quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A moça e as flores

(à flor seca esquecida entre as folhas de um livro qualquer)

Quando criança, ficou maravilhada com o jardim de casa - até chegou a pensar que todas as casas tivessem jardins que floresciam o ano todo. Foi crescendo, e encontrando outras pessoas, feito ela, também maravilhadas com jardins. Em pouco tempo, especializou-se em conhecer cada espécie de flor, e todas as variações produzidas pelos enxertos.
Não demorou tanto, conheceu a perda de entes queridos, que morriam, sem qualquer aviso prévio. Ela não podia fazer qualquer coisa, a não ser resignar-se, escondida no jardim de casa. As flores a protegiam, e logo percebeu que o jardim seria sempre o melhor esconderijo, diante da dor. Quando não havia possibilidade de fuga, ia sempre aos velórios e enterros, com os braços cheios de flores - do mesmo jardim onde se refugiava.
Feito qualquer ser humano, também conheceu momentos alegres, quando saía, festiva, pelo jardim, colhendo as flores mais lindas, para presenteá-las às pessoas em festa. Não havia batizado, casamento, aniversário, formatura, ou qualquer outro evento familiar, que ela não aparecesse com os braços carregados de flores - do mesmo jardim para onde voltava com os olhos brilhando.
Descansando, em outros jardins, que já não eram os que conheceu quando menina, a moça sabia que as flores e os perfumes seriam sempre a companhia mais doce. Volta e meia, lá estava, no meio do jardim que ela mesma cultivava, colhendo braçadas de flores - as mais miúdas, ou gigantes em botão. Sempre alguém chorava, ou sorria, no caminho dela, que não abandonava a generosidade de distribuir flores.
Em alguns momentos da vida, ela e as flores foram motivo de piadas - em outras ocasiões, alento, aconchego, única companhia. Mas ela não quis pensar sobre isso, enquanto multiplicava as mudas das flores, cada vez mais coloridas e vivas - harmonia entre madressilvas, gerânios, acácias, cravinas, amor perfeito, e tantas outras que só ela conhecia a origem.
Numa tarde comum, feito tantas outras que teve a vida inteira, a moça sentiu uma pedra de gelo sufocar-lhe o coração. O que conseguiu, ainda, pensar foi que, se não estivesse no jardim, estaria em lugar nenhum. Dois dias depois, sentiram a ausência dela, durante o cortejo fúnebre da avó dela. Alguém lembrou de correr ao jardim, e encontrou-a abraçada com uma rosa branca, viva - o mesmo botão que a fizera maravilhada, uma vez mais.

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