sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Lá vem o Ano Novo

Ruth Rocha

Foi no dia 31 de dezembro. Vocês sabem que o dia 31 de dezembro é o último dia do ano.
Lá, na Casa do Tempo, todos estavam se preparando pra começar o novo ano.
O Ano Velho já estava muito cansado de tanto trabalhar. E o Ano Novo estava prontinho pra nascer.
Todos os ajudantes do Tempo, os segundinhos, os minutos, as senhoritas horas, as senhoras semanas, os doutores meses, todos preparavam-se pra passagem do ano.
Cada grupinho discutia seus problemas. Os segundinhos estavam muito aborrecidos:
- Ah, isso é uma injustiça. Nós, que somos os menores de todos, é que temos que trabalhar mais! E os minutos, aqueles enjoados, vivem nos empurrando! "Anda depressa! Não pode atrasar! Deixa de moleza!"
Os minutos também tinham seus problemas:
- Esses segundos nos dão muito trabalho. Temos que estar contando todo tempo, e eles são tantos! Todos parecidos! Vivem loucos para entrar no escorregador do tempo. De vez em quando, um deles entra na fila antes da hora, e sai cada confusão!
O que vale é que, lá na Terra, ninguém percebe nada.
A Meia Noite é que estava mais importante de todos. Quando na Terra se fazem grandes festas pra comemorar o Ano Novo, Dona Meia Noite estava toda vestida para a festa: de vestido comprido, plumas na cabeça. Parecia até uma estrela de cinema! E andava de um lado para o outro perguntando:
- Estou bem? Que tal meu vestido novo? Cuidado com minha cauda! Esses segundinhos são tão levados...
E lá na Terra todos se preparavam também. Na casa da vovó Emília, havia uma grande festa.
Enquanto as pessoas grandes faziam os doces e enfeitavam a casa, as crianças, todos os netinhos de Dona Emília, preparavam grandes listas de resoluções para o Ano Novo:
- Não vou mais comer escondido.
- Nem eu.
- Não vou mais faltar a aula, pra jogar futebol.
- Eu não vou mais amarrar latas no rabo do Epitácio.
- Não vou mais puxar o rabo da gata Vitiver, coitadinha...
- Não vou mais contar nenhuma mentira.
Quando estava quase na hora, Dona Emília e Seu Tonico e todos os convidados vieram para a sala. E começaram a distribuir apitos, línguas de sogra, tudo que faz bastante barulho.
Pedroca tinha trazido sua corneta:
- Eu é que vou fazer mais barulho que todo mundo!
Joãozinho já estava com alfinete na mão para estourar todas as bolas.
Mas alguma coisa muito esquisita estava se passando. O relógio continuava andando normalmente, mas a meia noite não chegava nunca!
Todos começaram a ficar espantados.
Vovô Tonico tirou até seu grande relógio de bolso, que a vovó Emília chamava de Cebolão.
Até o cuco veio dar uma espiadinha pra ver o que estava acontecendo.
É que lá na Casa do Tempo havia um grande problema: quando chegou a hora de Dona Meia Noite passar para a Terra, ela resolveu fazer greve!
- Não vou! Não vou, e pronto!
- Mas não vai por quê? - perguntou o Tempo - que é o chefão lá deles.
- Não vou, porque estou cansada de tanta fita. Olhe só lá na Terra! - e Dona Meia Noite continuou - Ah! Eu estou cansada de tanto fingimento. Todo ano é a mesma coisa! Prometem ficar bonzinhos, mas, amanhã, estão todos fazendo as mesmíssimas coisas.
Um segundinho passou reclamando:
- Dona Meia Noite, passa logo! Eu não estou acostumado a trabalhar tanto!
O Tempo já estava aflito:
- Eu não posso parar, Dona Meia Noite! Anda logo!
Dona Semana também tentou convencer a teimosa:
- Se a senhora não passar, não vai haver Ano Novo! Coitadinho dele...e o Ano Velho, coitado, vai ter que trabalhar o resto da vida! Ele que já está tão velhinho...
- Ah, não sei de nada! Desde que me entendo por gente, é a mesma coisa. Já estou cansada!
Nessa altura, apareceu a mulher do Tempo, que é a Dona Temporada, e que já estava ficando preocupada de ver tanta confusão:
- Escute, Dona Meia Noite. É verdade que todos os anos as pessoas dizem que vão melhorar, e no fim não melhoram nada. Mas, quem sabe, se este não vai ser realmente o Ano Novo? Não vai ser de verdade um Ano Bom? Olhe só para o Ano Novo, como é bonitinho, tão novinho, uma graça... Quem sabe, Dona Meia noite, hein? Quem sabe?
Dona Meia Noite pegou o Ano Novo no colo. Ele sorriu. Ela também sorriu.
Dona Temporada falou:
- Quem sabe se este aninho tão pequenino ainda não vai fazer um milage? O milagre de todos ficarem amigos, e ninguém pensar em fazer mal aos outros.
Todos aplaudiram.
- É isso mesmo!
- Coragem, Dona Meia Noite!
- Vamos!
Dona Meia Noite olhou para o Ano Novo, que continuava sorrindo.
- Sabe de uma coisa? Então, eu vou! Sai da frente pessoal, lá vou eu!
E Dona Meia Noite, toda vestida de verde, que é a cor da esperança, escorregou pelo escorregador do tempo, dando adeus a todos:
- Adeus, todo mundo! Feliz Ano Novo!
E na Terra a alegria foi grande! Todos os relógios começaram a dar meia noite.
Os foguetes estouravam no céu.
Em todas as casas todos se abraçavam e pensavam: "Quem sabe? Quem sabe? Quem sabe?"...

Com os devidos creditos, Ruth Rocha/Palavra Cantada (cd Mil Passaros):

Vai, ano velho

Affonso Romano de Sant'Anna

Vai, ano velho, vai de vez,
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um,
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum, pra trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,
a casa e o coração.
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.

Vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nossso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso,
e sacia em nós a fome
- de utopia.

Vem na areia da ampulheta com a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se
se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.

na minha voz:

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Rifa-se um coração

Ricardo Labatt

Rifa-se um coração quase novo...
Um coração idealista. Um coração como poucos. Um coração à moda antiga.
Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu usuário.
Rifa-se um coração que, na realidade, está um pouco usado, meio calejado, muito machucado e que teima em alimentar sonhos e cultivar ilusões. Um pouco inconsequente, que nunca desiste de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração que acha que Tim Maia estava certo, quando escreveu: “...não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso é que eu espero...” Um idealista. Um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende. Que não endurece, e mantém sempre viva a esperança de ser feliz, sendo simples e natural. Um coração insensato que comanda o racional, sendo louco o suficiente para se apaixonar. Um furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras. Rifa-se um coração que insiste em cometer sempre os mesmos erros. Esse coração que erra, briga, se expõe. Perde o juízo por completo, em nome de causas e paixões.
Sai do sério, e, às vezes, revê suas posições, arrependido de palavras e gestos. Este coração tantas vezes incompreendido. Tantas vezes provocado. Tantas vezes impulsivo...
Rifa-se este desequilibrado emocional, que abre sorrisos tão largos, que quase dá prá engolir as orelhas, mas que também arranca lágrimas, e faz murchar o rosto. Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes.
Um orgão abestado, indicado apenas para quem quer viver intensamente, e contra-indicado para os que apenas pretendem passar pela vida matando o tempo, defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente, que se mostra sem armaduras, e deixa louco o seu usuário. Um coração que, quando parar de bater, ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro, na hora da prestação de contas: “O Senhor pode conferir, eu fiz tudo certo. Só errei, quando coloquei sentimento. Só fiz bobagens, e me dei mal, quando ouvi este louco coração de criança, que insiste em não amadurecer, e se recusa a envelhecer”.
Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro que tenha um pouco mais de juízo. Um órgão mais fiel ao seu usuário. Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga. Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, mas que incomoda um bocado. Um verdadeiro caçador de aventuras, que ainda não foi adotado, provavelmente, por se recusar a cultivar ares selvagens, ou racionais. Por não querer perder o estilo.
Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. Um simples coração humano. Um impulsivo membro, de comportamento até meio ultrapassado. Um modelo cheio de defeitos que, mesmo estando fora do mercado, faz questão de não se modernizar, mas, vez ou outra, constrange o corpo que domina.
Um velho coração que convence seu usuário a publicar seus segredos, e a ter a petulância de se aventurar como poeta.

Voz - Elisa:

Poema das reformas

Cláudio Murilo

É preciso reformar a casa,
Abrir as janelas,
Que o vento penetre
Em todos os cantos.
É preciso destruir as cercas,
Que as crianças entrem,
Pisem nos canteiros,
Construam a sua alegria.

É preciso reformar a rua,
Que todos andem por ela.
As lojas, os bares, os cinemas
Nos mantenham assim
Unidos e em paz.

É preciso reformar a cidade.
É preciso, antes e sempre,
Reformar o homem.
É preciso despi-lo,
É preciso mostrar
Que todos somos irmãos.
É preciso um novo dilúvio.
É preciso reescrever os livros
É preciso reencontrar a terra
É preciso que uma torrente
Invada todos nós
E lave nossa alma.

Voz - Sereníssima:

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Alma-luz

Clarice Lispector

Minha alma tem o peso da luz,
Tem o peso da música,
Tem o peso da palavra nunca dita,
Tem o peso de uma lembrança,
Tem o peso de uma saudade,
Tem o peso de um olhar,
Pesa, como pesa uma ausência,
E a lágrima que não se chorou,
Tem o imaterial peso de uma solidão,
No meio de outras.

Voz - Rosany Costa:

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Encantado

El-Mara

Te espero, feito namorada debruçada no portão
a cada sombra coração em sobressalto
mas tu não vem
meus olhos seguem dia após dia
a mesma trilha o mesmo desejo
o mesmo sonho, encontrar-te
a tarde finda
a noite traz o abraço frio
mas tu não vem
noite após noite
o mesmo sonho
vejo teu rosto teu sorriso
sinto teu calor, teu beijo
te sinto,
tão real tão meu tão nós
indicas o caminho da espera
te espero,
mas tu não vem
és tu amor da noite?
te espero.

Voz - Elisa:

sábado, 25 de dezembro de 2010

Inscrições I

Helena Antoun

Era impressionante o esforço que eu fazia
Durante o banho
Para que não saísse a marca de batom
Cuidadosamente carimbada pelos lábios de minha mãe,
No dorso de minha mão.
Era um ritual só nosso.
Ela se aprontava para o trabalho
E eu, ainda tão pequena,
Acompanhava todos os seus movimentos
Com a devoção de um torcedor na arquibancada.
Quando ela estava pronta, pegava minha mão esquerda
(a do coração, dizia)
E suavemente, ali, selava seus lábios em batom.
Chamávamos isso de
‘Beijinho pra marcar’.
Não se admitia a possibilidade
De minha mãe sair
Pra onde quer que fosse
Sem que deixasse registrada
A sua presença em mim,
Através das cores e perfumes
De seus mais variados batons.
Era tão lindo, cheiroso e perfeito o contorno de sua boca...
Essa cumplicidade era de tal
Relevância em minha vida,
Que eu zelava com fervor religioso
Para que a marca perdurasse,
Até o momento do retorno de mamãe,
Quando, orgulhosa, eu lhe mostrava
O cuidado que dispensara aos seus lábios.
Na sesta,
Eu deitava com as mãos pra cima,
Segurando o espaldar da cama
De modo a recordar, mesmo durante o sono,
Que ali havia algo precioso
A ser preservado.
Ao me dar banho, Rutinha já sabia
Da proibição de tocar
Naquela área sagrada do meu corpo.
E creio que,
Por mais respeito aos lábios de mamãe
Do que a mim,
Ela seguia as determinações,
Com obediência canina.
Até hoje,
Quando olho minhas mãos,
Vejo a marca indelével
Da tatuagem feita pelos lábios de mamãe, em minha alma.

Voz - Helena Antoun:

Poema de Natal

Vinicius de Moraes

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

na minha voz:

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Canção das mulheres

Lya Luft

Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços, sem fazer perguntas demais.
Que o outro note quando preciso de silêncio, e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos, porque estou quieta.
Que o outro aceite que me preocupo com ele, e não se irrite com minha solicitude, e, se ela for excessiva, saiba me dizer isso com delicadeza, ou bom humor.
Que o outro perceba minha fragilidade, e não ria de mim, nem se aproveite disso.
Que, se eu faço uma bobagem, o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices, tantas vezes.
Que, se estou apenas cansada, o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.
Que o outro sinta quanto me dói a idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco, em lugar de voltar logo à sua vida.
Que, se estou numa fase ruim, o outro seja meu cumplice, mas sem fazer alarde, nem dizendo ''Olha que estou tendo muita paciência com você!''
Que, quando, sem querer, eu digo alguma coisa bem inadequada, diante de mais pessoas, o outro não me exponha, nem me ridicularize.
Que se, eventualmente, perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro, ainda assim, me ache linda, e me admire.
Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite, quando não estou podendo ser nada disso.
Que, finalmente, o outro entenda que, mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser, a mulher maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa - uma mulher.

Voz - Rosany Costa:

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Carta de São Paulo aos Corintios

(Paulo de Tarso)

Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e dos anjos, se eu não tivesse o amor, seria como o sino, ruidoso, ou como o címbalo, estridente. Ainda que eu tivesse o dom de profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência. Ainda que eu tivesse toda fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse o amor, eu não teria nada. Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos. Ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse o amor, nada disso me adiantaria.
O amor é paciente. O amor é prestativo. Não é invejoso. Não se ostenta. Não se enche de orgulho. Nada faz de inconveniente. Não procura seu próprio interesse. Não se irrita. Não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça. Mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa. Tudo crê. Tudo espera. Tudo suporta.
O amor jamais passará. As profecias desaparecerão. As línguas cessarão. A ciência também desaparecerá. Pois nosso conhecimento é limitado. Limitada, também, é nossa profecia. Mas, quando vier a perfeição, desaparecerá o que é limitado.
Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei adulto, deixei o que era próprio de criança. Agora, vemos como em um espelho, e de maneira confusa. Mas, depois, veremos, face a face. Agora, meu conhecimento é limitado. Mas, depois, conhecerei, como sou conhecido. Agora, portanto, permanecem estas três coisas: a fé, a esperança, e o amor. A maior delas, porém, é o amor.
Voz - Sereníssima:

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Meu avesso

Paula Xavier

Não sou pura, nem indecente,
Nem tão meiga e tolerante,
Altruísta e diferente,
Nem bela, feliz, nem carente.
Tenho manhas, uso senhas,
A voz se altera, às vezes doce,
Outras, arranha.
Sou mulher comum que
Ama, ri e também chora.
Quero o meu avesso exposto,
Como as rugas do meu rosto,
Para não me exigires outra conduta.
Quero respeito por meus defeitos,
Tolerância por minha ignorância.
Quero querer, sem te ofender,
Me vestir de trapos,
Andar descalça,
Os cabelos prender,
E, ao meu apetecer,
Ficar cintilante,
Bonita e elegante,
Sem me desculpar,
Sem te machucar.
O meu avesso irá mostrar
O que não quiseste olhar.

Voz - Elisa:

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Navio Negreiro

Castro Alves

I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir...
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer...
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...

VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Voz - Helena Antoun:

Madrigal melancólico

Manuel Bandeira

O que eu adoro em ti
Não é a tua beleza.
A beleza é em nós que existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti é a vida!

na minha voz:

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Com sabor de manga

Rosany Costa

A noite esvai-se. Escoa...
No horizonte os últimos vestígios de escuridão mesclam-se com o purpúreo.
Volto mais uma vez meu olhar para a velha mangueira.
A mesma mangueira que em noites de lua cheia ganha de adorno um halo prateado que a faz para mim, única!
Efeito desta lua que por detrás surge cingindo-a de um prateado singular, como se entalhada estivesse sobre o céu.
Aproximam-se o outono e outra lua cheia...
Ainda restam alguns frutos nesta minha amiga, que até a pouco estava carregada, pujante.
Logo não haverá mais mangas (Bourbon). E ela continuará linda, altaneira, imponentemente esperando pelas luas cheias...
E continuaremos a ter nossas longas conversas pela madrugada. Ela, eu e a lua cheia...
Somos três senhoras confidentes. Uma cheia de luz, outra cheia de frutos e a outra repleta de amor.
Temos fases, atravessamos estações e de certa forma estamos eternizadas.
A lua pelo desde sempre admirada e decantada.
Eu e minha velha amiga mangueira pelos frutos dados, por nossas sementes plantadas.

De súbito penso em tantas maravilhas que meu olhar desfruta, absorve, retêm.
Coisas que enternecem minha alma e delicadamente, suavemente contagiam-me fazendo com que deseje partilhar momentos tão sublimes.
Posso descrevê-las, relatá-las e tão somente isso.
Não.
Pode ser mais.
Somos mais!

As saberás através do meu olhar.
As sentirás pela emoção com que eu as relatar.
As tatearás pela minha voz e as verás com a tua sensibilidade.
Já desfrutamos tanto juntos e sob o mesmo olhar...
Cumplicidaremos através do amor.

Bom dia estrela-guia.
Bom dia vida.
Bom dia meu amor!
Bom dia minha vida!
Recebe meu beijo com sabor de manga...

Quem sabe... algum dia!
A lua, a mangueira, tu e eu.
Quem sabe... um dia...
Um beijo com sabor de manga!

Voz – Rosany Costa:

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A arte de ser feliz

Cecília Meireles

Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros, que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Voz - Sereníssima:

sábado, 11 de dezembro de 2010

Noturno

Ariano Suassuna

Têm para mim Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.

Será que mais Alguém vê e escuta?

Sinto o roçar das asas Amarelas
e escuto essas Canções encantatórias
que tento, em vão, de mim desapossar.

Diluídos na velha Luz da lua,
a Quem dirigem seus terríveis cantos?

Pressinto um murmuroso esvoejar:
passaram-me por cima da cabeça
e, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
a ventania me agitando em torno
esse cheiro que sai de teus cabelos.

Que vale a natureza sem teus Olhos,
ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?

Da terra sai um cheiro bom de vida
e nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mãos…

Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Águas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.

Ó meu amor, por que te ligo à Morte?

Voz – Elisa:

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Olhe ao redor

Clarice Lispector

Olhe para todos a seu redor, e veja o que temos feito de nós.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não entendemos, porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas, coisas e coisas, mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga, e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos, diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar, mas sem usar a palavra salvação, para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor, para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte, para tornar nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte, por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado, com falso amor, a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.
Temos disfarçado, com o pequeno medo, o grande medo maior, e, por isso, nunca falamos o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado, por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingênuos, para não rirmos de nós mesmos, e para que, no fim do dia, possamos dizer "pelo menos não fui tolo", e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza, a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E, a tudo isso, consideramos a vitória nossa de cada dia.
(Homenagem aos 90 anos de nascimento de Clarice Lispector - 10/12/1920 -, que nasceu Haia Pinkhasovna Lispector.)
Voz - Rosany Costa:
:

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Em mim também

Olavo Bilac

Em mim também, que descuidado vistes,
Encantado e aumentando o próprio encanto,
Tereis notado que outras cousas canto
Muito diversas das que outrora ouvistes.

Mas amastes, sem dúvida ... Portanto,
Meditai nas tristezas que sentistes:
Que eu, por mim, não conheço cousas tristes,
Que mais aflijam, que torturem tanto.

Quem ama inventa as penas em que vive;
E, em lugar de acalmar as penas, antes
Busca novo pesar com que as avive.

Pois sabei que é por isso que assim ando:
que é dos loucos somente e dos amantes,
na maior alegria, andar chorando.

Voz – Eduardo Cunha:

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O laço de fita

Castro Alves

Não sabes, criança? 'Stou louco de amores...
Prendi meus afetos, formosa Pepita.
Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?!
Não rias, prendi-me
Num laço de fita.

Na selva sombria de tuas madeixas,
Nos negros cabelos da moça bonita,
Fingindo a serpente qu'enlaça a folhagem,
Formoso, enroscava-se
O laço de fita.

Meu ser, que voava nas luzes da festa,
Qual pássaro bravo, que os ares agita,
Eu vi de repente, cativo, submisso
Rolar prisioneiro
Num laço de fita.

E agora, enleada na tênue cadeia,
Debalde, minh'alma se embate, se irrita...
O braço, que rompe cadeias de ferro,
Não quebra teus elos,
Ó laço de fita!

Meu Deusl As falenas têm asas de opala,
Os astros se libram na plaga infinita.
Os anjos repousam nas penas brilhantes...
Mas tu... tens por asas
Um laço de fita.

Há pouco voavas na célere valsa,
Na valsa que anseia, que estua e palpita.
Por que é que tremeste? Não eram meus lábios...
Beijava-te apenas...
Teu laço de fita.

Mas ai! findo o baile, despindo os adornos
N'alcova onde a vela ciosa... crepita,
Talvez da cadeia libertes as tranças
Mas eu... fico preso
No laço de fita.

Pois bem! Quando um dia na sombra do vale
Abrirem-me a cova... formosa Pepita!
Ao menos arranca meus louros da fronte,
E dá-me por c'roa...
Teu laço de fita.

Voz – Rita de Cássia:

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Dona Zita

Dora Brisa

No armazém da dona Zita
- legítima portuguesa –,
Vende-se e compra-se
Bacalhau e Vinho do Porto: “uma riqueza”.
Dona Zita vem me atender
- expressão arredia –,
Arregala os olhos para crer:
Falo português – que alegria!
Nostálgica, penso em voz alta:
“Ao monte alto o Capitão
Deu o nome de Monte Pascoal;
E à terra, Terra de Vera Cruz (...)”
Dona Zita me olha interrogativa.
- É frase de uma carta
De um tal Pero Vaz de Caminha
- respondo evasiva.
(Ela não tem obrigação
de saber. Afinal, Caminha
não endereçou a carta à dona Zita.)
A portuguesa me pede
Notícias do “nosso Brasil”,
Com o mesmo brilho no olhar
(será?)
Que um dia encantou-se um tal Cabral.
- Lembra os índios brasileiros, dona Zita?
Quase todos extintos.
Mas o Brasil tem muitos “brancos” e negros
Que perfuram as orelhas,
O umbigo, as narinas, as sobrancelhas,
Os lábios, e até a língua,
Onde penduram o que chamam “piercing”.
- Tem mais, dona Zita:
Hoje, negros e “brancos” brasileiros
Também pintam o corpo,
Como faziam os índios com urucum.
É moda.
Chamam tatuagem.
De repente, ouço um fado:
Amália Rodrigues?
Não.
É a alma de dona Zita
Que canta baixinho,
E suavemente se agita.
- Quer saber dos negros,
Bondosa portuguesa?
(negros que os seus patrícios
vilipendiaram com escravidão)
No “nosso Brasil”,
Ainda sofrem discriminação.
Como na África – resistem.
Ganha todo o povo brasileiro,
Que tem samba, capoeira,
Feijoada, vatapá,
Até Candomblé
(com a benção de
todos os Orixás).
- Futebol brasileiro, dona Zita?
Anda mal das pernas.
Não temos mais Pelé
(negro também).
Os jogadores perderam a agilidade,
Com o peso do dinheiro nos bolsos.
Nos estádios lotados,
Carregam mulheres louras
(Marias-chuteiras)
E carros importados.
- As crianças e os velhos
Do “nosso Brasil”?
Mudemos de assunto, dona Zita.
(Por favor, senhora,
não me obrigue relatar as
atrocidades cometidas
contra os filhos de ninguém.)
Apesar de e por tudo,
Dona portuguesa,
Brasileiro é um povo
Bem-humorado,
Faz piada dos portugueses,
Com quem sente afinidade.
(A propósito, a senhora
conhece aquela piada da bicha
no consultório do urologista?
Melhor não contar.)
Brasileiro é trabalhador
(pode acreditar, dona Zita):
Planta, colhe,
Só não tem o que comer.
Por isso, alimenta a alma
Sempre com um sorriso
- às vezes banguela -,
Recebendo o estrangeiro
De praias e braços abertos,
Rindo da própria desgraça;
(Não vou entristecê-la mais,
contando que a minha terra
está ficando sem palmeiras,
nem sabiá.
Por isso, as aves não
gorjeiam mais lá.)
Inesperadamente,
Pressinto o encontro das águas
Do Tejo com o Amazonas,
O Araguaia, o Guaíba,
O Velho Chico, o Parnaíba.
Recolho minhas lágrimas refletidas
No Velho Tejo que transborda.
Saio do armazém
Com a sensação de ter deixado
Dona Zita cantando um saudoso fado,
Às margens do Alentejo.
Volto para casa sentindo-me
(mais uma vez)
descoberta.
Ah, que vontade que dá
De voltar para o “nosso Brasil”,
E esperar por Cabral.
Ele poderia, dessa vez,
Levar dona Zita.
(Quem sabe?)
Pois, pois...

(Há pouco, recebi esse presente de minha mãe africana - Paula -, de Angola. Por isso, a exceção de postar a gravação de um rabisco meu, neste mês especial.)

Voz - Paula Xavier:

sábado, 4 de dezembro de 2010

Navegar, Navegar

Ivan Goffi

Fiz de minha vida um navio
E de meus sonhos, profundo mar
Lancei meu navio na água
E deixei o vento o levar
A brisa que sopra mansa
Acalenta as ondas do mar
E por mais que ele balance
Seu controle há de voltar
Voltar para as mãos seguras
Que norteiam meu navegar
A seguir o caminho às escuras
Sob a auréola de doce lar
E a luz que o iluminar
Com o brilho do amanhecer
Certamente vai me mostrar
As espumas do meu viver
Mas se um dia um recife aflorar
À frente desse navio
Não sei se vou suportar
Traçar mais esse desvio
Cansei-me de navegar
Cansei-me de tanto sofrer
Se é pra viver nessa mágoa
Prefiro, em vez de aportar,
Abrir com minhas mãos a água
Pra ver meu navio naufragar.

Voz - Rejane Cordeiro:

Mês plural

Durante este mês, vou postar aqui toda poesia que cada vez mais me emociona, me fascina... É a minha homenagem a tantos poetas desvairadamente sonhadores, docemente loucos, e tanta gente que ousou gravar essas poeticas almas que nos tiram do chão, nos arremessam ao abismo do nada, e nos mostram o quanto podemos voar – o impossível não existe!... São eles, e tantos outros, que inspiram minh’alma continuar respirando, transpirando...

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Busca e perdição

Dora Brisa

Quando, dos teus olhos amedrontados,
Escapuliram duas lágrimas,
Desesperei.
Enquanto um beijo meu as recolhia,
Outras tantas lágrimas
Vieram juntar-se aos meus lábios.
E o meu beijo,
Que nascera doce,
Acabou por salgar-se
(afogar-se)
No mar do teu pranto,
Que era também meu.
Até hoje,
Tuas lágrimas esperam
Por meu beijo,
Que chora a ausência
Dos teus olhos,
Sem sequer um adeus.

Voz - Eduardo Cunha:

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Nada

Foto: Ronaldo - Rio de Janeiro

Dora Brisa

Nada te dou,
Porque nada tenho,
Nada sou,
E é para o nada
Que me vou...

Não sei de você,
Porque nem sei de mim.
Não sei para onde vou,
Nem sei de onde vim.

Quem fui,
Não sou.
Quem serei,
Nem sei.
Quem sou?...

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Procura

Dora Brisa

Quero ouvir aquela canção
Que canta o amor, a paz,
O olhar, o perdão,
E muito mais...

Não é essa música, não,
Nem aquela lançada ano passado...
É outra, que fala de tudo do coração,
Extingue a palavra pecado...

Também quero aquela poesia
Que fala de outros tempos,
Do nosso dia-a-dia,
Quando voávamos com outros ventos...

Não, não é aquela poesia,
Porque falta alguma coisa nela:
Talvez uma rede vazia,
Ou uma esperança na janela...

Quero música, poesia,
Procuro-as por todo lugar,
Mas nada preenche minha busca vazia,
E louca continuo a pesquisar...

Cansada de vasculhar,
Deixo minha procura, enfim...
Sozinha, busco o caminho do mar:
Eis a música e a poesia dentro de mim...

Voz - Rosany Costa:

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Preludio

Dora Brisa

Minhas vestes são bandeiras
Brancas tingidas de sangue.
Minha unica arma é a palavra:
Fria, fere e mata a minha alma.
Quente, salva a minha loucura.
Vivo de grandes revoluções,
Só dentro de mim.
Nem faço mais perguntas,
Pois as respostas me perseguem,
Avidas, ironicas, febris.
Só tenho duas mascaras,
Que não me foram herdadas:
Uma é a mascara de um palhaço
Que matei de tanto chorar
De rir da minha cara.
Outra, mascara de bicho-papão.
Essa é minha mesmo.
Tanto uma, quanta a outra
Provam minha incompetencia,
Total inutilidade à vida humana.
Eu, que desumana sou,
Sem qualquer herança,
Eu, sem gestos,
Eu, sem olhares,
Eu, sem saber se sou,
Ou se um dia fui
O que nunca serei.
Se já não peço desculpas
Por eu mesma existir,
É por desconfiar, na verdade,
Dessa existencia de eu mesma.
Por vezes, sei que toco
A simplicidade e a complexidade
Do que chamam vida.
Mas meu astigmatismo
Só me permite enxergar
O que parece ser uma vida
Complexa na simplicidade,
E tão simples na complexidade.
Eu, desistente,
Eu, convencida de nada,
Eu, isenta de ser e não ser,
Silencio na resignação.
Aparentemente saudável,
Não desafio eletrodos.
Há muito, meu coração
Foi servido em banquete de vermes.
Depois, chegaram os abutres.
Há muito, é minha alma
Que pulsa, e sangra,
Sangra, pulsa.
Até o dia do nada.
O sindico do predio anuncia
Que (ainda) estou viva:
- A senhora tem de pagar
O condominio,
A conta do gás.
Ele não sabe que devo
O pagamento do meu parto
À rezadeira negra, que,
Numa cantilena de noite chuvosa,
Chorou, quando me viu nascer.
Definitivamente, não sei viver
Com os seres humanos,
Eu, desumana, que só
Aprendi a não ser.
A quem, e como, pagarei
O meu funeral indigente?
Eu, que nada sei de vida,
Menos ainda de morte.
Eu, que insisti em nascer,
Para ver a vida passar,
Pela janela embaçada,
Enquanto a morte me faz
Companhia, na sala de espera.
Eu, que nada sei de eterno,
Não compreendo o momentaneo.
Eu, que não sei andar na escuridão,
Silencio os olhos, diante da luz.
Eu, passado do futuro que recebi
De presente, enquanto dormia.
Mas ela insiste em repetir:
“Não entender é tão vasto”.
Ora, Clarice, vastidão é não existir.
Até Clarice continua viva,
Mais viva ainda, na morte.
E isso nada tem de eternidade:
As lembranças, as obras
Não a deixam morrer em paz.
Agora é tarde.
Mas não havia aviso previo.
Existo.
E a minha existencia é tão grandiosa,
Quanto a existencia de uma pulga,
Que salta desapercebida,
Numa ida-e-vinda inconsequente,
Para depois deixar-se morrer,
Morrer tanto, sem precisar ser esquecida.
A palavra 'sempre' me assusta,
Enquanto morro, a cada 'nunca'.
Não sei o que fazer de mim,
Do que eu poderia ter sido,
Do que era para eu ter sido,
De tudo o que não quis ser,
Do nada que eu também recusei,
Do que não serei, não fui, não sou.
Não sei o que fazer com o que não sou,
E nada mais resta saber em mim.
Já fui ninguém, alguém viu.
Mas faz tanto tempo.
O que me sobra é não ser,
Enquanto o tempo finge existir.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Assim será

Dora Brisa

Um dia, minhas mãos
Não vão mais um gesto esboçar...
Um dia, meus pés
Não mais tropeçarão no meu andar...
Um dia,
Não mais meterei os pés pelas mãos,
Na vida que me foi dada,
tirada...

Um dia,
Restarão (ainda) os toques sonhados,
Os passos imaginados,
A vida que andou
Pelos meus pés,
Pelas minhas mãos deslizou ...

Depois de tanta escuridão,
Assim será – um dia...

Voz - Elisa:

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Das alegrias e das dores

(Foto: Guilherme -Amapá)

Dora Brisa

Quando me soltaram no mundo, nada me disseram sobre dores, ou alegrias. Tateando, engatinhando, fui descobrindo que não existe dor maior, ou dor menor. Nem tampouco a alegria é mensurável, comparável. Cada dor é única. Cada alegria também. Fatal. E foi assim que descobri ainda que a alegria e a dor são – essencialmente – solitárias, mesmo quando acompanhadas de um outro sorriso, uma outra lágrima.
Quando me soltei no mundo, eu nada sabia de solidão – a mais autêntica solidão sentida na companhia de um outro alguém solitário. Mas ainda restava o dentro de mim – que sobrevivia num buraco encrustado no canto do porão escuro. Num ímpeto de busca de ar, meus olhos se ofuscaram diante da luz do sol. E já não havia como voltar ao porão escuro, porque a porta se trancou por dentro, como a recusar o calor do dia. Gotas de chuva de verão lavaram minha alma, que enxergava agora a casa abandonada, que sempre esteve acima do porão. Aos poucos, escancarei portas e janelas dessa casa, lavei tudo com água pura, ajeitei os móveis, coloquei a vida no lugar.
Hoje, solta no mundo – depois que meu velho pai deixou-me aos cuidados de mim mesma -, ainda me extasio diante da dor e da alegria. A dor, desde sempre, me é subjetiva: não aprendi a sofrer pelo efeito, mas sim, pela causa: sempre a maldade humana (a mesma raça de onde provêem também as minhas maldades – sou pré-histórica). Já minhas alegrias – sempre digo – são simplórias. Às vezes, um leve roçar de penas de passarinho em vôo, pelo meu rosto, traz a alegria do meu dia. Ou então os olhos arregalados e a boca aberta em baba da criança que solta um balão pelos ares. Isso faz meu olhar brilhar da mais pura alegria. Mas confesso também que sinto as dores e as alegrias do mundo. Tudo e todos tocam profundamente minha sensibilidade desnuda de vaidades, ou orgulhos. Há muito, não somo dores-alegrias, anos-dias. Apenas vivo: descoberta...

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Poeta

(À Cecília Meireles)
Dora Brisa

A porta do meu coração
Continua aberta

Mas não sou poeta

Só choro
Quando a saudade aperta

Mas não sou poeta

Alguns “normais”
Me consideram pouco esperta

Mas não sou poeta

Me perco nas palavras
Sou tão indireta

Mas não sou poeta

Quase sempre viajo
Em Alfa, Beta

Mas não sou poeta

Nas tempestades
Minha pequenez permanece ereta

Mas não sou poeta

Meu pensar tem asas
De matéria concreta

Mas não sou poeta

Meu sentir vagueia
Além da vida incompleta

Mas não sou poeta

Meu olhar sobrevive
Em estado de alerta

Mas não sou poeta

Minhas mãos e meus braços suportam
A carga aparentemente correta

Mas não sou poeta

Diante da música
Minha alma desperta

Mas não sou poeta

Minha vida sem mistérios
É simples, discreta

Mas não sou poeta

Minha alma torta
Tenta caminhar em linha reta

Mas não sou poeta

Tão-somente escrevo o que
Me transcende, me liberta

Mas não sou poeta

Cecília é – e sempre será – poeta,
Em cada verso,
Em cada crônica,
Na sensibilidade descoberta...

Voz - Sereníssima:

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Resto de vida

Dora Brisa
(Para alguém que seguiu viagem sem volta)

Já não vejo mais seu olhar perdido,
Nem seu sorriso ingênuo de não pensar.
O que você sonhou um dia, e foi esquecido?
Por que não se entrega à vida a expirar?

Será que ainda lembra algum momento?
Do que teve consciência na triste vida?
O que guardou da infância ao relento?
Seu silêncio ecoa na gaiola apodrecida.

Você sabe, ainda sabe de tudo.
Por que não se debate numa só reação?
Seu mundo ficou, de repente, mudo,
Nem sua alma parece em oração.

Ao seu lado, neste leito entristecido,
Onde a vida padece a cada segundo,
Já não espero mais sequer um gemido,
Nem uma fala sua, ou olhar moribundo.

Será que lê os pensamentos meus,
Ou se afoga na desesperança?
Ainda guarda a fé em Deus,
Ou sua alma chora feito criança?

Tem na memória os sonhos que dançava?
Guardou, de algum passeio, o sabor do vento?
Será que lembra o relógio que mais gostava?
Pra que relógio, se não há mais tempo?...

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Repouso

Dora Brisa

Um pássaro assovia
Uma tarde cai
Uma nuvem passa
Uma folha segue
Uma formiga foge
Uma orquídea desabrocha
Um gato se espreguiça
Uma aranha borda
Uma telha goteja
Uma borboleta pousa
Uma brisa sopra
Um fruto despenca
Um galho se inclina
Um crepúsculo chega
Uma vida embala uma rede
Um sonho único
Finalmente – repouso!

Voz: Rita de Cássia:

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Abre, Maria!

Dora Brisa

Estava exausta. Nem havia se apercebido que trabalhara mais de cinco horas ininterruptas. Sabia, entretanto, que deveria concluir aquela tradução, antes que o sol denunciasse o desleixo dela com o humano (sobrevivente).
Feito animal sedento, desliza, descalça, pela cozinha, atrás daquele copo de leite que guardou no dia anterior. Toma com sofreguidão, como desengasgando a própria vida - sem sentido! -, sem degustar a brancura do leite morno na boca.
Passa indiferente ao relógio cuco da sala, e joga-se na velha poltrona, que há muito oferece-lhe colo aconchegante, sem nada exigir. Em silêncio pleno, fecha os olhos e - por um só momento - nada pensa. Deixa-se embalar pelo mutismo daquele pobre apartamento perdido no terceiro andar do Leme. Não há perfume, porque nunca gostou de flores, que, sem quaisquer explicações, fenecem ao entardecer. Só o verde das folhas contrastam com o branco das paredes - branco que, por mais que ela absorva diariamente, renova-se leitoso e translúcido.
Como a despertar de um sonho, arregala os olhos, enquanto escuta gritos lá embaixo. Aos poucos, a penumbra da sala torna-se mais clara - visível -, quase obrigando-a levantar. Segue em direção da sacada, e nada enxerga lá embaixo. Mas os gritos - agora desesperados - continuam, sempre mais ensurdecedores. A voz - já um tanto rouca - define-se masculina. "Provavelmente, um velho" - a razão acusa-lhe, enquanto a visão obedece à busca da audição.
O corpo todo agora treme. E ela tenta concatenar o raciocínio mais lógico que já teve, para definir o que dizem aqueles bramidos misturados com choro pungente - feito de lágrimas tão grossas, que ela jamais ousou derramar um dia. "Por que um velho choraria a tal ponto, numa hora dessas?" - questiona a razão indiferente. Mas nem as perguntas mais óbvias lhe acalmam o coração, e retorna à sacada.
Com os ouvidos atentos, define a frase insistente, que lhe chega em forma de grito insano: "Abre, Maria! Atende!"
Novamente a razão lhe faz lembrar os nomes dos poucos vizinhos com os quais divide a rotina de esbarrar-se com alguns deles, durante a semana, pelos corredores sempre escuros. "Não há Maria aqui" - sussurra algumas vezes, na intenção - quem sabe - de acalmar um daqueles urros que começam a atordoar a quietude da madrugada. Mas o velho não a escuta, e passa a tocar o interfone com insistência, demonstrando a busca desesperada por Maria, sem deter-se nos números dos apartamentos. Por minutos (incontáveis), o velho, como a provocá-la, repete o exercício de tocar todos os números do interfone, gritando: "Abre, Maria! Atende!"
Ela já não suporta a indiferença da penumbra. Liga todas as luzes do apartamento, até o velho abajur que abriga os óculos cansados de enxergar o mundo. E questiona, em voz alta: Por que Maria não abre, não atende? Onde estará Maria?...
No instante seguinte, imagina Maria fugindo de casa, escondendo-se naquele pacato prédio do Leme, sem causar a menor suspeita. Enquanto o pai - desesperado - suplica-lhe atenção, Maria esconde-se debaixo das cobertas.
"Mas pode haver outra Maria, aquela que deixou o filho deitado ao lado do marido, e nunca mais apareceu" - reflete ela. "O velho quer dar notícias do filho, e da mãe dela que não mais abrirá os olhos" - silencia.
Lá embaixo, os gritos começam a espaçar-se, cada vez mais roucos, desesperados. E Maria não abre. Diante da sacada, contorcendo as mãos, a ânsia que Maria - em ato impetuoso - abra e atenda um só daqueles urros insanos. Mas Maria parece surda, ou indiferente: não abre.
Aos poucos, os gritos tornam-se frases soltas na madrugada: "Abre, Maria! Abre, Maria! Abre, Maria!"
Quando a madrugada parece novamente adormecer, ela busca, com o olhar fixo na calçada, o velho já cansado. Mas não enxerga criatura alguma, por mais que limpe os óculos no vestido solto no corpo. As poucas árvores da rua - silenciosas - não denunciam qualquer sombra insana. E nem um grito mais ousa implorar por Maria.
Num esforço físico, debruçando-se na sacada, alonga a visão dos óculos, que perscrutam um só vulto. Quando já pensa em desistir, vê adiante, quase dobrando a esquina, um corpo envelhecido, cambaleante. Passos indecisos, silenciosos. O vulto causa-lhe fascínio que a imobiliza. E o instante se repete: nada pensa.
Aquela sombra desesperada some na esquina, enquanto ela, debruçada na sacada, permanece indiferente. O relógio cuco denuncia cinco horas da manhã, e ela já nem pensa mais nas vinte páginas que ainda resta traduzir daquele francês que a arremessa à esperança na vida.
Num grito desesperado - insano -, ela lembra: "eu sou Maria!" Há tanto tempo deixou de ser Maria, que nem sabe mais pronunciar o próprio nome com familiaridade. Um dia - há muito tempo - foi Maria, Maria da Luz, que viveu na escuridão até deixar de ser Maria.
Mas nem um só grito ficou, para ela responder: "eu sou Maria!" O peito comprime o nome: Maria. Em passos acelerados - despertos -, dirige-se à porta, que se fecha quando tranca a fechadura. Até a escuridão dos corredores não mais lhe amedronta. Descalça, segue muda em direção da Praia Vermelha, que prenuncia o nascer do sol. A brisa da madrugada toca-lhe os cabelos, enquanto o olhar dela se perde na indiferença do mar absoluto. Uma só onda vem beijar-lhe os pés, como a perguntar por Maria. Mas ela não ousa pronunciar novamente esse nome, que poderia voltar em forma de eco: Abre, Maria!

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Fado ao mar

Dora Brisa

Quisera eu, por um só instante,
Ser o mar com seu mistério,
Que traz para perto, o distante,
E faz do passado, cemitério...

Quisera eu ser o mar,
Que nada guarda ou retém,
Onde cada instante a desaguar
Não deixa pistas a ninguém...

Quisera eu, nesta vida,
Pudesse em mar diluir-me,
Sem precisar seguir a lida,
Finalmente fugir da terra firme...

Quisera eu outros mundos refletir,
E, como mar, com ondas embalar
Os sonhos do pescador a partir,
Sem destino, ou cais, a aportar...

Quisera eu embriagar-me de mar,
E, na minha inimaginável tontura,
Sobre as mais altas ondas caminhar,
Sem deixar rastros de amargura...

Quisera eu ser o mar infinito,
Que a tudo permite passagem,
Não fazer ecoar um só grito,
Nas profundezas, guardar a bagagem...

Voz - Elisa:

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Voo

Dora Brisa
Voa o tempo...
As nuvens voam...
Voa a poesia...
O pensamento voa...
Voam as andorinhas...
A musica voa...
Voa o sonho...
As palavras voam...
Voa a saudade...
O passo voa...
Voam as ideias...
A folha voa...
Voa a memoria...
A esperança voa......
Enquanto dentro de mim não há silencio:
a menina
segue o voo da vida – vendaval impreciso...

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Vem

Dora Brisa

Vem, toca as minhas mãos,
Vê como são trêmulas e frias,
Tão trêmulas e tão frias,
Como devem ser as mãos
De toda gente.

Vem, me dá um abraço,
Um abraço de alma inteira,
Um abraço aconchegante, quente,
Um abraço silencioso,
Como deveria ter toda gente.

Vem, ouve meu mutismo cansado,
Silêncio feito de nadas,
Depois de ter ouvido tudo,
Até os gritos de dor, de medo,
Gritos de toda gente.

Vem, me conta histórias,
Fala de vidas que não são minhas,
Lembra comigo a tua infância,
Chora e ri da minha (tua) vida,
Tão vivida, como de toda gente.

Vem me dizer que tudo passa:
As nuvens, o sol, a chuva,
As feridas que sangram e cicatrizam.
Mas me diga que também a vida
Passa, como toda gente.

Vem, embala minha alma cansada,
Canta a tua canção pra mim.
Não, não diga mais nada,
Adormeça comigo, na noite sem fim,
Enquanto ainda sonha toda gente.
Vem... Vem...
Voz - Rosany Costa:

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Chanson du silence

Dora Brisa

Num dia qualquer,
Você acordará sem mais
Lembrar de mim,
E você vai querer
Dormir novamente,
Para não mais acordar,
E continuar sonhando.
Mas não haverá
Mais sono,
Nem sonho...
E você não saberá
O que te fará falta,
Por que não saberá
Mais de mim,
Eu, que não sei
Fazer falta
Sequer a mim mesma.
E o dia, entristecido,
Irá embora mais cedo.
E a noite chegará
Com a volúpia de
Tudo escurecer.
Sem memória,
Sem lembranças,
Você despertará,
Na madrugada insone,
Com uma lágrima
Vazia de sal,
No canto do olho,
Por que outro canto
Já não haverá.
Só restará
Um livro rasgado,
Recheado de folhas
Secas de plátanos.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Em busca do EU

Dora Brisa

Saiu em busca do EU
Encontrou em DEUs
E até no atEU
Em outros dEUses, EU se escondEU
MorphEU
ZEUs
OrphEU
Mas a vontade que nascEU
CrescEU
E não morrEU
Achou EU
Entre PigmEUs
EUnucos
CirinEUs
Lá a rota invertEU
Quem escrevEU
Já não lEU
Simplesmente vivEU
O que era sEU
Passou a ser mEU
E tudo mais esquecEU
Porque no apogEU
ChovEU
Fim de linha: Furou o pnEU!

Voz - Helena Antoun:

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Vida de artista

Dora Brisa

... e a vida é só isso: tudo. Nada...
... Nascer artista não é dom – é sina... Nascer artista é morrer para o que chamam 'normalidade'... Não se pode nascer e crescer artista (por que outro destino não há), sem se pagar um preço muito mais alto, se comparado àqueles que se reduzem à maioria...
O artista pode até se rebelar à sina, decidindo (achando que pode mesmo) ser 'normal' – jamais o será... Simplesmente por que continuará sendo artista – às vezes desleixado, outras parecendo desinteressado, ou até demonstrando sensibilidade exacerbada, a qual pode ser questionada e até mal-interpretada pelos demais (que não são artistas).
Para quem assiste, artista é atraente, por que parece viver na excentricidade – o que nada mais é que a falta de jeito no lidar com o mundo, pelo menos o mundo da 'normalidade'. Para o público e os fãs, artista não chora, não sofre, não come, não tem cefaléia, diarréia, dor de dente, não bebe, nem faz xixi – tudo é cênico, inclusive e principalmente a (miserável) vida de artista. Por isso, a criação de revistas de fofocas, por todo País, é hoje investimento sempre seguro: todo mundo quer saber dos artistas – não da vida (sina) deles, mas da aguçada imaginação daqueles fofoqueiros de plantão que resolveram melhorar de vida, às custas de vidas que nem existem.
Para quem convive com os artistas, não há nada excêntrico; pelo contrário, o cotidiano (natural à maioria) pesa nos ombros do artista. Artista vive de amores e horrores – ilusões e decepções... E isso é tudo na sina do artista, por que o resto é recheio disso – ora um tanto amargo, ora mais adocicado, mas sempre ficando um mal-estar na alma do artista... Quem convive, sabe: artista não suporta calculadora, nem cadernos de economia, política, futebol. Artista lê até classificados, quando acabam os cadernos de cotidiano e cultura. Anúncios fúnebres? Nem pensar. Artista já sofre, mesmo antes de nascer – não aguenta saber a morte dos que nem nasceram para a anormalidade do existir.
Artista tem tantas vidas, tantas quantas humanas... Tem aquela que ele nasce – artista. Tem aquela que ele sonha. Tem aquela que ele observa. Tem aquela que ele imagina. Por isso, artista é feito a ferro e fogo, forjado nesta vida, que é única.
Artista é atemporal. Fora do (seu) tempo e do (seu) espaço, ele vive o que acha que é viver... Mas o artista não pára para pensar nisso, não: ele vive além ou aquém do tempo, do espaço. O artista nunca parece estar onde está, por que onde ele está é além de onde está. O artista se debruça nas entrelinhas, como o pescador a observar o mar... E este momento é único – tudo do nada do existir...
Artista está sempre em desequilíbrio: ou se esforça forjando uma vida que parece ser sua, ou nem levanta da cama, em dia de sol e compromissos lá fora. Oito ou oitenta: de outra forma, artista não sobrevive... Antes mesmo de nascer, sabia que ia ser assim: um dia a mais, um dia a menos... Mas artista não conta os dias, nem as emoções. Artista vive, mas nunca está seguro disso. Há momentos em que, fazendo uma coisa qualquer – tão humana, tão igual -, o artista se depára consigo mesmo, e se estranha, e se admira. Num simples prato culinário, o artista se enxerga: artista, desprovido de qualquer outra vida, senão a sua própria arte. E ninguém mais testemunha a existência do artista, neste instante.
Para quem o conhece, o artista até parece 'normal', mas, dentro dele, no fundo da alma que lateja, a vida é assombro, êxtase – o tempo inteiro... Artista não consegue se recolher numa concha, e amar uma só criatura, contentar-se com os descendentes de sangue. Não. Simplesmente por que artista ama a humanidade inteira. Artista carrega dentro da alma, muitas vidas, muitos amores – por isso, colocam-no, quase sempre, no palco da promiscuidade. Mas artista quer conhecer mais que muitos corpos. Artista quer reconhecer, na emoção do outro, a própria emoção do existir. Artista quer dar e receber amor de tanta diferente gente, como já cantou o poeta.... Por que artista é um tumor inflamado de tanto amor pela humanidade. Mas isso não serve nem para justificar a falta de regra na vida (sina) do artista.
Artista é injustificável, por que não mora no seu próprio mundo – mora no mundo vizinho, onde existem leis que só reconhecem deveres, não direitos à vida. Neste mundo vizinho, onde o artista foi despejado, só se ama verdadeiramente uma pessoa de cada vez. Mas o artista não tem tendência à poligamia – ele só quer continuar amando toda a humanidade, sentindo as emoções que fluem das almas. O artista quer sentir vida, mesmo no mundo vizinho. O artista só quer continuar sonhando que, no fundo da alma humana, todos sentem, se emocionam e também querem mudar o mundo. Enquanto isso, o artista tenta adormecer, por alguns momentos, sonhando – acordado ainda – que amanhã será outro dia. Mas o dia acorda – como todos os outros dias – com cara de insônia.
... e a vida é só isso: tudo. Nada...

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Se partires

Dora Brisa

Ah, se partires,
E deixares
Meus sentires,
Meus pensares...

Ah, se partires
Meus pensares,
Meus sentires...

Ah, se conseguires
Partir, sem partires
Meus pensares,
Meus sentires...

Ah, quando partires,
Deixa intactos,
Se conseguires,
Meus pensares,
Meus sentires...

Voz - Rita de Cassia:

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Vazio

Dora Brisa

Quero do vazio – o oco
Mais que isso
É pouco

Quero do vazio – o impossível
Menos que isso
É normal, presumível

Quero do vazio – a loucura
Mais que isso
É só compostura

Quero do vazio – a espera
Menos que isso
É palavreado que reverbera

Quero do vazio – a imaginação
Mais que isso
É idiota servidão

Quero do vazio – a agonia
Menos que isso
É mesmice tardia

Quero do vazio – o além
Mais que isso
É comodismo de alguém

Quero do vazio – o grito
Menos que isso
É silêncio aflito

Quero do vazio – a luz
Mais que isso
É opaco, não reluz

Quero do vazio – a ausência
Menos que isso
É empoeirada essência

Quero do vazio – a interrogação
Mais que isso
São respostas cheias de razão

Quero do vazio – o tempo eternizado
Menos que isso
É relógio atrasado

Quero do vazio – o nada
Mais que isso
É realidade inventada

Quero do vazio – só vazio
Menos que isso
Tudo fica cinza, tão frio.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Feito árvore

Dora Brisa

"Os corações cortam lenha, e, depois,
se preparam pra outro inverno.
Mas o verão que os unira, ainda vive e transpira ali..."
(As Aparências Enganam - Tunai/Sérgio Natureza)

Viajante, que passa apressado,
Permita-me refletir flores na tua retina...
Nesta primavera, olha para o lado,
E me enxergarás árvore a florir tua sina...

No verão, quando chuva não houver,
Encharca minhas raízes, com teu lacrimoso pranto
De tristeza, de alegria, de fé...
E, à minha sombra, solta teu canto...

No outono, quando folhas eu não mais tiver,
Busca, através dos meus galhos secos, enfim,
Árvore que sou, em forma de mulher,
O céu - infinito - que carrego em mim...

No inverno, não me deixa ao relento...
Diante de ti, balanço meus galhos - abraço...
Quedo-me, e, em pedaços, me arrebento,
Para aquecer o teu passo...

Quando caminhares sozinho,
Volta teu olhar ao meu galho mais alto...
Tens em mim, teu ninho,
Proteção no sobressalto...

Se te cansares da caminhada,
E, faminto, buscares abrigo,
Cá estou, à beira da estrada,
Acenando bendito fruto: conta comigo...

Quando teu último passo for dado,
E nada mais restar desta vida,
Permita-me escorar teu corpo cansado,
E à tua alma fazer sombra - guarida...

Voz - Elisa:

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Revira-volta

Dora Brisa

Retiremos desse mundo
Os poetas
Os loucos
Os sonhadores
(Que não somos poucos)
Não são necessários
Soar de trombetas
Urros de comando
Marcha de soldados
Tilintar de fuzis
Nada disso
Retiremos desse mundo
Os sonhadores
Os poetas
Os loucos
Com apenas um cântico:
O canto matinal
De um pássaro selvagem
Retiremos desse mundo
Os pássaros
Todos os pássaros
Que eles vão cantar
Como loucos
Poetas e sonhadores
Como nunca
Na Terra do Sempre
Retiremo-nos todos
Deixemos nesse mundo
Apenas os usurpadores
Falsos poetas
Limitados sonhadores
Nada loucos – só dementes
Deixemos esse mundo
A quem por direito pertencem
As guerras
O ódio
A vingança
As armas
Os jogos dissimulados
Os podres poderes
Que cantou o poeta
O poder econômico
O poder da destruição
O poder que faz calar
Obedecer matar
Deixemos esse mundo
Onde o que mais brilha
É o ouro
O que vence
É a força bruta
Quem ganha
É quem mais perde dignidade
Vamos todos
Loucos, poetas
E sonhadores
A hora é agora:
Forcemos as grades
Arrebentemos as algemas
Vomitemos a podridão
Marchemos o cântico
Dos pássaros:
Hino da Libertação
Não olhemos para trás
Sonhadores
Loucos e poetas
Acompanhemos aqueles
Que seguem
Sem saber para onde
Com consciência do mundo
Que não lhes pertencia
E ficou para trás
Nas mãos dos usurpadores
Que pintam a estrada
De sangue e ouro
Queimando em fogueiras
Nossos guardados
Sonhos por nós acalentados
Estratégias tratados
Deixemos esse mundo
Loucos poetas sonhadores
Mãos vazias desarmados
Sem dó nem dores.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Tantos cantos

Dora Brisa

Pelos cantos
Eu me perco
Eu me acho

Pelos cantos
Eu me defendo
Eu me escracho

Pelos cantos
Eu lembro
Eu esqueço

Pelos cantos
Eu ouço
Eu ensurdeço

Pelos cantos
Eu choro
Eu sorrio

Pelos cantos
Eu imploro
Eu renuncio

Pelos cantos
Eu me escondo
Eu me exponho

Pelos cantos
Eu me descabelo
Eu me recomponho

Pelos cantos
Eu me desespero
Eu me extasio

Pelos cantos
Eu encontro
Eu extravio

Pelos cantos
Eu vago
Eu divago

Pelos cantos
Eu rabisco
Eu apago

Pelos cantos
Eu aquieto
Eu corro

Pelos cantos
Eu sobrevivo
Eu morro

Pelos cantos
Eu me encanto
Eu me desencanto

Pelos cantos
Eu sou tantos
Tantos cantos...

Voz - Rosany Costa:

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Ensaio

Dora Brisa

Num certo dia (definitivo), resolvi morrer. Assim mesmo: MOR-RER. Eu tinha de mudar minha vida, radicalmente. “Ninguém me ama, ninguém me quer”. “Sofro só”. “Ninguém me entende”. “Saio da vida para entrar na historia”. “Adeus, mundo cruel”.
(Justificativas eu tinha de montão, como qualquer ser humano. Quem nunca pensou em morrer, que jogue a carteira bem longe.)
Pois bem. A decisão já estava tomada. Mas eu precisava agir: Morrer – como? Por me ocupar tanto em viver, não sabia de que jeito morrer. Tantas opções, e eu ali vivendo, ainda vivendo.
Na época, eu morava numa cidadezinha do interior. Poluição zero. Num desses (cada vez mais raros) lugares onde ainda se podia sentir cheiro de estrume, e até ouvir canto de passaros. Aí estava a razão de eu continuar vivendo. Era isso. Como não havia imaginado antes?
Em pouco tempo, providenciei a mudança, e fui morar em Cubatão, mais próximo que pude daquelas fabricas gigantescas (que contribuem para o progresso do País) que disparam, até em domingos e feriados, nuvens de fumaça cada vez mais densa. Era pouco. Passei a fumar cigarros contrabandeados do Paraguai. Depois de um tempo, procurei um medico. Diagnostico taxativo: “Seus pulmões parecem de um bebê saudável. Repita os exames, daqui a duzentos anos”. Não morri, nem de susto.
Revoltado, desisti de Cubatão, e busquei a estrada, sempre manchete nos noticiarios, por causa do elevado indice de mortes por acidente. Por impeto, decidi jogar-me na frente do primeiro caminhão que aparecesse. E não demorou surgir uma carreta imponente. Corri para o meio do asfalto (agora morro). O caminhão foi freado bruscamente. Desesperada, desceu a motorista – uma caminhoneira com mais de cinquenta anos e os olhos arregalados. Para resumir a historia: Só consegui convencê-la não me adotar, depois de prometer à ela que seria mais atento no transito. Não morri, nem de vergonha.
Mais acabrunhado que revoltado, voltei para casa, e esvaziei meia duzia de garrafas de teor alcoolico. Deitado, olhei para o teto, e foi neste momento que veio a inspiração (é agora, ou nunca). Como não tinha pensado? O caminho da minha morte estava, o tempo todo, sobre a minha cabeça. Meio tonto, levantei, e fui buscar a mesa alta. Lentamente, subi, equilibrei, e forcei, com as duas mãos, uma emenda logo rompida entre as madeiras. Desci vitorioso (é nessa que eu vou). Olhei ao redor, e peguei o lençol da cama, enrolei-o e subi novamente. Não foi difícil encontrar um barrote para amarrar a corda improvisada. Calmamente, prendi a outra ponta do lençol retorcido ao meu pescoço de galo. Fechei os olhos, com nausea alcoolica, e empurrei a mesa com força. Eu só não sabia o quanto estava puído o tecido do meu velho lençol, que virou andrajo no ato, me arremessando ao chão. Dormi logo depois. Lembro, no outro dia, eu acordar pensando que, de tão bebado, nem conseguira chegar à cama, acabando por me enrolar (demais até) no lençol jogado ao chão. Não morri, nem de ressaca.
Não passou muito tempo, e lá estava eu, olhando pela janela do apartamento, indignado. Era primavera, e eu ignorava o perfume das flores, o zumbir das abelhas. Se todo mundo podia morrer – por que não eu? Nem precisei pensar tanto. Afinal, a janela já estava aberta. Só tive o trabalho de subir (tem que ser agora). Acho que nem fechei os olhos. Arremessei o corpo, como quem atira uma casca de banana. Só que o mais comum é a casca de banana cair bem no meio da calçada – armadilha aos incautos. Pasme: O meu corpo foi parar em cima da árvore mais velha e frondosa de toda a rua. O maximo que consegui foi causar morte prematura de muitas folhas e flores. Naquele dia, os vizinhos ficaram sabendo que era eu mesmo quem lavava as vidraças do apartamento no segundo andar. Não morri, nem com os poucos arranhões e os muitos conselhos preventivos.
A ideia da morte já estava me matando de desanimo. Tinha de dar um jeito naquilo. Passei a vida toda lendo e ouvindo que “dificil mesmo é viver”. Onde a morte fácil? Não, eu não desistiria assim. Foi num só momento, me olhando no reflexo do espelho, que surgiu a ideia. Fazendo caretas, dando tapas no meu proprio rosto, disse: rato, você é mesmo um rato – não um homem. Era isso – um rato. E como se mata um rato? Corri à loja, comprei o raticida mais eficaz (letal) e o mais caro também (a minha morte valia mais). Nenhuma preparação, nenhum ritual, nenhuma carta ou bilhete. Tomei todo o pó misturado à agua. Dormi (morri?). Acordei com uma dor de barriga insuportavel. Horas depois, quando – finalmente – consegui levantar da privada, fiquei sabendo pelo porteiro do predio que a policia estava à procura de uma gangue de falsificadores de medicamentos e similares. Não morri, nem de indignação.
Para comprovar minha teimosia em busca da morte, lembro aquela noite (unica) que eu andava cabisbaixo pela rua escura. De repente, dois garotos (um armado com 38, vale relatar) gritaram que era um assalto. Pegaram minha carteira, meu relogio, e advertiram que, se eu ficasse calado, não me matariam. O que foi que eu fiz, obviamente? Comecei a falar, gritar. Eles correram de desespero, perdendo meu relogio, minha carteira e até o revolver pelo caminho. Revolver? Esqueci a carteira, o relogio. Finalmente, morreria. Apontei a arma à minha cabeça de bagre (fechei os olhos?), acionei o gatilho e. O revolver deve ter sido roubado num museu, pois o unico estampido que ouvi foi o gatilho, corroido pela ferrugem, quebrando com a força do meu indicador. Não morri, nem depois de ter chorado – ali mesmo, na rua –, até amanhecer.
Passei a viver mais atento, com um objetivo só: a minha morte. Onde andaria a minha morte, no meio de tanta vida? A troco de nada, como coco de passarinho na cabeça da gente, chegou a grande revelação. Sempre ouvia falar das guerras nos morros, balas perdidas e achadas, e mortes, muitas mortes (com sorte, haveria mais uma). Mas não segui o impeto de correr a qualquer morro, não. Pesquisei muito, até descobrir os dois mais perigosos do momento. No primeiro, os traficantes, numa trégua a perder de vista, festejavam o casamento do líder. No outro morro, policiais improvisaram um picadeiro – todos pintados, fazendo palhaçadas. Era Dia de Cosme e Damião, e as crianças recebiam balas de açúcar. Não morri, nem de tanto ouvir cantoria desafinada e piadas sem graça – tudo no mesmo dia.
Chega. Cansei. Hoje, depois de muito tempo vivido, meneando os meus (cada vez mais ralos) cabelos grisalhos, sei que morro a cada instante. Agora um pouco. E mais um pouco. Por onde piso, não levo relogio, mas (me previno) sempre desvio das cascas de banana no caminho. E ainda descobri como é bom acordar com o canto dos passaros, e sentir o aroma de excremento do gado que pasta ao redor da minha casa, longe das fabricas, dos morros, da morte talvez. Uma dorzinha no meu peito... Será o fim, Serafim?...

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Busca e perdição

Dora Brisa

Quando, dos teus olhos amedrontados,
Escapuliram duas lágrimas,
Desesperei.
Enquanto um beijo meu as recolhia,
Outras tantas lágrimas
Vieram juntar-se aos meus lábios.
E o meu beijo,
Que nascera doce,
Acabou por salgar-se
(afogar-se)
No mar do teu pranto,
Que era também meu.
Até hoje,
Tuas lágrimas esperam
Por meu beijo,
Que chora a ausência
Dos teus olhos,
Sem sequer um adeus.

Voz - Rita de Cassia:

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Hiato

Dora Brisa

Vidro quebrado
Olho de vidro
Sonho acabado
Olhar perdido

Relógio parado
Gesto contido
Tempo estagnado
Instante recolhido

Lâmpada estilhaçada
Palavra interrompida
Escuridão desarmada
Luz perseguida

Hiato silencioso
Recolhido
Marginal
Quase vencido

O que mais desespera
É que não há espera
A vida não espera
A morte também não

O hiato desespera
Quem não sabe esperar
Nem sabe o que espera.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Poema em linha torta

Dora Brisa
(À persona de Fernando Pessoa)

Imagina você,
Moço,
Que eu, analfabeta
De pai e mãe
(com muito respeito),
Já sonhei em fazer versos,
Versos bonitos,
Enfileirados,
Bem traçados
e trançados.
Já sonhei em fazer versos,
Moço,
Em rodas de ciranda,
De capoeira,
De maracatu,
De candomblé.
Já sonhei em fazer versos,
Moço,
No Cristo Redentor,
Na Praça do Ipiranga,
Na Estátua do Laçador,
Na Mangueira – minha escola de samba.

Tanto sonhei em fazer versos,
Moço,
Que um dia o poema apareceu,
Assim, por acaso,
Meio andando de lado,
Cabisbaixo,
Parecia embriagado.
Em passo trôpego,
Deixou o seu recado:
Sou o poema de pé quebrado,
Torto,
Desmesurado.

Poema abjeto,
Escrachado,
Objeto
Despudorado.

Nos meus versos,
O poeta não despeja lágrima –
Deixa sempre a última gota
De cachaça,
Ou o vômito que engasga.

Poema deixado em
Parede de banheiro.
Cheio de palavrões,
Irônico, verdadeiro.

Sou o poema que rasteja
Nas mesas de bar.
Nasce num porre de cerveja,
Morre antes do dia clarear.

Poema amassado,
Esquecido,
No lixo jogado.

Poema que não fala
Da doce amada.
Nem o mais barato perfume exala,
Enquanto rola na escada.

Poema de uma perna só,
Que se apóia pelos muros,
Maltrapilho de dar dó,
Cochilando pelos becos escuros.

Tua opinião?...
Que me importa!
Não preciso de razão,
Sou poema em linha torta.

Voz - Helena Antoun:

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Vertigem

Dora Brisa

Minha concepção escorreu
Numa batalha sanguinolenta.
Meu corpo frágil surgiu
Imerso em sangue morno,
O mesmo vermelho que me
Desenhou a primeira máscara.
Depois, um pedaço de carne,
Num só charco de sangue,
Aos prantos, aos gritos.
Parto jorrado pelo mesmo sangue.
Será por isso que ainda
Carrego a marca sanguinolenta?
É esse líquido vermelho
Que chamam 'vida' – hoje sei.
Dentro de mim, tudo sangra.
Aqui fora também.
Meu corpo denuncia marcas
Dilaceradas pela 'vida'.
Os pulsos afrouxam intactos.
Ainda falam de lágrimas de sangue,
Quando a alma (também) sangra.
Fujo dos que falam,
Eu que me afogo no escarlate.
Também dentro de mim,
A 'vida' concebe:
Líquida, vermelha, borbulhante.
E o sangue (mais uma vez)
Marca o tempo, que chega
Trazendo a repetida 'vida' que se esvai.
Segue o existir avermelhado,
Assinalado para morrer,
Com sangue (ou não) a jorrar.
Não há compaixão, nem dor.
Tudo o que existe é nada.
Mas (ainda) restam as manchas,
Nódoas de um sangue que já não
Brilha, nem se multiplica mais.
Sangue coagulado, morto,
Seco de tudo o que um dia pareceu ser.
Talvez, num breve e impetuoso gesto,
Se algum vermelho persistir,
Alguém ainda toque a nódoa,
Com asco ou piedade.
Que importa?
O sangue já não é mais sangue.
O existir deixa de existir simplesmente.
Mas, se nem sequer uma mancha ficar,
Não há mais sangue para coagular.