Dora Brisa
Esse é o meu tempo, tempo de
voltar
À velha estação de trem,
Em abandono, como eu.
É tempo de olhar a vida que
passa,
Já que os trens, há muito,
Não passam mais em comboio.
Não há mais trilhos.
Por isso, minha vida
descarrilada.
Sento no único banco vazio que
restou,
Igual minha alma.
E o que faço é simplesmente
respirar:
Inspiro, expiro,
Inspiro, expiro.
E o que sei, nesse gesto meu
impensado,
É que a minha vida não expira.
Ainda não.
Por isso, agora respiro com
ironia.
Encho e esvazio os pulmões, que
Um dia cessarão carcomidos,
junto com o resto
Do meu corpo, que será
presenteado
Aos vermes, ou fará parte, uma
ínfima parte,
Dessa poluição de cidade
grande. E assim
Não voltarei mais à velha
estação,
Nem meu corpo ocupará espaço
No universo humano.
Simplesmente por que meu tempo
Terá expirado, junto com essa
vida
Que agora respira o ar poluído
Das fábricas,
Dos motores,
Dos incineradores.
Tudo misturado, como a minha
própria vida,
Que pulsa com o tempo sem
porquê.
Meu tempo de vida está sendo
Cronometrado, sem eu saber.
E, sem eu saber também,
Meu tempo de morte será
marcado,
Pois alguém, um dia qualquer,
Lembrará desse espectro humano.
Sem relógio, deixo-me ficar só
com o tempo,
Para quebrar as algemas
propositadamente.
Hoje, neste velho banco de
estação,
Que o tempo não me encontre,
Pois estou sem tempo para ver
O tempo passar, o tempo escoar.
Não, não me venha o tempo
Da sentença, o tempo que só
marca
O que não faço, o que não
vivo, o tempo perdido.
Liberto, respiro. Não há
movimento
Nas ruas, nas calçadas, nas
pessoas.
Ora, não venham me dizer
Que dia é hoje, que horas são.
Não. Não quero saber de mais
nada,
Nem do tempo futuro, tampouco do
tempo passado,
Menos ainda do tempo que não é
presente algum.
Levem para longe dos meus
sentidos,
O badalar dos sinos da Catedral,
que anuncia
Mais um quarto de hora passado
no tempo.
Quanto tempo dura uma saudade?
E uma despedida? E a partida de
Quem se foi, sem se despedir?...
Meu coração acompanha agora
O ritmo descompassado do meu
pensar,
Invadido por lembranças
marcadas
Pelo tempo - este mesmo tempo
Que ora se esvai no meu olhar
perdido -,
Como se ainda houvesse tempo,
Tempo para viver, e depois,
Só depois de a vida tornar-se
enfadonha,
Aí sim, tempo de morrer,
Ou não morrer.
Um homem maltrapilho pára
diante de mim.
Pede um trocado para continuar
sobrevivendo.
Aturdido, remexo os bolsos do
velho casaco.
Nem sei se trago algum dinheiro
comigo.
Decido impetuosamente tirar o
casaco,
E oferecê-lo ao olhar
estupefato.
Preciso dizer alguma coisa,
qualquer coisa.
Apenas um murmúrio sai da minha
alma:
- Pode levar o casaco,
Porque você e eu morreremos.
Provavelmente, você conheça
mais gente,
A quem este surrado paletó
ainda possa servir.
Digo isso, tirando os sapatos:
- Esses também podem ajudar,
Na caminhada que resta...
Com o casaco no braço, o homem
ainda pega o par
De sapatos rotos, e corre.
Perde um dos sapatos no caminho.
Nem olha para trás.
Fugiu de mim, como acha que
Foge da morte.
Nem pude dizer a ele que também
eu sinto medo,
Medo de perder a vida, sem aviso
prévio.
Sobrevivi até hoje assim:
Sob o crivo do tempo,
silencioso, este mesmo
Tempo que passa na velha
estação.
Envelheci. Já não posso mais
correr, fugir.
Por isso, permaneço sentado
Nesse banco empedernido
Pelo sempre tempo que torna
opaca
Qualquer visão humana.
Tanto eu quanto aquele homem que
escafedeu-se,
Já não podemos mais crer
Em vida eterna, céu, harpas e
querubins.
Todos nós, seres humanos,
Até mesmo aqueles que professam
uma fé,
Sabemos que podem haver outras
vidas.
Mas cada vida é única,
Como também são únicos os
laços.
Quando alguém diz que não teme
a morte,
Está falando por todos nós:
Eu minto,
Tu mentes,
Ele mente,
Nós mentimos,
Vós mentis,
Eles mentem.
(Duas varejeiras me perseguem.
Chegaram cedo para o banquete.
Não importa. Parecem ter
todo o tempo do mundo. Mas
também elas morrerão. Pois que
esperem o meu tempo, que
marca sentido contrário dos
relógios.)
De onde surgiu este cão?
Parece velho, cansado.
Lentamente, vem se chegando ao
banco.
Deita em silêncio, baixa o
olhar sem brilho.
Reparo nas feridas dele,
Pelos com pus ressequido.
E eu aqui sentado, sem uma chaga
sequer,
Nem mesmo um calo purulento.
Talvez, também por isso, sinto
medo,
Medo de perder a vida que nunca
tive.
Não trago no corpo, as chagas
da crucificação
Daquele que (dizem) morreu
Por nós, os pecadores.
Eu, ordinário que sou, não
saberia
Render-me à morte, com
beatitude.
Não, não eu, que represento
O homus sapiens do terceiro
milênio,
Com toda a sua tecnologia, toda
a sua ciência,
Todo o seu horror à morte, cada
vez maior.
Viver é um susto; morrer é uma
fatalidade.
O cão, de olhos fechados,
focinho no chão,
Não sabe disso, ignora que vai
morrer.
Nem sabe que vive, por que não
pensa.
Eu penso,
Tu pensas,
Ele pensa,
Nós pensamos,
Vós pensais,
Eles pensam.
Fecho também os olhos, por um
momento.
Mas ainda penso.
Sinto uma vontade louca de
Encostar meu nariz no chão, e
Não mais precisar fugir do meu
pensar,
Do meu medo genuíno, que
Há décadas me atormenta,
farejador:
Morte!
Morte!
Morte!
Como viver, morrendo a todo
instante?
Como não pensar na vida, que
Poderia ter sido vida ganha, ou
perdida?
O cão não escuta minhas
divagações amedrontadas
Pelo fim predestinado à vida
humana.
A cada nascimento (na maioria),
Júbilo em derredor.
O choro do bebê pode ser
traduzido:
- Vou morrer. Nasci para morrer.
Esse vagido permanece o resto da
vida,
Até que a morte chega, e
Faz tudo calar. Definitivamente.
A vida é eterna? Mas
Eu morro.
Tu morres,
Ele morre,
Nós morremos,
Vós morreis,
Eles morrem.
(Primeiro, de medo.)
Todos, indubitavelmente.
Morre aquele que crê,
Morre aquele que não crê.
Todos – 'farinha do mesmo
saco' -,
Matéria orgânica perecível,
mortal.
Sempre a morte. A morte sempre
Nos aguardando à espreita,
Num navio, num avião,
Até numa estação de trem,
esquecida
Pela vida que passa:
Vida célere, morte lenta.
Um dia a mais, um dia a menos.
O cão não pensa.
Invejavelmente, o cão dorme o
Sono dos justos purulentos.
Se o tempo é o melhor remédio,
Quero sorver até a última gota
Da minha parte da cicuta
Reservada a nós, miseráveis,
Temerosos, solitários, mortais
seres humanos.
Do outro lado da rua, que um dia
foi trilho,
Passa agora uma madame, que
Passeia com seu cachorro com
pedigree.
Ela acelera o passo, após nos
observar,
A mim e ao cão deitado.
A madame desvia o olhar com
asco,
Visível desconforto. Segue,
Ajeitando-se pelo caminho
invisível dos
Trilhos, acompanhada pelo
cachorro,
Que fareja aguçadamente o
trajeto.
Cachorro de madame não tem
feridas,
Só mordomias invejáveis.
Também ele não sabe que vive,
Não pensa sobre a morte,
Idêntico à madame, que deve
Buscar sempre mais banalidades
Que burlem quaisquer indícios
De um breve pensar.
Mas também ela, ser humano, vai
morrer.
Ainda que esconda o
enfraquecimento físico, com
Cirurgias plásticas
irreveláveis, a morte a espera,
Sem pressa, e também ao seu
cachorro.
Porque o tempo só é limitado
Às criaturas limitadas.
Eu feneço,
Tu feneces,
Ele fenece,
Nós fenecemos,
Vós feneceis,
Eles fenecem.
Toda vida é subjugada à morte
implacável,
Algoz sedento em chamar o
próximo da lista
Infindável, à guilhotina.
Neste morticínio, estamos nós,
seres (ainda) vivos,
No aguardo forçado da nossa
vez.
Todos, meninos solitários,
Tremendo de medo, sob um único
Olhar rígido, mortal: sentença
irrevogável.
Para o medo do escuro, existe a
luz;
Para cuidar das tantas fobias do
homem,
Existem os tratamentos
terapêuticos.
Antídoto à morte? Talvez
revolta.
Talvez rendição, numa única
lágrima de quem
Sempre soube que um dia seria
extinto
Do convívio humano, e
arremessado ao desconhecido.
Foram-se os tempos
Das brincadeiras de bicho-papão,
Debaixo das macieiras.
É chegado o tempo de não haver
mais tempo:
Tempo de medo.
Tempo de silêncio.
Tempo de solidão.
Tempo de quedar a cabeça.
Tempo de não ter razão.
Quanto a mim, humano
descartável,
Igual à humanidade inteira,
neste mundaréu de medos,
Que resultam num medo só
(perder a vida),
Não há mais tempo para
Ter um filho, plantar uma
árvore,
Escrever um livro...
Que importa?
Se houvesse mais tempo, com
certeza,
Eu nem imaginaria fazer essas
coisas todas,
Nem coisa alguma. Morrerei mesmo
assim,
Morrerei igual morreram ou
morrerão
Aqueles que escreveram árvores,
Plantaram filhos, tiveram
livros...
Presságio fatídico.
Por certo, deixarei alguém, um
só alguém
Que hoje me ama, ou me odeia,
Já não interessa mais.
Alguém que também vai morrer,
Semelhante ao cão que (ainda)
adormece
Ao pé desse velho banco
(tão duro, quanto a morte),
Que não tem vida para perder,
Nem tempo a ganhar.
A morte é onipresente -
onipotente.
A vida é limitada -
atemorizante.
Entre a vida e a morte,
Tateia a humanidade frágil,
Assustada, indefesa.
Todo mundo sabe que, aonde for,
O que fizer, acabará num só
lugar:
Morte.
Haverá sempre o fim da linha,
como para o trem.
Erros e acertos oscilam num
determinado tempo.
Depois, morte cruel. Não
importa
Se for numa clínica moderna e
equipada,
Ou num barraco de lama, onde
falta até
Um toco de vela. A vida é
extinta num
Tempo qualquer: seja diante
Da indignação, ou da
subserviência.
Ganhamos tempo; perdemos vida.
Perdemos tempo; perdemos vida.
No final de tudo - morte -,
A eterna morte de uma vida
passageira.
Depois, ainda dizem:
- Foi tão cedo.
Não interessa se viveu sete ou
setenta anos.
Foi cedo, sim, por que a morte é
perversa,
Arranca pela raiz o mais frágil
broto,
Até a árvore frondosa,
Sem direito à contestação.
Assim é a morte (aceitam).
Sou irmão dos irmãos que não
suportam
O peso da morte nos ombros da
vida.
Alguns bebem, outros cheiram ou
fumam:
Suicídio lento (quem tem
pressa?).
Morreremos, de qualquer jeito.
A vida de uma borboleta não
dura mais que
Duas semanas. Por isso, ela voa,
voa...
A grande massa humana trabalha
para não morrer
De frio, de fome, mas continua
morrendo
De medo da morte.
Mesmo sabendo disso,
Eu insisto,
Tu insistes,
Ele insiste,
Nós insistimos,
Vós insistis,
Eles insistem.
Assim é a vida (aceitam).
O que vivemos foi vivido.
O resto é morte.
O tempo em que estou sentado no
banco
Dessa velha estação, o tempo é
passado.
E tudo o que eu poderia ter
feito neste
Tempo que passou é morte.
Vivo agora a minha morte futura,
Sem consciência dela.
Tateio um outro tempo, fora de
qualquer tempo,
Sentado apenas sem pensar no que
já fiz,
Deixei de fazer, ou o que faria
amanhã.
Neste momento, a minha morte
respira.
Nem isso quero pensar.
Prefiro olhar para o chão, onde
o cão dorme.
Nada sinto. Nem sono.
Estou aquém ou além
(que importância tem?)
Do tempo, que chego crer que eu
não
Reagiria, nem por instinto, caso
minha
Respiração fosse espaçando,
lentamente,
Até nada mais.
Não quero saber se sou 'um grão
de areia', ou
'Uma gota de oceano' no
universo.
O que sei é que nem sei quem
sou.
E aquele mendigo levou há pouco
Minha carteira de identidade,
junto com o casaco.
Já não tenho mais sequer nome.
Sou ninguém.
E respiro agora um ar mais leve,
Um tempo tão suave, que eu
nunca tive na vida.
Será a morte?... Não, não
pode ser,
Porque a morte (dizem) machuca,
faz doer fundo.
Nada me dói, nem o que não
vivi.
Se eu pudesse,
Se tu pudesses,
Se ele pudesse,
Se nós pudéssemos,
Se vós pudésseis,
Se eles pudessem,
Escolheriam (escolheríamos,
todos)
Que ninguém mais morreria.
Quem sabe, a vida fosse
diferente,
A humanidade fosse mais humana,
Menos abandonada.
Quem sabe, não haveria mais a
palavra
Solidão, nos dicionários das
casas, das ruas...
Quem nunca, por um instante só,
desejou morrer?
Não é preciso perder (mais)
este tempo,
Porque a morte chega, chega sim
-
Traiçoeira, desumana.
Em todo velório, a mesma coisa,
o tempo todo:
Lágrimas, sentidas lágrimas.
Eu choro,
Tu choras,
Ele chora,
Nós choramos,
Vós chorais,
Eles choram.
Mas não é mais só por causa
do
Falecido (já está morto).
Cada qual chora a sua própria
morte
Particular, singular, imposta.
Quando as lágrimas esgotam,
Começamos nos observar, um a
um,
E nos reconhecemos no olhar
apavorado
Do outro, que treme de medo da
morte,
Que fatalmente está a caminho.
(Quem será o próximo
'eleito'?)
O que nos resta, então, é
baixarmos a cabeça,
Emudecermos, sermos tão humanos
Como foram nossos pais, avós,
bisavós,
E também os tataravós dos
nossos bisavós,
Como será a humanidade futura.
Neste meu caminho à morte,
tenho aprendido que
Cada criatura humana é um
universo
Limitado, único, por isso tão
só, vulnerável.
Na minha solidão, sou toda a
humanidade,
Que busca sofregamente não
pensar,
Não sentir tudo isso que provém
do peso de
Sermos (todos) mortais, filhos
do começo, do meio e do fim.
A vida não tem sentido, nem
nexo, nem seta, mas
Eu vivo,
Tu vives,
Ele vive,
Nós vivemos,
Vós viveis,
Eles vivem.
Todos tentamos decifrar, reter o
sentido da vida.
Se a morte tem ou faz algum
sentido,
Os mortos (só eles) devem
saber,
Ou, talvez, a procura insana
continua.
Apenas isso. Se assim for,
Menos sentido ainda tem tudo
isso
(vida-tempo-morte).
Afinal, quem é este 'Ser'
proclamado
Entre os religiosos como justo e
misericordioso?
Se assim é, por que uns nascem
abastados,
E outros morrem famintos?
Por que uns vivem matando,
E outros morrem assassinados?
Onde a justiça - na vida? na
morte?
E ainda dizem que nasci para
pagar os meus pecados.
Logo eu, pecador confesso,
especialista
Na genuína arte de pecar.
Peco contra mim mesmo,
E não pago contas. Peco neste
tempo todo
Que espreita meus passos
trôpegos,
Meus pecados imundos.
Tempo-urubu:
Paciente, hábil, à espera da
minha morte,
Quando também ele, o meu tempo,
Será aniquilado, imerso no
tempo eterno da morte.
No tempo da minha morte,
Não me venham prometer
purgatório, céu, inferno.
Com certeza, eu morreria antes
da hora,
Anteciparia a minha viagem,
depois de vomitar
Toda náusea que me dá a
palavra eternidade.
De nada adianta, porque
Eu acabo,
Tu acabas,
Ele acaba,
Nós acabamos,
Vós acabais,
Eles acabam.
Morte. Ponto final.
Se depois disso houver mais
enredo,
Que venham todas as vidas que
tiverem de vir,
Todas, todas as vidas e todas as
mortes também.
Cada vida única, cada morte
sofrida na solidão
Do existir sempre humano a se
repetir.
Ou que não venha mais vida
alguma,
Seguida de morte. Que seja o
fim.
O fim de cada um. O fim de
todos. O fim de tudo.
O nada. O retorno do caos, de
onde podem (ou não)
Surgir outra luz, outra vida.
Que seja, ou que não seja, pois
Eu não existirei
Tu não existirás
Ele não existirá
Nós não existiremos
Vós não existireis
Eles não existirão.
E tudo será nada (recomeço?).
Definitivamente, não sei ser
humano,
Ou outra coisa qualquer.
Não compreendo a criatura
(também eu) que sonha sempre com
Mudanças diversas de vida, mas
não admite a morte,
Que não passa de (mais) uma
mudança.
Por que toda mudança pressupõe
morte – fim de
Alguma coisa -, para
aparecimento de outra.
Por isso, quem perde, ganha; e
sempre ganha, quem perde.
Vida é mudança constante,
incluindo a própria morte.
Minha incompreensão reside
nisso:
Por que temo, ser humano que
sou, a morte, que
Muda tanto a vida?...
Indiscreta ou sutil, mudança é
sempre mudança.
Isso é inquestionável – como
a morte.
E não há resposta que faça
calar a alma
Humana - inquieta e trêmula.
Na minha finitude, vejo o
crepúsculo morrendo
No infinito. Isso me dói. Morre
o dia.
Morre o homem. Morre a luz de
tudo o que é mundo humano.
De súbito, uma pedra trespassa
meu olhar.
Caio de novo na realidade, e o
que vejo é
Um menino de rua provocando, de
longe,
O cão, que continua deitado,
inerte.
Sob meu olhar inquiridor, o
menino se afasta,
Arremessando mais pedras, agora
na rua sem trilhos.
Olho para o cão. O corpo está
hirto. Não há mais
Vida nele. O trem da morte levou
a vida
Que restava no cão moribundo,
que, certamente,
Não tem um só alguém que
chore a sua falta.
Choro eu, cão desconhecido, eu
que sou
Tão desconhecido para mim
mesmo.
Choro a tua morte, o fim da tua
vida sem sentido.
Choro a minha morte também, que
virá sorrateira,
E deixará em abandono meu corpo
cansado, indefeso.
Retiro a camisa, cubro-lhe as
chagas, em silêncio.
Eis tua mortalha, cão que não
deve ter sido protegido
Na vida. Também eu, ser humano
que (ainda) sou,
Precisei aprender sozinho me
proteger, cobrindo
As marcas infames que trago na
alma.
Continua dormindo, cão sem
nome.
Eu, sem nome também, velo teu
sono, o sono
De quem viveu sem saber que
vivia, e morre sem despertar.
Só eu sei que você está
morto, cão, porque a
Escuridão da noite cobre agora
a tua morte e a minha vida.
O que respiro é o ar da morte,
que ainda ronda.
Sinto, pressinto, farejo, animal
que sou,
Tão mortal quanto o cão
rendido.
Mas não me rendo, ainda não,
Não eu, animal teimoso, negando
o próprio fim.
Quero respirar também o ar do
cão sem vida,
Para provar (a mim? ao cão? à
morte?) que ainda vivo.
Não interessa por que, para
que, até quando, até onde.
Vivo este instante – basta -,
enquanto a morte permeia
Solta, poderosa. Não, não vou
me refugiar
Debaixo do banco, nem fingir
estar morto.
Respiro profundamente. Estou
vivo. Vivo e sozinho.
Viajei tanto na vida, mas meus
pés fincam
Nessa estação, onde há muito
tempo equilibrei
Meu corpo infantil sobre esses
trilhos hoje invisíveis.
Tanto é verdade, que agora
mesmo poderia eu percorrer o
Trajeto cego dessa linha morta
de trem.
Respondo ao meu menino eufórico:
estou cansado.
Não viajei de trem até aqui,
com o olhar extasiado em paisagens.
A minha vida humana é isso:
Tão-somente esse momento em que
suspiro
Diante da morte, que se apodera
de um cão.
'Um dia, todos voltaremos à
casa do Pai?'
Não eu, que nunca tive pai, nem
casa, sequer um lugar.
Acho mesmo que, morrendo, vou
acabar
No meio do caminho - entre
qualquer coisa e o nada.
E isso será tudo.
Que fiz eu da morte que vivi,
até chegar aqui?
Alguns poucos diriam:
- Construíste casas (não
lares).
É bem verdade: exímio
construtor, visível profissional.
Debaixo da minha máscara,
destruí sonhos,
Cortei caminhos, matei destinos.
Também eu poderia ter sido o
chefe das construções.
De que serviria? Estaria
morrendo, como tudo, como todos,
Como eu, que sempre fui sem
nunca ter sido.
Nem sequer construí uma casa
para mim,
Por desconhecer o mais ignóbil
projeto de um lar.
Com certeza, aquela que seria
minha esposa
Vive - casada - com aquele que
poderia ser um
Desconhecido, ou o prefeito da
cidade, ou até
O mendigo que há pouco passou
por aqui.
Vou morrer sem conhecê-la,
tampouco ela saberá de mim,
E terá filhos, muitos filhos,
os filhos que seriam nossos.
Não importa! Ela morrerá
viúva, ou ele morrerá viúvo,
Até os filhos morrerão, e eu
também morrerei.
E morreremos todos, com ou sem
lar.
Nunca achei graça ou desgraça
na vida.
Por que haverei de culpar ou
desculpar alguém na morte?
Não e não, nem a mim mesmo,
que nunca soube existir.
O vento sopra a noite e a vida.
Por isso, sinto frio. Encolho-me
envergonhado junto ao
Corpo do cão, que ainda morre a
própria morte.
Partilho contigo tua mortalha,
cão cheio de morte,
E já nem lembro que é minha a
camisa que cobre teu pêlo sujo.
Quisera eu ter manchado esta, ou
outra camisa qualquer.
Não. Jamais manchei de sangue
vivo minha vida morta.
Acomodo minhas costas junto aos
pelos caninos
Cobertos pela mortalha, que era
camisa de alguém
Que parecia ser vivo, por que
usava camisa.
Fecho os olhos a contragosto, e
revejo o sonho,
Aquele mesmo sonho que me
persegue - sonho africano -,
Sonho parecido com insônia
letárgica, que
Dizima, mutila, mata restos de
sonhos.
Também eu estava lá, no chão
africano,
Estirado à morte, mas não
morria.
Também era noite, mais escura
que a pele dos mortos africanos.
Só eu não morria, por que não
tinha vida.
Arregalo os olhos, o sonho se
dissipa espavorido,
E a noite fria já não eriça
mais os pelos do pobre cão.
Nunca bebi (vida) na vida, e me
sinto embriagado,
Farto dessa mesma vida que
jamais senti arder na garganta.
Façam suas apostas, senhores.
Aqui jazem um cão e um homem
Sem dono-destino, nem desatino –
entregues, rendidos.
Eis aqui um cão que teve vida e
morreu,
E um homem que não morreu, por
que nem vida teve.
Quem dá mais, senhores?...
Quem pagar pelo cão, leva a
mortalha para tapar-lhe as feridas.
Quem arrematar o homem, não
paga,
Por que ser humano nada tem,
além de um tempo que acaba,
Antes mesmo de a vida
principiar...
(Ao longe, o apito da locomotiva
– está na minha hora?
Já não enxergo mais o guichê
das passagens,
Para eu escolher o destino que
nunca tive.
Nem trouxe bagagem. E agora?...)
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