Não suportava mais. Seria naquele dia, ou naquela noite, de qualquer jeito. Ainda não sabia como, mas bastava saber que se livraria - finalmente - do que há tanto tempo pesava-lhe o coração.
Aos poucos, concatenava as idéias, planejando um crime perfeito. Seria crime passional, é verdade, mas sem um erro sequer. Precisava pensar em todos os detalhes, para não deixar qualquer vestígio. Nada mais tinha importância, e todo seu pensamento estava voltado para o "grande plano" - logo ele, por décadas incapaz de matar uma mosca, ou barata.
O tempo tinha-lhe causado rugas e cansaço extremo, principalmente por carregar aquele enorme peso, sabendo - desde sempre - que não tinha qualquer obrigação de continuar daquele jeito. Por isso, depois de semanas insones, resolveu finalmente pôr fim à razão de sua apatia e tristeza. Na primeira vez em que pensou - "só matando, para acabar com minha agonia" -, sentiu-se um verdadeiro assassino: poderoso, irredutível. Logo depois, veio-lhe à mente: "será que conseguirei viver sem este peso na minha vida?" Mas a vontade de livrar-se era maior que qualquer outro sentimento.
Calmamente, foi planejando como cometeria seu - primeiro e único - crime. "Precisa ser perfeito, para eu ter certeza que matei mesmo" - pensava ele em voz alta, como a ordenar a si próprio. Há tanto tempo estava acostumado a obedecer, que tinha até esquecido como se dirige a própria vida. Mas agora faltava pouco para ele matar aquela que lhe tirara a vida, a alegria, a possibilidade de ser feliz.
Na verdade, ele reconhecia estar habituado com aquela convivência dolorida. Ela estava sempre a machucar-lhe, removendo cicatrizes de feridas que ele já podia ter esquecido. Mas também era ela que lembrava-lhe bons e inesquecíveis momentos da vida, quando outras companhias preenchiam o tempo dele - presenças com fisionomias, vozes, olhares, cheiros, abraços e beijos. "Basta de pesar prós e contras: um crime perfeito, apenas isso"- repetia, às vezes entusiasmando-se com a própria voz, cada vez mais autoritária e segura.
Depois de tanto planejar, repensar, decidiu: seria naquela noite escura. Afinal, em noites escuras, ela dominava-o completamente. Seria como uma vingança, após tantas noites escuras que ela o fazia chorar, até amanhecer. "Um crime perfeito, perfeito"- repetia ele.
Voltaria para casa, no final da tarde, como todos os dias. E lá estaria ela, na sala de estar, a esperá-lo pacientemente. "Mas hoje ela não me fará chorar, nem nunca mais" - repetia ele, enquanto secava as poucas lágrimas que saíam intimidadas por suas próprias palavras.
Aproxima-se da casa, mais lento do que de costume. "Ela nem perceberá nada"- diz para si mesmo, quase num cochicho. Abre a porta, e eis aquela que é a razão de tantas amarguras. Como sempre, ela senta no sofá maior, aguardando-o em seu colo.
Determinado, olhar fixo, ele vai em direção à ela sem titubear. Crime perfeito. Assassinou - finalmente - a saudade!...