embalar...
Nas minhas águas calmas,
Chegas a sonhar
Com outros mundos, outras almas...

Sou teu mar...
Em noites de tempestade escura,
Te concentras a buscar
Aconchego na direção segura...

Na minha vastidão,
Tua alma se desnuda:
És puro coração
Pulsando na melodia muda...

Sou teu mar...
A ti, presenteio todo meu natural:
Peixes, conchas, até estrelas a encantar
Tua vida previsível, com sabor de sal...

Infinito que pareço,
Diante da tua esperança infantil,
Silencioso, adormeço,
Inteiro, nas tuas mãos, teu servil...

Sou teu mar,
E assim sempre serei...
Tu - barco a me acompanhar...
Eu - tua bússola - seguirei...

Voz - Rosany Costa:

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Noite suja

Foto: Denise

Dora Brisa

Um estampido só. Oco. Mudo. Escuro. Lentamente, ele passa a mão na testa que transpira. De olhos fechados, sente o suor grosso na ponta dos dedos. Por alguns segundos, o estampido ainda ecoa na cabeça dele, agora vazia.

- Vô, quero fazer cocô.
- Não se diz “cocô”.
- Mas minha mãe...
- Ela sabe pouco, coitada.
- Como se diz, então? Cagar?
- Não. Se diz “fazer uma obra”, porque é uma obra – diferente
de todas as outras...
- Entendi. Mas continuo com vontade...
- Faz tua obra atrás daquela árvore, e depois seguimos para o rio...

Os olhos dele permanecem cerrados. Mas não sente dor.

- Fessora, posso ir ao banheiro?
- Vocês não conseguem nem ser originais. Basta ficarem
ajoelhados no milho, que já pensam em fugir para o banheiro...
- Mas...
- Nada de mas, menino... Fica quieto aí,
senão dobro o castigo...
- É que tô apertado – ainda fala, enquanto a urina escorre no chão do canto da sala.

Silêncio absoluto. Mecanicamente, a mão dele ainda busca a testa. O suor espesso escorre agora pelas laterais da fisionomia impassível.

- Agora que sua mãe morreu, me diga: O que você quer fazer?
- Pai, quero que o senhor me interne no Seminário.
- Você – seminarista? Meu único filho – padre? Por que isso agora, menino?
- Porque o padre disse na missa que minha mãe foi pro céu... Eu quero ficar perto dela... Padre fala até com Deus...

A cabeça dele lateja um pouco. A mão descansa rendida sobre o peito.

- As suas coisas estão aqui. Vá para o enterro de seu pai... Se quiser, volte depois, para ser ordenado...
- Não voltarei, mas agradeço-lhe assim mesmo, senhor diretor. (A porta pesada de madeira maciça fecha-se, para nunca mais se abrir.)

Por um momento, sente amargor na boca cheia de saliva. Não quer cuspir. Engole resignadamente.

- Nesta pensão, só se entrega chave de quarto, com pagamento adiantado.
- Posso pagar dois meses adiantado. É o tempo que preciso pra arranjar um emprego...
- Estou precisando de garçom no restaurante. O salário é pequeno, mas pode ganhar gorjeta...
- Aceito. Claro. Até porque quero continuar estudando...

Involuntariamente, os olhos dele lacrimejam. Com lenta ternura, suspende a mão, que recolhe as pesadas lágrimas.

- Confessa aqui para o teu melhor amigo: Você nunca comeu uma mulher, por que é viado? Pode contar. Não discrimino...
- Em vez de viado, sou é maluco mesmo... Você pode não acreditar, mas quero fazer amor, não só sexo... Você entende isso?...
- Isso é loucura... Mas sorte minha, porque você deixa mais mulher pra mim...

Quando reergue a mão ao rosto, sente, de olhos ainda fechados, o suor a persistir, cada vez mais grosso, pesado. A cabeça, leve, não ecoa mais estampido algum.

- Por que você vai embora pra Capital? Pensei que nós dois...
- Vou estudar... Você sabe que quero ser ator... Por isso, preciso ir... Mas volto pra buscar você,
Carolina, e aí nos casamos... Você me espera?...
- Espero, por que te amo... Mas dizem que a Capital está cheia de mulheres bonitas, com silicone...
- Não trairei você, minha querida... Escreverei sempre... Adeus...
(Um último beijo amargo, na porta do ônibus.)

O suor na testa faz deslizarem imagens distorcidas. Na cabeça dele, o olhar moribundo da mãe, as discretas lágrimas do pai. Se alguma força ainda lhe restasse, só diria: Sinto frio.

“Minha doce Carolina,
Movido pela saudade que me dilacera, escrevo a segunda carta para você, neste dia tedioso. Espero que seu coração se aqueça com as palavras que a minha alma aqui registra.
Como já lhe escrevi anteriormente, continuo a trabalhar como garçom, naquele restaurante movimentado, cheio de celebridades, que às vezes me deixam polpudas gorjetas. O curso de teatro continua, mas recusei a peça que me propuseram, por ainda me achar incapacitado.
Tão logo tenha condições, volto para buscar você e os nossos sonhos, quando então nos casaremos. Me espere.
Sempre seu,
Alfredo”

Tocando de leve a testa, ele sente que o suor que ainda escorre engrossa cada vez mais. Desliza a mão novamente até o peito.

“Não me escreva mais. Estou de casamento marcado. Adeus.”
(Rasga o telegrama, o sonho, a alma.)

O gelo que agora sente na cabeça faz-lhe recordar o beijo – derradeiro – da mãe na testa dele, pouco antes de morrer. Tenta mover os lábios, que não obedecem mais.

Vamos ensaiar texto de Plínio Marcos. Por que você não vem com a gente?
Preciso fazer alguma coisa com a minha vida, antes que resolva me matar...
Nem fale uma coisa dessas. Amanhã, neste horário, vem para o ensaio. Plínio Marcos tem um papel pra você...
Venho sim... Chega de tanto fugir do palco, que é a minha vida...

Um torpor faz o corpo inteiro dele estremecer. Uma ácida gosma escorre pelo canto da boca, enquanto o olhar permanece escuro – impassível.

A cena precisa ser crua – um verdadeiro soco no estômago. - grita o diretor – Marcação. Luzes. Repetindo!

A leve tontura faz com que ele pressinta agora o corpo flutuar. Sente a camisa empapando de grosso suor.

Não, não e não. - esbraveja o diretor – Vocês não podem esquecer dos olhos e do corpo, que fala mais que o texto.

Tonto, ainda tenta reagir. A mão repousa no peito, em completa desobediência. Dos olhos, pesadas lágrimas rendem-se ao espesso suor que faz brilhar o rosto lívido.

É preciso colocar medo nos olhos. - ordena o diretor, respirando fundo – Marcelo, segura mais firme esta arma. Alfredo, olhos arregalados de pavor. Podem recomeçar a partir daí!...

O que ele sente agora é o rosto encharcado de uma pasta que encobre os poros. Se ainda pudesse racionalizar alguma coisa, saberia que é sangue vivo a escorrer, misturando-se com suor frio.

- Alfredo, nosso Al Pacino brasileiro – brinca o diretor -, depois do tiro, antes de cair, você ainda fala através do olhar cravado no Marcelo. Podem reiniciar a cena, que até parece real...

De repente, um zunido ensurdecedor faz sacudir a cabeça dele. O corpo, estirado no asfalto, estremece, involuntariamente, com o frio que traz o estampido de volta, nesta noite suja de sangue. A rua permanece sombria, silenciosa. O estampido da bala perdida só ecoa ainda na cabeça dele, que nem chegou conhecer Al Pacino. Fim de cena.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Coração

Dora Brisa
O coração que te entrego agora
Não bate, nem apanha...
Tão-somente pulsa e sangra a cada hora...
Por isso, toma cuidado: não arranha...

Este coração não é feito de poesia...
Pelo contrário, tem sangue - morno e vermelho...
Coração de vida vadia,
Órgão refletido no menor espelho...

Pequeno, e quase sempre tão frágil,
Cabe - inteiro - na tua mão...
Evita o movimento mais ágil,
Pois o que tens é o meu coração...

Coração que não pulsa mais forte diante da dor,
Nem acelera enamorado...
Um órgão feito de sangue - amor...
Nada mais que um pedaço do meu corpo dilacerado...

Aceita este coração a pulsar descompassado,
Em ritmo às vezes tão inseguro...
Entre tuas mãos, abandonado,
Entregue ao sentimento mais puro...

E se um dia este coração não mais pulsar,
Silencia por um momento...
Nada de lágrimas a extravasar,
Nem qualquer poesia de lamento...

Foi apenas mais um coração
Que, de tanto pulsar, chegou a morrer...
E por amar sem qualquer exatidão,
Simplesmente não suportou mais viver...

Voz - Eduardo Cunha:

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Impossivelmente real

Foto: Burt
Dora Brisa

A realidade não me compreende,
E o que existe de real em mim
É essa incompreensão pura.
Nada me falta, nada me sobra,
Por que a realidade não me suporta,
Nem me sustenta, ou me acredita.
Fui feita e nascida
À revelia da realidade,
Que me desconhece, ou me ignora.
Assim vivo - à margem da realidade
Que não me enxerga, não me sabe.
O mais real que há em mim
É essa realidade torturante,
Que não chega se fazer presente,
Por que, antes e acima de tudo,
Prevalece o meu existir ignóbil,
Breve, ainda que pesado,
Forjado a ferro e fogo pelas
Chamuscadas farpas de uma
Realidade tão sem sentido
Quão a própria existência humana.

domingo, 8 de abril de 2012

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Poema em linha torta

Dora Brisa

(À persona de Fernando Pessoa)

Imagina você,
Moço,
Que eu, analfabeta
De pai e mãe
(com muito respeito),
Já sonhei em fazer versos,
Versos bonitos,
Enfileirados,
Bem traçados
e trançados.
Já sonhei em fazer versos,
Moço,
Em rodas de ciranda,
De capoeira,
De maracatu,
De candomblé.
Já sonhei em fazer versos,
Moço,
No Cristo Redentor,
Na Praça do Ipiranga,
Na Estátua do Laçador,
Na Mangueira – minha escola de samba.

Tanto sonhei em fazer versos,
Moço,
Que um dia o poema apareceu,
Assim, por acaso,
Meio andando de lado,
Cabisbaixo,
Parecia embriagado.
Em passo trôpego,
Deixou o seu recado:
Sou o poema de pé quebrado,
Torto,
Desmesurado.

Poema abjeto,
Escrachado,
Objeto
Despudorado.

Nos meus versos,
O poeta não despeja lágrima –
Deixa sempre a última gota
De cachaça,
Ou o vômito que engasga.

Poema deixado em
Parede de banheiro.
Cheio de palavrões,
Irônico, verdadeiro.

Sou o poema que rasteja
Nas mesas de bar.
Nasce num porre de cerveja,
Morre antes do dia clarear.

Poema amassado,
Esquecido,
No lixo jogado.

Poema que não fala
Da doce amada.
Nem o mais barato perfume exala,
Enquanto rola na escada.

Poema de uma perna só,
Que se apoia pelos muros,
Maltrapilho de dar dó,
Cochilando pelos becos escuros.

Tua opinião?...
Que me importa!
Não preciso de razão,
Sou poema em linha torta.

Voz - Helena Antoun:

terça-feira, 3 de abril de 2012

Entrega

Foto: Denise

Dora Brisa

Me rendo
Me entrego

Sinto
Penso

Penso
Sinto

Sinto
Sinto

Penso
Penso

Me acabo.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Olhos

Dora Brisa

Tão lindos os olhos
Encharcados
Pretos
Azuis
Esverdeados

Tão lindos os olhos
Que lacrimejam
Sem pensar
Desaguam
Encharcam qualquer lugar

Tão lindos os olhos
Que choram sem razão
Olhos tristes
Olhos festivos
Que às lágrimas dão vazão

Tão lindos os olhos
Que brilham sem parar
Desabafam lágrimas guardadas
Molham sentimentos
Que a alma em segredo reservou lugar

Tão lindos os olhos
Que espelham alegria ou dor
Em cada lágrima que escorre
Neste misterioso livro
Chamado vida - amor

Tão lindos os olhos
Que lacrimejam o meu reflexo
Olhos cansados
Lágrimas silenciosas
Que recolho em gesto desconexo.

Voz - Rosany Costa:

quarta-feira, 14 de março de 2012

Fio da navalha

Foto: Denise
Dora Brisa

“Por ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar
o abismo de que sou feita.” (Clarice Lispector)

Um final de dia insosso, como o é o outono, em todos os seus lânguidos dias e noites. Restam apenas o fragor do verão e o prenúncio do frio que traz o inverno. Em passos lentos, dirijo-me ao banheiro, como quem carrega poucas roupas numa valise, procurando um só vagão na estação de trem.
Não havia planejado, mas desejo agora imergir em água morna. O desejo de tornar-me liquefeita toma conta de mim. Com certa violência – eu, que detenho em mim, gestos imperceptíveis -, começo a encher a banheira de água límpida, translúcida, vaporizando o azulejo frio e rijo do banheiro.
Ouvindo o barulho da água que jorra na banheira ainda fria, tiro do meu corpo, o vestido simples que cobriu-me do meu dia já vivido – passado. Na calcinha, uma fraca nódoa vermelha. Detenho-me na água viva que jorra, na qual banharei minha vida.
Nua, diante do espelho que circunda a banheira, deixo-me inundar pelo sentimento mais humano que prevalece: piedade. Enxergando além do corpo, com a largueza que o vapor da banheira me dá, penso nas tantas vidas vividas por este só corpo só. E é pelo espelho que vejo cair, timidamente, uma gota vermelha. E mais outra.
Quando baixo o olhar, agora rendido pela realidade, que – dominadora – se sobressai, o que vejo é um filete vermelho a escorrer na minha coxa direita. Sangue. Do meu corpo, desliza um tênue fio de navalha cortante. O mesmo sangue que escorre dentro do meu corpo, que se perde em veias, vasos, artérias, brota agora para fora de mim, como se não houvesse mais espaço lá dentro para tanta vida vermelha.
Aos poucos, o filete se alarga, e já não mais escorre somente pela coxa direita. Busca outros caminhos na coxa esquerda. E o que vejo agora é minhas pernas banharem-se de um vermelho vivo, viscoso. Meus olhos rendem-se ao vermelho cintilante, e também eu inundo-me da vida que verte de dentro de mim. No tapete, uma gota de sangue sobrepõe à outra. E mais outra.
Nada mais sinto. Neste instante único, esfacelo-me em gotículas de glóbulos brancos e vermelhos, que abandonam meu corpo íntimo, entregando-se ao primeiro capacho que as acolhe. Gota a gota.
Lentamente, uma hemorragia caudalosa se forma junto aos meus pés. Enquanto implora o que ainda não entendo, mais e mais sangue jorra de dentro de mim. Já não são gotas que juntam-se umas às outras. Rompem-se todas as comportas, e não há outro jeito, senão aceitar silenciosamente o correr das águas do rio, que retornam finalmente ao leito de origem – o chão frio, agora coagulado.
Água pura vem unir-se à pequena e presente poça de sangue. Detenho-me a olhar minuciosamente a água que tenta lavar o vermelho que pinta o azulejo de vida. Mas nem o insistente líquido transparente retira o brilho sanguinolento do chão onde se aloja. Só assim percebo que, como eu, a banheira transborda, dando passagem à água, que, como meu sangue, também é vida. Enquanto desligo a torneira, dois tipos de vidas diferentes – duas composições químicas provindas da mesma natureza – disputam espaço no azulejo inerte, fundindo-se num vermelho ainda mais líquido.
Penso. E o que penso agora é que a vida brota de dentro de mim, num só impulso desesperado, desesperador. Mas não me desespero. E ainda penso. Enquanto o fio da navalha liquefaz de vermelho o meu corpo.
Será isso o que chamam de parto? Se – finalmente – estou parindo, onde está o corpo fetal? Será que vou parir um feto coagulado no azulejo sempre inerte? Será que o coágulo – meu filho – dará vida ao azulejo?
Por que um filho – nunca por mim desejado? Estarei parindo o sonho de tantas mulheres? Por que eu – logo eu -, que nunca desejei ter um só filho? Por isso estou parindo assim: em coágulos que coagulam outros coágulos?
Será isso um aborto natural? A revolta de um filho contra a própria mãe, que nada fez para tê-lo, ou detê-lo? Que jamais imaginou desejá-lo? Que dizer a este filho-sangue, que se recusa a transformar-se carne da minha carne, neste ato insano de doação ao nada? Serei eu o nada a quem este coágulo-filho se doa pungente, num só gemido escarlate?
E se estou a parir outro Messias, outro Salvador? Mas nem me chamo Maria. E também não sou santa. Não saberia sofrer a dor de mãe, aos pés da grande cruz. Oh, Pai, afasta de mim este cálice, porque não saberei beber, num só gole, este sangue que continua a sair de dentro de mim.
“E erguendo a taça de vinho, Ele disse: Eis aqui o meu sangue”. O que jorra de dentro para fora de mim é vinho? Vinho que agora azeda abandonado no azulejo? Terei plantações de uva dentro de mim – cada vaso, uma semente? Parreiras imensas, infindas, que desfolham no outono? Serão as folhas ressecadas que agora – liquefeitas e avermelhadas – tingem minhas pernas, meus pés, até o azulejo que não é meu?
Mas ainda sinto dentro de mim, sangue a correr nas veias. Cada vez mais célere, como a multiplicar-se loucamente, na vã tentativa de compensar a falta das folhas secas, que continuam a cair, a inundar de vermelho os meus olhos.
“O meu sangue ferve por você”. É a música que a memória me traz. Cada vez mais presente aquele dia em que resolvi caminhar entre os barracos no morro. Era essa música que saía de um rádio à pilha, que escorava a porta aberta da casa da lavadeira, que, assoviando, estendia brancos lençóis ao vento. Nada mais lembro.
O sangue que escorre de mim não é fervente. Nem parece morno. Insólito. Desliza sem pressa nas minhas pernas, que às vezes estremecem. Se pelo menos o sangue fervesse, eu sentiria minhas pernas protegidas. Quem sabe até me banhasse no vermelho que escorre, buscando sentir-me tão liquefeita – o próprio sangue -, como jamais me senti na água pura e morna da banheira.
Sinto-me impelida à auto-comiseração. O sangue que até agora viveu em mim quer doar-se por inteiro – ao nada. E já não sei se, nesta doação involuntária, restará sequer uma gota de vida vermelha em mim.
Será que isso está acontecendo, por que nunca fiz sequer uma mísera doação? Será que meu sangue acumulou-se em tempo cronometrado, para, num só e decidido ímpeto, esvair-se em doação desmedida, até a última gota?
Se em mim não restar um só filete de sangue a rastejar nas veias? Serei eu a única pessoa a viver sem vida? Com certeza, tomando conhecimento do meu estranho caso de doação ao nada, cientistas me farão de cobaia em suas experimentações cada vez mais absurdas. Como absurda seria a minha vida sem sangue. Quem sabe até minhas veias recebessem doação de sangue de barata. Porque só as baratas sabem doar-se à morte, ao nada. E ainda procriam, multiplicam-se. Talvez seja por isso que barata não tenha sangue. Irei me tornar uma barata? Não. Prefiro a borboleta, voltando sempre à sua crisálida. Borboleta não tem sangue? Mas tem asas.
De dentro para fora de mim, acontece um assassinato. E eu inerte, e eu pálida, e eu pintada de vermelho insólito, como o próprio azulejo frio, indiferente. Dentro de mim, alguma coisa mata uma outra coisa que jorra sangue para fora de mim. Será um sinal? Um pedido de socorro? Mesmo que decifrado o grande enigma, quem ouviria meu pedido de socorro? Estou no vigésimo terceiro andar deste prédio emudecido. Nem que se configure a total doação involuntária – até a última gota deste sangue que coagula -, nem assim um só glóbulo vermelho chegaria à entrada desse edifício.
E se eu embalasse este sangue coagulado, e arremessasse o pequeno pacote improvisado pela janela do banheiro? Será que chegaria até lá embaixo? Será que alguém – um só alguém – se deteria, por curiosidade, ou simples compaixão, na vida que continua a brotar de dentro de mim?
Resignada e compadecida, ajoelho-me, nua (rendida), na poça pegajosa de sangue. Nada mais penso. E o que sinto é uma extrema emoção, nunca sentida por meus sentidos – todos concentrados neste instante que escorre no sangue, cada vez mais vivo, borbulhante até. Pela primeira e única vez, estou ajoelhada em cima da minha vida mais secreta, mais íntima. O que sinto nas minhas pernas e nos meus pés é o sangue que corria lá dentro, e agora se doa ao nada.
E o que sinto mais forte é que agora estou dividida: parte de mim corre entre vasos, artérias e veias, e a outra parte coagula no chão estéril, silencioso. E ainda assim vivo. E ainda o vermelho toma conta das minhas pernas, dos meus pés, colorindo até o azulejo antigo. Por um momento, fecho os olhos, e deixo-me invadir pela tontura condescendente.
Braços largados até o chão, sinto meus pulsos enfraquecerem. Será o fim? Fim de quê? Se a vida ainda brota de dentro de mim, e torna cintilante o coágulo que meus olhos – agora abertos – vislumbram. Na lápide derradeira, ficaria registrado, entre heras e ervas daninhas: Aqui jaz uma criatura que doou a vida ao nada, até a última gota. E outra coisa não restaria, porque já teriam limpado o coágulo seco deste banheiro.
Mas se de fato for a morte, de que me valeu a vida? De que valeu o escorrer do sangue pelas minhas pernas? De que valeu eu sentir o vermelho escarlate tingindo meu corpo – por dentro e por fora?
Nem sequer um filho? Mas nunca desejei parir um filho. Mas se eu desejar algum dia? De que me vale agora o fim, este sangue que coagula entre minhas pernas?
E se um dia, complacente, eu aceitar ser Maria? E quiser parir o sangue salvador? E se eu juntar todas as lágrimas e dores, para chorar aos pés da grande cruz?
E se eu decidir tomar, num impetuoso e demorado gole, de uma só vez, todo este vinho que o dentro de mim despeja para fora? E se, ainda assim, eu sentir o doce do coágulo que doa a vida ao nada? E se?...
E se eu me recusar a seguir esta doação inteira ao nada? E se eu quiser estancar este sangue que teima em sair, como lágrima incontida? E se o meu medo coagular agora – neste instante – até a última gota de sangue que resta ainda dentro de mim?
Quando criança, ouvi a benzedeira dizer, na sua sabedoria plena, que deve-se colocar compressa de açúcar, para se estancar o sangue. Quero adoçar meu sangue vermelho – não este que já está fora, que já não é mais meu. Quero tornar doce o sangue que faz meu corpo todo estremecer à sua passagem.
Se meu sangue é a minha vida, minha vida escorre agora borbulhante de benzeduras, simpatias, mandingas. Ouço as novenas das beatas fiéis à Nossa Senhora da Boa Morte.
Já não penso, porque o sangue que ainda vagueia dentro de mim transita tão-somente no meu sentir. Sinto dificuldade para respirar. E já nem sinto as veias pulsarem – sequer a aorta. O que sinto, mais que isso, é uma câimbra febril nas pernas e nos pés. Uma febre lancinante, viva. Enquanto o vermelho se faz agora em vagarosos coágulos, que obedecem a ordem da cadeia que impera, coagulando o chão – que nem mais azulejo é -, para receber a vida que se esvai.
Sem nenhum pensar, olho para a poça sanguinolenta. Minha boca está seca, sedenta do sangue que já não é mais meu. Num impulso de misericórdia – semelhante àquele da mulher que roubou três pãezinhos na padaria -, também eu roubo um coágulo da perna que continua sendo minha.
O sabor que me chega à língua é agridoce, tal qual minha vida. Pela primeira e única vez, degusto o sabor insólito da minha própria vida. Saber não é sentir. E para sentir, é preciso não saber. Por isso, nada sei da minha vida. Sinto.
Que seja esta a última gota do sangue que já foi meu. Demoro-me em degustar o agridoce de que é feito o dentro de mim. Voltando o olhar à poça no chão, sinto que me embriaguei com o meu próprio vinho, engolindo toda a vida que ainda vivia entre os coágulos agora secos.
E agora meu paladar jamais voltará a ser o mesmo. Porque antes de degustar o vinho de dentro de mim, pensava eu que sabia, que conhecia sabores. Pobre consciência, que para tudo busca definição.
O sabor da laranja não está na laranja. Porque o verdadeiro sabor da fruta é o que ela carrega no broto da flor, que se doa em fruto. O sabor é sempre genuíno – como o sangue que ainda goteja insistente entre minhas pernas amortecidas.
Aceito a doação involuntária – desde que não seja para o nada. Quero doar-me em semente, depois tronco, galhos, folhas, flor, até o bendito fruto sabor genuíno. Que meu sangue dividido – o que goteja fora de mim, e aquele que borbulha lá dentro – regue a semente do que será o sabor genuíno de todas as coisas. Porque eu experimentei, sem vacilar, o cálice do meu próprio vinho, e tomei-o à última gota vermelha.
E nada mais poderá ser como antes. Porque o meu medo foi destruído pelos coágulos sanguinolentos que continuam a coagularem-se entre si. O que se forma é uma massa espessa no chão, aparentemente dura, que se desfaz com a primeira gotícula vermelha que segue o curso natural: de dentro para fora de mim.
Meu corpo tremeluz agora na penumbra do banheiro. E a auréola da poça coagulada começa a escurecer. Já não cintila mais o sangue borbulhante. Não há mais vida? Vida existe ainda – dentro de mim. Mas fora de mim, meu corpo padece, como padecem todos os corpos que se doam desmedidamente. E já não há mais força para soerguer-me. E já nem quero mais levantar. O sangue a escorrer lentamente. Ainda.
Quiçá meu último pensamento humano: e se tudo isso for apenas um sonho, um mísero sonho de um corpo cansado? Não é um sonho. Porque o agridoce toma conta da minha boca, que chega a arder em saliva. Enquanto o dentro de mim se esvazia.
Sentir minha vida por um fio de navalha faz-me concentrar na passagem de cada glóbulo, dentro para fora de mim. Não há revolta. Nem aceitação. A desistência simples – sem artifícios, ou heroísmo – a tudo assiste. Calada. Tudo sente. E consente.
E também não há dor – porque nenhuma parte do meu corpo foi decepada. E meu sangue não esguicha, em sinal de emergência. Agora, somente um tênue fio vermelho perpassa a linha quase invisível que separa o dentro do fora de mim.
Minha cabeça cambaleia à frente. Sinto que não preciso mais manter os olhos abertos. É o meu corpo que sangra, que sente. E a vida a gotejar humildemente. Sem nenhuma pressa, ou prece.
Cada vez mais vazia de sangue, uma lembrança vaga me chega: Quando criança, eu estava sempre a aventurar-me em bicicletas, árvores enormes. De quando em quando, um arranhão aqui, outro ali. Eu não chorava. Podendo alcançar o ferimento com a língua, ficava a lamber o meu sangue – este mesmo sangue que agora sai de mim -, até estancar a ferida.
Hoje, são tantas feridas, que eu não teria saliva para lambê-las todas. Até porque o sangue que deixa de ser meu, neste instante, não brota de nenhuma cicatriz mal curada. Pelo contrário. Este sangue que coagula ao sair de mim provém da passagem mais natural, pela qual a maioria de nós nasce para a vida que está fora.
Lentamente, rastejo agora em direção do espaço vago que existe entre a banheira e o vaso sanitário. Desprovida de força humana, rastejo, deslizo sobre o sangue coagulado no piso agora morno. E meu esforço sanguinário deixa rastros vermelhos, de novo cintilantes. Pouco resta nas comportas dilaceradas, que persistem em gotejar todo o vermelho da vida que se esvai. Para onde?...
Em estado de torpor, sinto minha cabeça pesar. Pesa com tantas palavras sem sentido. E já nem sinto o pardo filete de sangue que dá seguimento à saga da desistência mórbida.
Cada vez mais palavras desconexas faz minha cabeça pender até a tampa do vaso sanitário. Chuva. Campo. Sol. Dia nublado. Branca nuvem. Folha seca. Carrossel. Pipa. Mudez. Abraço. Frio. Floresta. Mar. Noite. Solidão.
Em minha semi-consciência, as palavras se esvaem como o sangue de dentro de mim. Todas coagulando, uma a uma. E restam sílabas, letras, e depois somente hieróglifos que já não podem ser desvendados.
Silêncio. Um zunido ensurdecedor arrebenta a consciência que ainda resta. Desfaleço.
... Desperto numa cama leve, onde o colchão, o travesseiro e os lençóis são de uma leveza que combina com a brancura do ambiente. Reconheço que estou num hospital. Como vim parar aqui? Há quanto tempo estou internada? As perguntas insistentes fazem minha cabeça – agora leve – latejar.
Tento mover o corpo, para quem sabe sentir o sangue que ainda vive dentro de mim. Sinto. Só não posso mexer o braço esquerdo, preso por uma agulha até o suporte que goteja líquido vermelho, viscoso, plasma sem brilho. Será aquele mesmo sangue, coagulado no azulejo, que já foi meu, e agora retorna para dentro de mim?
Sentindo dormência no braço direito, com esforço humano, busco a campainha. Aperto ininterruptas vezes, até surgir na porta branca, uma moça sorridente, toda vestida de branco, com os cabelos pretos escondidos em alvo lenço.
Procuro minha voz, e depois palavras conexas – que atendam aos meus sentidos. Nenhum som audível. Somente eu escuto meus pensamentos, onde as perguntas continuam alojadas. A enfermeira – que assim se parece – tenta me tranqüilizar. Pede para eu não ficar nervosa, que “está tudo bem agora”.
Tudo bem? Que tudo está bem? E o que é este bem em tudo? Você escuta meus pensamentos, moça? Onde estou? Como vim parar aqui? Com certeza, não joguei-me do vigésimo terceiro andar. Se me lembro, havia uma poça de sangue coagulado no piso, que já não era mais tão frio. Meu corpo estava lá. Você lê meus pensamentos, enfermeira? Então, responda-me: O que fizeram com o sangue que, ao sair de dentro de mim, já não era mais meu? Responda. Responda.
Entre minhas perguntas sem respostas, adormeço.
Quando acordo, o que enxergo é uma pele que, de tão morena, parece negra. E nesta pele, dois olhos ávidos, um nariz franzido, e uma boca larga, com brancos dentes a combinarem com a brancura dos lençóis, da parede do quarto. É Ermelinda, a empregada fiel – mais de dez anos de convivência em casa. É ela quem vai me contar tudo o que preciso saber. Se ela está aqui, é por saber de tudo o que aconteceu comigo, depois que eu deixei de saber de mim, do meu sangue que escorria, e agora não sinto mais escorrer.
Ermelinda continua parada – sorridente – diante de mim. Nada fala. Parece estar em oração, enquanto não tira – um só segundo – os olhos de mim. Balbucia alguma coisa, que a mim chega ininteligível, e depois ergue os braços, olha para o teto branco, e diz: Amém! Amém! No meu mutismo incompreensível, repito com ela: Amém! Amém!
O que se segue é um gesto vão da minha parte. Tento, com esforço humano, erguer o antebraço direito em direção de Ermelinda, que agora se aproxima de mim. Ela fala baixo, pausadamente (agora sei por que há tanto tempo ela trabalha comigo).
Com Ermelinda por perto, nada preciso falar. Ela sabe. Ela intui. Ela sente. E é esta sabedoria que agora responde a todas as perguntas latejantes da minha cabeça. Começa dizendo para eu não exigir muito da mente, que também enfraquecera com a hemorragia. E Ermelinda me conta que, naquele domingo de folga, depois de lavar as louças do almoço, ela despediu-se de mim, e foi visitar o pai velhinho, que vive num asilo. Ainda presa à minha mudez, lembro o dia que nós duas fomos visitá-lo. E dizer que ainda guardo o aperto daquela mão emagrecida, cheia de grossas veias de sangue.
E Ermelinda verbaliza o que eu já havia deduzido: ao entardecer, logo após a missa (“Rezei tanto pela senhora!”), ela retornou à casa. E o que encontrou foram poças de sangue, na escuridão do banheiro, e um corpo nu, pálido, mais inerte que o próprio azulejo que ela limpa com tanto zelo.
Lentamente, minha mão – agora tão alva quanto o lençol que me cobre – busca as mãos calejadas da velha e fiel Ermelinda. Dos meus olhos, grossas lágrimas a fitá-la. E também Ermelinda emudece, deixando escorrerem, quase desapercebidas, lágrimas dos alvos olhos.
Uma semana depois, já estou em casa. E, silenciosa, diante da porta aberta do banheiro, fico a tentar rememorar tudo o que aconteceu naquele dia. A suave fragrância de eucalipto comprova a dedicação de Ermelinda, que, atrás de mim, conta que passou meio dia ajoelhada ali, naquele piso, para retirar até o menor resquício – indelével – de todo aquele sangue coagulado. Abracei silenciosamente a velha companheira, lembrando que também eu ficara ajoelhada sobre o sangue que vertia de dentro de mim. Ermelinda retirara até a mais ínfima partícula da minha vida coagulada neste chão frio. Sinto-me – finalmente – perdoada de todos os pecados do mundo. A fiel Ermelinda apagou todas as provas da guerra sanguinolenta travada dentro de mim. Amém! Amém!
Passei dois dias com a tela no cavalete, no canto da sala. Precisava fazer gotejar ali, naquele espaço antes frio e indiferente, todo meu sangue derramado na doação involuntária ao nada.
Agora, com ajuda de Ermelinda, perfuro a parede do hall de entrada, onde meu sangue permanecerá – eternamente? – borbulhando. Para quem entrar aqui saber que há sangue a jorrar – dentro e fora de mim...

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Despedida

Dora Brisa

Não deveriam haver despedidas -
Nem nas estações rodoviárias e ferroviárias,
Nem nos portos e aeroportos...
Nos cemitérios - apenas um até breve...
Não deveriam ser permitidas
As longas viagens de separação...
Não mais despedidas de grandes amores,
Sequer as pequenas dores...
Não deveriam ser permitidos
Os adeuses encharcados de lágrimas,
Nem tampouco o beijo apressado (amargo),
Com gosto de despedida...
Não deveriam ser permitidos
O choro de quem fica
E o silêncio de quem parte,
Sem saber se vai voltar...
Não deveria ser permitida
A construção de estradas
Que separam, distanciam, desviam corações...
Por lei, deveria ser permitida - tão-somente -
A viagem de quem não segue sozinho...
Toda bagagem deveria conter,
Obrigatoriamente,
Todo sentimento - coração,
Para quando longe fosse aberta,
Surgissem a família, os amigos,
E até um pouco de chão...
Muitas árvores, passarinhos...
Um colo, uma mão amiga,
E tudo o que se mereça para ser feliz...
Para repouso, uma canção de ninar...

Voz - Helena Antoun:

Olhos

Foto: Ronaldo

Dora Brisa

Tão lindos os olhos
Encharcados
Pretos
Azuis
Esverdeados

Tão lindos os olhos
Que lacrimejam
Sem pensar
Desaguam
Encharcam qualquer lugar

Tão lindos os olhos
Que choram sem razão
Olhos tristes
Olhos festivos
Que às lágrimas dão vazão

Tão lindos os olhos
Que brilham sem parar
Desabafam lágrimas guardadas
Molham sentimentos
Que a alma em segredo reservou lugar

Tão lindos os olhos
Que espelham alegria ou dor
Em cada lágrima que escorre
Neste misterioso livro
Chamado vida - amor

Tão lindos os olhos
Que lacrimejam o meu reflexo
Olhos cansados
Lágrimas silenciosas
Que recolho em gesto desconexo.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Faz-de-conta

Dora Brisa

Se você existisse,
Eu continuaria sendo
Essas tantas:
Quem eu penso
Que sou,
Quem as pessoas
Pensam que sou,
Quem eu sou
Sem pensar, e
Quem eu não sou...

Se você existisse,
Eu continuaria
Tentando descontrair
O stress cotidiano,
Brincar de gravata,
Ensinar cumprimento
Breve a quem
Finge não me ver...

Se você existisse,
Eu continuaria
Sendo a irônica
Incorrigível,
A palhaça
Sem graça do
Picadeiro da vida,
A criança fora de época...

Se você existisse,
Eu continuaria
Acreditando que
Gentileza
Sorriso
Respeito
Apoio
Fazem toda a diferença...

Se você existisse,
Eu continuaria
Tropeçando
Nos próprios pés,
Deslizando
No leite derramado,
Chorando o que tive
E o que não tive também...

Se você existisse,
Eu continuaria
Olhando mais
As nuvens
Que abaixo delas,
Os olhos da alma
Que o corpo efêmero,
O tudo do nada...

Se você existisse,
E um dia partisse,
Ainda ssim,
Você continuaria existindo em mim,
E eu ainda enxergaria
Solidão:
Tua e minha solidão,
No silêncio deste tempo
Que não quer
Saber de passar...

Voz - Elisa:

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Cinco estórias de amor

Foto: Denise

Dora Brisa
...
Rodrigo conheceu Maria na pré-escola, e só foi reconhecê-la, mais de vinte anos depois, quando reencontraram-se no velório do pai de Maria. A jovem estudava fora da pequena cidade natal, enquanto Rodrigo tinha o compromisso de ser arrimo de família. Maria havia se formado, fazia quase dois anos, em Artes Plásticas. Enquanto isso, Rodrigo trabalhava quinze horas por dia na administração do velho posto de combustível do pai, que morrera com traumatismo craniano, depois de uma queda de bicicleta, num dos tantos passeios que fazia para pescar.
Quando Rodrigo adentrou à capela do único cemitério da cidadezinha, Maria estava sentada do lado esquerdo do caixão do pai. Quando levantou a cabeça aturdida de lembranças, deparou-se com o jovem estendendo-lhe a mão calejada e suja de graxa. Maria já não mais sabia quem era aquele moço de fisionomia cansada e envelhecida, mas encantou-se com a doçura que encontrou no olhar dele. Quanto a Rodrigo, nada disse, diante de Maria, cumprimentou-a e afastou-se, engasgado pelo sentimento (sempre presente) de perda do pai.
Os dias passando, Rodrigo e Maria conversando e visitando esconderijos de infância. Ambos já sabiam um do outro, quando resolveram assumir namoro firme, para casamento próximo. Maria viajou, trouxe a mudança que tinha na cidade onde se formara, enquanto Rodrigo construía casa próxima ao posto de combustível, onde o casal passou a viver, depois do inesquecível casamento.
Para completar a felicidade do lar, chegaram três filhos maravilhosos. O tempo passou, mas a alegria de viverem juntos continuou. Rodrigo e Maria viveram e morreram felizes para sempre.
...
Rosa e Marcos se conheceram na praia. Ela tinha vindo do interior, para conhecer o mar, hóspede de uma família que tinha sítio próximo à casa da família de Rosa. Marcos morava na periferia, mas na areia ninguém sabia disso. Com os cabelos longos, que não chegavam voar ao vento, por causa de tanta parafina, parecendo surfista, Marcos chamava a atenção de todas as frequentadoras da praia, principalmente em finais de semana.
Rosa esqueceu de admirar o mar, quando viu Marcos se aproximar, enquanto ele só tinha olhos à 'gatinha' que acompanhava Rosa, com quem dividia o quarto na 'cidade grande'. Não demorou muito para Marcos ver que só restara Rosa diante dele. Ela, pele branca, olhos claros, muitos sonhos alimentados no luar do sertão, ficava encantada até com o espirro de Marcos. A rinite fazia-o espirrar sem parar, quase o ano todo.
O tempo passou, Rosa perdeu a virgindade e engravidou na praia. Marcos foi pressionado pela família dela a casar. Casaram, pouco antes do primeiro filho nascer. A cada ano novo, um novo filho. E assim aconteceu, por oito anos. No ano seguinte, Rosa se convenceu (finalmente) que de nada adiantava engravidar, na tentativa de manter Marcos em casa, como a mãe dela havia ensinado. Ele não parava em casa, mesmo quando os cabelos, já grisalhos, não escorriam parafina. Trocou a praia por um botequim mais próximo, enquanto os filhos cresciam e também faziam filhos.
Anos, décadas passaram, mas nada mudou: Rosa, convencida de que o melhor seria aceitar Marcos (a vida) do jeito que era, cuidava do marido com zelo, enquanto ele cada vez mais ausente, às vezes derrubado pela embriaguez em vielas desconhecidas. Se não foram felizes, tentaram, cada qual do seu jeito, vivendo na mesma casa, em mundos diferentes. E assim morreram, longe da praia.
...
Sebastião e Suzana estudaram juntos, e desde sempre souberam que eram muito diferentes. Talvez por isso, sentiram-se atraídos um pelo outro. Suzana gostava de filmes de terror, Sebastião, de comédia. Ela era da madrugada, do passeio à beira-mar, à luz da lua e das estrelas; ele era do dia, do sol radiante, do congestionamento, da poluição sonora.
Ambos quiseram desafiar a atração natural dos semelhantes, e resolveram provar para eles mesmos que se completavam, através das diferenças, a cada dia mais gritantes. Brigavam quase sempre, mas fazer as pazes era tão bom, justificavam depois. Assim, namoraram e casaram. Não houve lua-de-mel, pois, na última hora, depois da surpresa que Sebastião fez à Suzana, outra briga começou, antes mesmo da festa de casamento. Ele havia comprado passagens para o Sudão, porque sempre ela dizia que 'queria conhecer aquele povo sofrido'. O que Sebastião não sabia é que Suzana sempre falara por falar, sem sequer imaginar um dia visitar o Oriente Médio. Sebastião não acertava uma. Depois, tudo passava, o casal se acertava mais uma vez.
O casamento, sem festa, sem lua-de-mel, passou, e, quando nem mais brigavam ao lembrar disso, chegaram os filhos – tantas diferenças debaixo do mesmo teto. Enquanto Suzana proibia os filhos, Sebastião permitia, ou vice-versa. O casal só concordava numa coisa, sempre: era a família mais completa que existia, pois naquela casa moravam todas as diferenças do mundo.
Numa manhã qualquer, igual todas as manhãs daquelas décadas de convivência, Sebastião acordou atrasado para o trabalho, enquanto Suzana ainda dormia. Foi o suficiente para o marido sair aos gritos do quarto, despertando os filhos pelo corredor. A família, em pé na cozinha, começou a se olhar, com toda a diferença que sempre houve entre cada um deles, e, sem qualquer palavra, cada qual saiu para um lado. Pouco tempo depois, a casa foi vendida para um casal que (ainda) acreditava na convivência das semelhanças. Provavelmente, Sebastião e Suzana morreram infelizes (ou não) para sempre.
...
Magali cresceu vendo a mãe trabalhar como faxineira de gente rica. Por isso, prometeu a si mesma que se casaria por dinheiro. Na adolescência, cuidou prioritariamente do corpo, sacrificando ainda mais a mãe, que teve de se esforçar na faxina, para comprar-lhe produtos de beleza.
Não demorou tanto (uns dezoito anos, talvez), Magali conheceu Ricardo, filho de uma família tradicional da cidade, gente rica e famosa. Logo, o jovem se interessou pela garota que exibia beleza única. Depois de um namoro rápido, quando já nem se falava mais, na casa de Magali, sobre casar por dinheiro, a jovem confessou à mãe que o único interesse por Ricardo era o dinheiro da família. A mãe solteira, abandonada pelo pai de Magali, alertou à filha, falando sobre 'dignidade', 'honra', 'caráter', palavras comumente encontradas hoje somente em dicionários.
Os apelos da mãe não foram ouvidos por Magali, que estava cada vez mais segura do seu propósito junto a Ricardo. O que mãe e filha não sabiam é que também Ricardo tinha acordo com a família dele para que, tão logo casasse, recebesse a herança que lhe cabia, ainda com os pais vivos. O casamento de Ricardo era garantia, para os pais dele, de que havia tomado juízo, assim poderia cuidar da própria vida, com a tranquilidade da recompensa que viria em forma de herança.
O casamento de Magali e Ricardo foi o maior acontecimento daquele ano, na badalada alta sociedade. Em vez dos costumeiros abraços e beijos apaixonados, olhares cúmplices, o casal esboçava uma certa seriedade, durante a festa do próprio casamento. Tão logo saíram os últimos convidados, Ricardo olhou para Magali, e, pela primeira vez naquela noite, ambos sorriram, enquanto se abraçavam. Dias depois, Magali recebeu sua parte da herança, já morando em outra cidade com a mãe, enquanto Ricardo viajava para o exterior, escondido dos pais, que tinham-no ainda em lua-de-mel com Magali na Europa. Assim, o casal morreu feliz para sempre.
...
Branca e Milton se conheceram tarde, depois de já terem casado e viuvado por décadas. Ambos foram encaminhados ao asilo, pelos próprios filhos, que não tinham tempo para dar-lhes a atenção necessária. Milton chegou antes, quase nem saía do quarto, entretido com os livros que levara para o seu novo 'lar'. Em seus 79 anos de vida bem vivida (fazia questão de repetir), Milton deixava transparecer uma melancolia, que só quem conhece a solidão depois de tantas despedidas é que sabe.
A vida de Milton mudou, logo na primeira semana que Branquinha, como era chamada no asilo, chegou. Branquinha, com seus cabelos prateados pelos 82 anos de vida, trazia uma luz no olhar, que só quem conhece a satisfação dos deveres cumpridos é que sabe. Milton foi o primeiro a reconhecer o olhar iluminado de Branquinha, e não demorou muito para que ambos permanecessem juntinhos horas a fio, dias e noites, relembrando as tantas vidas que tiveram, cochilando depois.
Foi Branquinha que fez Milton sorrir novamente, e não mais sentir aquele aperto na alma, que lhe causou insônia por tantos anos. Ela sempre fazia questão de dizer que ele lhe devolvera a esperança de continuar se sentindo viva, mesmo depois de já ter achado que a vida tinha chegado ao fim.
Ambos, aposentados, decidiram casar no dia em que Milton completou 80 anos. E assim o fizeram. A festa não contou com familiares, pois todos estavam muito ocupados, cuidando das próprias vidas. Mas houve tanta comemoração, que, além do Juiz de Paz, até uma banda musical foi tocar ao vivo, na cerimônia de casamento. Foi mais de uma década de feliz união, que deu sentido à vida que tiveram. Depois, morreram felizes para sempre.

...e FIM.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Se partires

Dora Brisa

Ah, se partires,
E deixares
Meus sentires,
Meus pensares...

Ah, se partires
Meus pensares,
Meus sentires...

Ah, se conseguires
Partir, sem partires
Meus pensares,
Meus sentires...

Ah, quando partires,
Deixa intactos,
Se conseguires,
Meus pensares,
Meus sentires...

Voz - Rita de Cássia:

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Mornidão


Dora Brisa

O crepúsculo
Fecha os olhos
Fatigados
De enxergar a vida
Que passa
Na rua esquecida
Por trás da vidraça
Guarda no semblante
A mornidão escassa
Do último instante
A ferir a couraça
Nenhum gesto titubeante
Que a cegueira desfaça
Segue o ser errante
A escuridão que transpassa
A rua delirante
Na sujeira mórbida da vidraça.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Nós mesmos nós

Dora Brisa

Bebemos o mesmo vinho
o mesmo pranto

Trocamos o mesmo carinho
o mesmo encanto

Perseguimos a mesma verdade
a mesma ilusão

Guardamos a mesma saudade
a mesma paixão

Lambemos o mesmo prato
a mesma ferida

Sofremos o mesmo desacato
a mesma despedida

Dividimos o mesmo cobertor
o mesmo vazio

Sentimos o mesmo tremor
o mesmo frio

Conhecemos a mesma linguagem
a mesma mímica

Parecemos a mesma folhagem
a mesma química

Saciamos o mesmo olhar
a mesma sede

Deitamos no mesmo mar
na mesma rede

Antevemos o mesmo futuro
o mesmo fim

Destruímos o mesmo muro
o mesmo jardim

Sentimos a mesma calma
a mesma ira

Somos a mesma fauna
a mesma mentira

Perdemos o mesmo trem
a mesma vida

Negamos o mesmo além
a mesma guarida

Sentamos no mesmo caminho
no mesmo avião

Fugimos do mesmo ninho
do mesmo trovão

Choramos a mesma dor
a mesma solidão

Carregamos a mesma flor
a mesma canção

Morremos no mesmo chão
na mesma melancolia

Nascemos no mesmo coração
na mesma poesia

Assim somos nós
Tecendo nossos nós.

Voz - Elisa:

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Conto de mar

Dora Brisa

Que saco!
Nem isso você vê?
Estou abandonando o barco.
Finalmente, consegui meu brevê.

Quero voar, voar,
Voar além do teu céu,
Muito além do teu mar.
E que meu adeus seja o escarcéu.

Abandono o teu barco,
Antes de tudo afundar.
Levo comigo o meu arco,
Porque a flecha pego no ar.

Só você não vê
Que a cena é derradeira:
Gran finale fora da tevê,
Comédia mexicana de primeira.

Você não leva a sério,
Mas do teu barco já saí.
Grito todo tipo de impropério:
Não volto, nem se você pedir.

Você não me ouve mais?
Já sei, ficou surdo, retardado.
Permaneço ajoelhada no cais.
Ao longe, você parece aliviado.

Metódico, solta o barco ao mar,
Sem olhar para trás,
Enquanto levanto devagar,
Aceno, grito todos os meus ais.

Você segue irredutível
A navegar pelo teu mar.
Teu silêncio é compreensível
Para mim, que fico a chorar.

Não, não fui eu que abandonei
O barco que continua a velejar.
Foi você que esqueceu (nunca pensei)
Essa que, agora com brevê, não quer mais voar.