domingo, 6 de novembro de 2016

Quem não sou

Dora Brisa

Não sou o tempo
Do meu tempo,
Nem ocupo o espaço
Do meu espaço.
Sou o impossível
De mim mesmo,
Vivendo o possível
De alguém que não sou eu,
Nem sabe quem é também.
Um dia, minha história
Será contada em roda
De loucos, que também
Não saberão se foram,
Ou o que não serão.
Mas tudo isso não fará
A menor diferença,
Pois tudo o que fui
Será nada do que não fui,
E o que não fui
Será tudo que era para eu ter sido.
Desacreditei de tudo
Do que acreditei ser nada,
E hoje não há nada em mim
Que me faça acreditar ser.
Tudo e nada já não me fazem
Sentido, há tanto tempo,
Que já não sei se vivo
O meu tempo real,
Ou transito por um tempo,
Passado ou futuro,
Que não me pertence,
Nem me pertenceria,
Se eu fosse eu.
Mas nem sei quem sou,
Para exigir de mim
Algum tempo que seja meu.
A verdade maior é que
Não existe verdade,
Nem mesmo a ínfima verdade
Sinalizando uma verdade maior.
Não sou, mas nem sei quem eu seria,
Porque quem quer eu fosse
Não pensaria em ser,
Por que já era,
Não seria mais eu, nem menos.
Sei que ocupo um espaço
Que não é meu,
Porque sempre estou
Onde não estou,
E tudo me leva ao nada.
Ainda que houvesse no mundo,
Um só espaço meu,
Não seria meu espaço,
Porque eu estaria ocupando
Um outro espaço, que,
Por não ser meu,
Não seria eu a ocupá-lo.
Por isso, tudo na vida me pesa,
Pesa tanto quanto uma pena,
A pena que não sinto de mim.
Porque não sou eu nas coisas todas,
E por isso a vida não me pesa,
Por que também a vida não me pertence,
Por que nem eu sei pertencer a mim mesmo.
Por que haveria a vida de pertencer-me?
Já não sei de mim,
Nunca soube do meu tempo,
Se é que tive algum tempo meu,
Ou espaço que me pertencesse.
Esse não saber, não ser, me torna
Tão vasto, que passo existir
Em tudo, em todos, em nada.
Não havendo verdade, tempo, espaço,
Eu mesmo também não existo
No tempo que não é meu,
Nem no espaço que ocupo,
Sem verdade alguma para
Proteger-me de mim mesmo,
Eu - que nem sei quem sou,
Porque não sou quem sei ser.
Eu – perdido do meu tempo,
Do espaço que nunca foi meu.
Eu – perdido de mim mesmo,
Sem saber se sou eu,
Ou um outro eu, achado por acaso,
Numa sarjeta qualquer,
Enquanto lavavam a calçada
Do prédio destruído pelo fogo
Ateado por um louco que se dizia deus,
Criador de seres perdidos.
Eu – há tanto tempo perdido,
Num tempo que não é meu,
Ocupando um espaço de outro ser,
Que nem sabe que é,
Por nunca ter sido.
Eu – que só sei cambalear
Perdido de mim mesmo,
Sem saber quem sou eu,
Nem quem eu poderia ter sido,
Se eu soubesse de mim,
E não fosse quem sou,
Porque quem sou não sou eu,
Nem quem eu imaginaria ter sido,
Se um dia quisesse ser eu...

sábado, 20 de agosto de 2016

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Exílio

Dora Brisa

Eu, exilada de mim,
Enxergo o outro
(finalmente!),
Sem psicopatia,
Sem julgamento,
Sem interpretação,
Sem classificação.
Empatia.

Eu, exilada de mim,
Sou ausência,
Na presença do outro,
Que ocupa o vazio
Onde eu estava,
Tão cheia de mim,
Enquanto o outro
Transborda no meu exílio.

Eu, exilada de mim,
Já não me sei mais,
Nem me procuro,
Por que não me há
Reflexo, nem desejo
De buscar-me
Onde não estou,
Nem sou.

Eu, exilada de mim,
Enxergo a claridade
Do outro, na
Minha pura escuridão
Da noite sem holofotes,
Do dia sem sol,
Das esquinas vazias,
Dos becos esquecidos.

Eu, exilada de mim,
Não me socorro,
Nem me debato,
Por que o meu olhar
Já não está dentro,
E busca o olhar do outro,
Que me fascina, e me leva
Para mais longe (tão perto) de mim.

domingo, 5 de junho de 2016

Almoço em família

Dora Brisa

Já passa das 14 horas, mas ninguém parece preocupado. Afinal, é domingo, almoço em família. Na extremidade da mesa quilométrica, a matriarca: pouco menos de um metro e meio, rugas na fisionomia hoje mais irônica, cabelos finos e brancos, os quais ela alisa mecanicamente, em silêncio, sem olhar a mesa farta.
Nem ousa levantar o olhar, pois sabe que só conseguiria enxergar os mais próximos. Por isso, repousa os olhos, quase fechados, voltados para o crochê da toalha, que já nem lembra mais em que época ela mesma confeccionou.
São cinco filhos. Isso ela ainda sabe. Mas já perdeu as contas dos tantos netos e bisnetos. No trajeto à mesa, ouviu chorinho de bebês em coro – serão tataranetos?... Nem pensa em abrir a boca e perguntar, até por que fala tão baixo, que ela mesma pouco tem se escutado.
Em meio ao ruído dos talheres, nas travessas e nos pratos, ela escuta frases desconexas, paralelas, tudo confuso à audição agora aguçada.
        - Soube que a filha do Martin casou pela oitava vez?
        - Não coma com a mão, menino!
        - Esta semana, a cotação do dólar surpreendeu mesmo!
        - Tive de comprar o vestido daquele estilista nordestino...
        - Não quero comer cenoura! Odeio cenoura!
        - A tintura do teu cabelo combinou mesmo foi com a bolsa!
        - Desculpem o arroto involuntário!
        - Eu quero brincar com aquele colherão ali, mamãe!
        - A velha está gagá, nem ouve mais nada...
        - Estou pensando em ir a Paris, no final do ano.
        - Ela fez lipo, eu soube no salão...
        - Maria, depois você me dá a receita dessa galinhada?...
        - Já emagreci dois quilos, agora faltam só catorze...
        - Demiti o diretor financeiro. Eu mesmo vou cuidar do serviço.
        - Sentada, eu não alcanço a mesa. Deixa eu ajoelhar, papai...
        - Olho pra mamãe, e me dá uma pena...
        - Ainda não sei se vou tentar vestibular este ano...
        - Você acha mesmo que o verde limão do meu vestido caiu bem?...
        - Para de mamar a embalagem de vinagre, garoto!
        - Ano que vem, vou ampliar as ações na Vale...
        - Encontrei um site culinário de dar água na boca!...
        - Não sei viver sem salto alto. Acho que já nasci de salto.
        - Não quero comer! Deixa eu ir na cozinha provar a sobremesa, mamãe?
        - Será que a faxineira tem vindo toda semana? Essa casa é tão grande, e mamãe parece uma autista...
        - Essa torta de espinafre está uma delícia!
        - Vá lá no escritório, para conversarmos mais a respeito...
        - Deixa eu comer as azeitonas, papai, ninguém quer...
        - O que a gente não faz, para manter as aparências?
        - Você viu que a Justiça não está perdoando ninguém mesmo, né?
        - Só falta um pouquinho de botox nos lábios, e me tornarei uma princesa...
        - Dia dez, vou marcar a próxima missa...
        - Na sua idade, eu já tinha esses três maiores aqui...
        - Encomendei o carro, mas vai demorar um mês pra chegar...
        - Oba! A sobremesa!
        - Achei melhor demiti-la, mas continuamos nos vendo semanalmente... que secretária!...
        - Você ainda acredita em Papai Noel? Pelo amor de Deus!
        - Maria, traz um pano para limpar a toalha?
        - Eu nem quis conversa com o gerente, fechei a conta imediatamente.
        - A nossa bisa não gosta de sorvete de chocolate?...
        - Você viu a foto dele, naquela revista? Que homem!
        - Não tomo mais nem refrigerante light...
        - Quem será que deu à ela aquela estatueta tão triste, desolada?...
        - Depois do almoço, vamos ao shopping com a mamãe...
        - Na mais recente, eu mandei gravar o nome do meu gato...
        - Acho que, antes de sair, vou à cozinha preparar uma marmita para levar para o jantar...
        - Imagina que ela me disse que, se eu não assinasse a carteira, ela sairia... e saiu...
        - É enjoo... Desculpe...
        - Tenho estudado demais pra esse concurso...
        - Mamãe, o Júnior roubou o morango do meu prato!...
        - Alguém pode me passar a calda de frutas?...
...
Aos poucos, vão retirando-se da mesa, enquanto enfileiram-se em torno da matriarca, beijando-lhe a cabeça, a testa, as faces, as mãos. Ela tudo vê, tudo sente, tudo silencia. Quando sai o último grupo, lentamente, ela toca uma mão na outra, sentindo-as grudarem. Depois, alisa o rosto, e também sente os resquícios da sobremesa há pouco servida.
Na outra extremidade da mesa, permanece Adelaide, a filha do meio, que mora sozinha, longe dali. Olha a filha com compaixão, a mesma que sente agora por si mesma. Suavemente, Adelaide levanta, vai ao encontro da mãe, no costumeiro mutismo tranquilizador, e a abraça com carinho.
O diálogo que estabelecem é o mesmo, há décadas:
        - Mamãe, melhor a senhora repousar...
        - Todos já foram?...
        - Sim...
        - Estão todos bem?...
        - Cada qual com os problemas e as escolhas que enxerga, mamãe...
        - Melhor assim... têm o que fazer na vida...
        - É sim, mamãe...
...
Ambas seguem à sala de estar, onde Adelaide, um domingo por mês, acomoda a mãe em sua velha cadeira de balanço. A matriarca da grande família senta, e suspira profundamente, para depois dizer:
        - Só preciso dormir um pouco, minha filha... talvez, esquecer...(vira o rosto para o lado)
Adelaide sai da sala, dirige-se à porta principal, e, vendo-se fora, vai procurar o homem responsável pela detonação da velha casa:
    - Por favor, meus fantasmas acabaram a última refeição agora... Aguarde só alguns minutos, para que a última adormeça...

domingo, 3 de abril de 2016

Manual de instruções

Dora Brisa

Tenha cuidado com
a toga, a farda,
a bala perdida,
a massa revoltada,
a frustração enraivecida.

Tenha cuidado com
especialista,
analfabeto político,
tendenciosa revista,
golpe onírico.

Tenha cuidado com
qualquer conclusão,
perigoso conceito,
arma na mão,
medalha no peito.

Tenha cuidado com
medíocre unanimidade,
ataque à negritude,
supremacia da vontade,
idolatrada atitude.

Tenha cuidado com
homens de colarinho,
mulheres recatadas,
sociedade em desalinho,
religiões alucinadas.

Tenha cuidado com
panelas pelos ares,
gás de pimenta,
discussões nos bares,
média violenta.

Tenha cuidado com
ideal fantasia,
notícia urgente,
arroubos de simpatia,
psicopatia inteligente.

Tenha cuidado com
qualquer vazamento,
boato de rede social,
discurso sem argumento,
mandado judicial.

Tenha cuidado até com
grampo de cabelo,
conversa pra boi dormir,
publicidade com apelo,
imagens para deprimir.

Tenha cuidado com
o que pode ser vendido,
o que é comprado,
o bem caro amigo,
o inimigo barateado.

Tenha cuidado com
o bem que faz mal,
a fé que mata,
o discurso moral,
o esmalte na pata.

Tenha cuidado com
o martelo a bater,
a torcida a aplaudir,
a realidade a entristecer,
o tempo a esvair.

Tenha cuidado com
a verdade bem-vestida,
a mentira escancarada,
a legalização do aborto banida,
a infância abandonada.

Tenha cuidado com
o desaparecido,
o encontrado,
o apontado bandido,
o que morre silenciado.

Tenha cuidado com
insanidade do excesso,
eleição no altar,
notícia do congresso,
anúncio de pesar.

Tenha cuidado com
manual de instrução,
previsão do tempo,
bandeira na mão,
vida que segue o vento.

Tenha cuidado com
palavra dita, impensada,
olhares da interpretação,
morte banalizada,
certezas sem razão.

Tenha cuidado com
qualquer ser humano,
dedo em riste,
quem ordena carregar o piano,
quem segue a boiada triste.

Tenha cuidado com
hipocondria,
armamento,
rua sem alegria,
maioria sem alento.

Tenha cuidado, mais ainda, com
o silêncio, o grito,
a ignorância excitada,
a ordem, o mito,
a salvação anunciada.

Tenha cuidado.

sábado, 12 de março de 2016

Roteiro

Dora Brisa

A vida pulsa, entre
a melodia e o ruído
a nuvem e a freada
o novo e o puído
o silêncio e a toada
o vazio e o substituído
a poltrona e a espada
a interrogação e o concluído
a fome e a enxada
o ímpeto e o estampido
a aurora e a madrugada
o alpinismo e o falido
o queijo e a goiabada
o comprador e o vendido
a estiagem e a enxurrada
a descoberta e o perdido
a bruxa e a fada
o grito e o gemido
o aplauso e a vaiada
o conceito e o banido
a partida e a chegada
o egoísmo e o mendigo
o idealismo e a facada
o excesso e o comedido
a surdez e a pancada
o pecado e a libido
o abraço e a bofetada
a ordem e o pedido
o pranto e a risada
o bemol e o sustenido
o abismo e a estrada
o sonho e o sentido
a solidão e a boiada
a memória e o esquecido
o destino e a encruzilhada
o fascismo e o bandido
a educação e a palmada
o abandono e o acolhido
a chama e a geada
o medo e o destemido
o livro e a queimada
o confortável e o descabido
o desafio e a emboscada
a ingratidão e o agradecido
a cegueira e a cartada
a psicopatia e o ferido
a certeza e a derrocada
depois do vivido
e do não vivido
a vida acaba
e mais nada.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Pausas

Dora Brisa

Quando a madrugada faz,
finalmente,
adormecer o dia,
sonhos breves
deslizam do céu,
das estrelas cadentes,
dos edifícios,
das árvores,
dos telhados,
das igrejas,
das janelas,
das montanhas,
sonhos que pousam,
suavemente,
no mais fundo
da alma de
toda gente.

Mesmo antes de
o dia insinuar-se,
a lida começa,
em todos os cantos,
feitos de
entusiasmos e
desencantos,
no novelo
a desfiar e fiar
a história,
irremediavelmente,
sem remendos
e ensaios,
vestindo a vida
de toda gente,
com desejos e medos
em toscos balaios.

Quando a luz
se ausenta,
na imponência
da noite
que prenuncia,
o cansaço do dia
faz brilhar
outras luzes
de repouso,
de euforia,
e não há quem
não perceba
adormecer
alguma coisa
que se fez presente,
em mais um dia
acompanhado de
menos vida,
sob o jugo do
final
de algo que
só a manhã
anuncia.

Voz - Elisa:

domingo, 31 de janeiro de 2016

Noite suja

Dora Brisa

Um estampido só. Oco. Mudo. Escuro. Lentamente, ele passa a mão na testa que transpira. De olhos fechados, sente o suor grosso na ponta dos dedos. Por alguns segundos, o estampido ainda ecoa na cabeça dele, agora vazia.


– Vô, quero fazer cocô.
– Não se diz “cocô”.
– Mas minha mãe...
– Ela sabe pouco, coitada.
– Como se diz, então? Cagar?
- Não. Se diz “fazer uma obra”, porque é uma obra – diferente de todas as outras...
– Entendi. Mas continuo com vontade...
– Faz tua obra atrás daquela árvore, e depois seguimos para o rio...

Os olhos dele permanecem cerrados. Mas não sente dor.


– Fessora, posso ir ao banheiro?
- Vocês não conseguem nem ser originais. Basta ficarem
ajoelhados no milho, que já pensam em fugir para o banheiro...
– Mas...
– Nada de mas, menino... Fica quieto aí,
senão dobro o castigo...
– É que tô apertado – ainda fala, enquanto
a urina escorre no chão do canto da sala.

Silêncio absoluto. Mecanicamente, a mão dele ainda busca a testa. O suor espesso escorre agora pelas laterais da fisionomia impassível.


– Agora que sua mãe morreu, me diga: O que
você quer fazer?
– Pai, quero que o senhor me interne no Seminário.
– Você – seminarista? Meu único filho – padre? Por que
isso agora, menino?
– Porque o padre disse na missa que minha mãe foi pro céu... Eu
quero ficar perto dela... Padre fala até com Deus...

A cabeça dele lateja um pouco. A mão descansa rendida sobre o peito.


– As suas coisas estão aqui. Vá para o enterro
de seu pai... Se quiser, volte depois, para ser ordenado...
– Não voltarei, mas agradeço-lhe assim mesmo,
senhor diretor. (A porta pesada de madeira maciça
fecha-se para nunca mais se abrir.)

Por um momento, sente amargor na boca cheia de saliva. Não quer cuspir. Engole resignadamente.


– Nesta pensão, só se entrega chave de quarto, com
pagamento adiantado.
– Posso pagar dois meses adiantado. É o tempo que preciso pra
arranjar um emprego...
– Estou precisando de garçom no restaurante. O salário
é pequeno, mas pode ganhar gorjeta...
– Aceito. Claro. Até porque quero continuar estudando...

Involuntariamente, os olhos dele lacrimejam. Com lenta ternura, suspende a mão, que recolhe as pesadas lágrimas.


– Confessa aqui para o teu melhor amigo: Você nunca
comeu uma mulher, por que é viado? Pode contar. Não
discrimino...
– Em vez de viado, sou é maluco
mesmo... Você pode não acreditar, mas quero
fazer amor, não só sexo... Você entende isso?...
– Isso é loucura... Mas sorte minha, porque
você deixa mais mulher pra mim...

Quando reergue a mão ao rosto, sente, de olhos ainda fechados, o suor a persistir, cada vez mais grosso, pesado. A cabeça leve não ecoa mais estampido algum.


– Por que você vai embora pra Capital? Pensei que
nós dois...
- Vou estudar... Você sabe que quero ser ator... Por isso,
preciso ir... Mas volto pra buscar você,
Carolina, e aí nos casamos... Você me espera?...
– Espero, por que te amo... Mas dizem que a Capital está
cheia de mulheres bonitas, com silicone...
– Não trairei você, minha querida... Escreverei sempre... Adeus...
(Um último beijo amargo, na porta do ônibus.)

O suor na testa faz deslizarem imagens distorcidas. Na cabeça dele, o olhar moribundo da mãe, as discretas lágrimas do pai. Se alguma força ainda lhe restasse, só diria: Sinto frio.


“Minha doce Carolina,
Movido pela saudade que me dilacera, escrevo a segunda carta
para você, neste dia tedioso. Espero que seu coração se aqueça com as palavras que a minha alma aqui registra.
Como já lhe escrevi anteriormente, continuo a trabalhar como
garçom, naquele restaurante movimentado, cheio de celebridades,
que às vezes me deixam polpudas gorjetas. O curso de teatro
continua, mas recusei a peça que me propuseram, por ainda me
achar incapacitado.
Tão logo tenha condições, volto para buscar você e os nossos sonhos, quando então nos casaremos. Me espere.
Sempre seu,
Alfredo”

Tocando de leve a testa, ele sente que o suor que ainda escorre engrossa cada vez mais. Desliza a mão novamente até o peito.


“Não me escreva mais. Estou de casamento marcado. Adeus.”
(Rasga o telegrama, o sonho, a alma.)

O gelo que agora sente na cabeça faz-lhe recordar o beijo – derradeiro – da mãe na testa dele, pouco antes de morrer. Tenta mover os lábios, que não obedecem mais.


- Vamos ensaiar texto de Plínio Marcos. Por que você não
vem com a gente?
- Preciso fazer alguma coisa com a minha vida,
antes que resolva me matar...
- Nem fale uma coisa dessas. Amanhã, neste horário,
vem para o ensaio. Plínio Marcos tem um papel pra você...
- Venho sim... Chega de tanto fugir do palco, que é a minha vida...

Um torpor faz o corpo inteiro dele estremecer. Uma ácida gosma escorre pelo canto da boca, enquanto o olhar permanece escuro – impassível.


- A cena precisa ser crua – um verdadeiro soco no
estômago. - grita o diretor – Marcação. Luzes. Repetindo!

A leve tontura faz com que ele pressinta agora o corpo flutuar. Sente a camisa empapando de grosso suor.


- Não, não e não. - esbraveja o diretor – Vocês não podem esquecer
dos olhos e do corpo, que fala mais que o texto.

Tonto, ainda tenta reagir. A mão repousa no peito, em completa desobediência. Dos olhos, pesadas lágrimas rendem-se ao espesso suor que faz brilhar o rosto lívido.


– É preciso colocar medo nos olhos. - ordena o diretor,
respirando fundo – Marcelo, segura mais firme esta arma. Alfredo,
olhos arregalados de pavor. Podem recomeçar a partir daí!...

O que  ele sente agora é o rosto encharcado de uma pasta que encobre os poros. Se ainda pudesse racionalizar alguma coisa, saberia que é sangue vivo a escorrer, misturando-se com suor frio.


– Alfredo, nosso Al Pacino brasileiro – brinca
o diretor -, depois do tiro, antes de cair, você
ainda fala através do olhar cravado
no Marcelo. Podem reiniciar a cena,
que até parece real...

De repente, um zunido ensurdecedor faz sacudir a cabeça dele. O corpo, estirado no asfalto, estremece, involuntariamente, com o frio que traz o estampido de volta, nesta noite suja de sangue. A rua permanece sombria, silenciosa. O estampido da bala perdida só ecoa ainda na cabeça dele, que nem chegou conhecer Al Pacino. Fim de cena.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Teu mar

Dora Brisa

Sou teu mar:
Silencioso, profundo,
Protegendo teu navegar
Dos perigos deste mundo...

Nas minhas profundezas,
Escondo teus segredos...
Entre minhas maiores riquezas,
Guardo o baú dos teus medos...

Sou teu mar,
Água morna com teu calor...
Chego em ondas para teu pranto molhar,
E, à noite, faço-me reflexo da lua - puro amor...

Estou sempre a te embalar...
Nas minhas águas calmas,
Chegas a sonhar
Com outros mundos, outras almas...

Sou teu mar...
Em noites de tempestade escura,
Te concentras a buscar
Aconchego, na direção segura...

Na minha vastidão,
Tua alma se desnuda:
És puro coração
Pulsando na melodia muda...

Sou teu mar...
A ti, presenteio todo meu natural:
Peixes, conchas, até estrelas a encantar
Tua vida previsível, com sabor de sal...

Infinito que pareço,
Diante da tua esperança infantil,
Silencioso, adormeço,
Inteiro, nas tuas mãos, teu servil...

Sou teu mar,
E assim sempre serei...
Tu - barco a me acompanhar...
Eu - tua bússola - seguirei...

Voz - Rosany Costa: