Dora Brisa
Num certo dia (definitivo), resolvi morrer. Assim mesmo: MOR-RER. Eu tinha de mudar minha vida, radicalmente. “Ninguém me ama, ninguém me quer”. “Sofro só”. “Ninguém me entende”. “Saio da vida para entrar na historia”. “Adeus, mundo cruel”.
(Justificativas eu tinha de montão, como qualquer ser humano. Quem nunca pensou em morrer, que jogue a carteira bem longe.)
Pois bem. A decisão já estava tomada. Mas eu precisava agir: Morrer – como? Por me ocupar tanto em viver, não sabia de que jeito morrer. Tantas opções, e eu ali vivendo, ainda vivendo.
Na época, eu morava numa cidadezinha do interior. Poluição zero. Num desses (cada vez mais raros) lugares onde ainda se podia sentir cheiro de estrume, e até ouvir canto de passaros. Aí estava a razão de eu continuar vivendo. Era isso. Como não havia imaginado antes?
Em pouco tempo, providenciei a mudança, e fui morar em Cubatão, mais próximo que pude daquelas fabricas gigantescas (que contribuem para o progresso do País) que disparam, até em domingos e feriados, nuvens de fumaça cada vez mais densa. Era pouco. Passei a fumar cigarros contrabandeados do Paraguai. Depois de um tempo, procurei um medico. Diagnostico taxativo: “Seus pulmões parecem de um bebê saudável. Repita os exames, daqui a duzentos anos”. Não morri, nem de susto.
Revoltado, desisti de Cubatão, e busquei a estrada, sempre manchete nos noticiarios, por causa do elevado indice de mortes por acidente. Por impeto, decidi jogar-me na frente do primeiro caminhão que aparecesse. E não demorou surgir uma carreta imponente. Corri para o meio do asfalto (agora morro). O caminhão foi freado bruscamente. Desesperada, desceu a motorista – uma caminhoneira com mais de cinquenta anos e os olhos arregalados. Para resumir a historia: Só consegui convencê-la não me adotar, depois de prometer à ela que seria mais atento no transito. Não morri, nem de vergonha.
Mais acabrunhado que revoltado, voltei para casa, e esvaziei meia duzia de garrafas de teor alcoolico. Deitado, olhei para o teto, e foi neste momento que veio a inspiração (é agora, ou nunca). Como não tinha pensado? O caminho da minha morte estava, o tempo todo, sobre a minha cabeça. Meio tonto, levantei, e fui buscar a mesa alta. Lentamente, subi, equilibrei, e forcei, com as duas mãos, uma emenda logo rompida entre as madeiras. Desci vitorioso (é nessa que eu vou). Olhei ao redor, e peguei o lençol da cama, enrolei-o e subi novamente. Não foi difícil encontrar um barrote para amarrar a corda improvisada. Calmamente, prendi a outra ponta do lençol retorcido ao meu pescoço de galo. Fechei os olhos, com nausea alcoolica, e empurrei a mesa com força. Eu só não sabia o quanto estava puído o tecido do meu velho lençol, que virou andrajo no ato, me arremessando ao chão. Dormi logo depois. Lembro, no outro dia, eu acordar pensando que, de tão bebado, nem conseguira chegar à cama, acabando por me enrolar (demais até) no lençol jogado ao chão. Não morri, nem de ressaca.
Não passou muito tempo, e lá estava eu, olhando pela janela do apartamento, indignado. Era primavera, e eu ignorava o perfume das flores, o zumbir das abelhas. Se todo mundo podia morrer – por que não eu? Nem precisei pensar tanto. Afinal, a janela já estava aberta. Só tive o trabalho de subir (tem que ser agora). Acho que nem fechei os olhos. Arremessei o corpo, como quem atira uma casca de banana. Só que o mais comum é a casca de banana cair bem no meio da calçada – armadilha aos incautos. Pasme: O meu corpo foi parar em cima da árvore mais velha e frondosa de toda a rua. O maximo que consegui foi causar morte prematura de muitas folhas e flores. Naquele dia, os vizinhos ficaram sabendo que era eu mesmo quem lavava as vidraças do apartamento no segundo andar. Não morri, nem com os poucos arranhões e os muitos conselhos preventivos.
A ideia da morte já estava me matando de desanimo. Tinha de dar um jeito naquilo. Passei a vida toda lendo e ouvindo que “dificil mesmo é viver”. Onde a morte fácil? Não, eu não desistiria assim. Foi num só momento, me olhando no reflexo do espelho, que surgiu a ideia. Fazendo caretas, dando tapas no meu proprio rosto, disse: rato, você é mesmo um rato – não um homem. Era isso – um rato. E como se mata um rato? Corri à loja, comprei o raticida mais eficaz (letal) e o mais caro também (a minha morte valia mais). Nenhuma preparação, nenhum ritual, nenhuma carta ou bilhete. Tomei todo o pó misturado à agua. Dormi (morri?). Acordei com uma dor de barriga insuportavel. Horas depois, quando – finalmente – consegui levantar da privada, fiquei sabendo pelo porteiro do predio que a policia estava à procura de uma gangue de falsificadores de medicamentos e similares. Não morri, nem de indignação.
Para comprovar minha teimosia em busca da morte, lembro aquela noite (unica) que eu andava cabisbaixo pela rua escura. De repente, dois garotos (um armado com 38, vale relatar) gritaram que era um assalto. Pegaram minha carteira, meu relogio, e advertiram que, se eu ficasse calado, não me matariam. O que foi que eu fiz, obviamente? Comecei a falar, gritar. Eles correram de desespero, perdendo meu relogio, minha carteira e até o revolver pelo caminho. Revolver? Esqueci a carteira, o relogio. Finalmente, morreria. Apontei a arma à minha cabeça de bagre (fechei os olhos?), acionei o gatilho e. O revolver deve ter sido roubado num museu, pois o unico estampido que ouvi foi o gatilho, corroido pela ferrugem, quebrando com a força do meu indicador. Não morri, nem depois de ter chorado – ali mesmo, na rua –, até amanhecer.
Passei a viver mais atento, com um objetivo só: a minha morte. Onde andaria a minha morte, no meio de tanta vida? A troco de nada, como coco de passarinho na cabeça da gente, chegou a grande revelação. Sempre ouvia falar das guerras nos morros, balas perdidas e achadas, e mortes, muitas mortes (com sorte, haveria mais uma). Mas não segui o impeto de correr a qualquer morro, não. Pesquisei muito, até descobrir os dois mais perigosos do momento. No primeiro, os traficantes, numa trégua a perder de vista, festejavam o casamento do líder. No outro morro, policiais improvisaram um picadeiro – todos pintados, fazendo palhaçadas. Era Dia de Cosme e Damião, e as crianças recebiam balas de açúcar. Não morri, nem de tanto ouvir cantoria desafinada e piadas sem graça – tudo no mesmo dia.
Chega. Cansei. Hoje, depois de muito tempo vivido, meneando os meus (cada vez mais ralos) cabelos grisalhos, sei que morro a cada instante. Agora um pouco. E mais um pouco. Por onde piso, não levo relogio, mas (me previno) sempre desvio das cascas de banana no caminho. E ainda descobri como é bom acordar com o canto dos passaros, e sentir o aroma de excremento do gado que pasta ao redor da minha casa, longe das fabricas, dos morros, da morte talvez. Uma dorzinha no meu peito... Será o fim, Serafim?...
Num certo dia (definitivo), resolvi morrer. Assim mesmo: MOR-RER. Eu tinha de mudar minha vida, radicalmente. “Ninguém me ama, ninguém me quer”. “Sofro só”. “Ninguém me entende”. “Saio da vida para entrar na historia”. “Adeus, mundo cruel”.
(Justificativas eu tinha de montão, como qualquer ser humano. Quem nunca pensou em morrer, que jogue a carteira bem longe.)
Pois bem. A decisão já estava tomada. Mas eu precisava agir: Morrer – como? Por me ocupar tanto em viver, não sabia de que jeito morrer. Tantas opções, e eu ali vivendo, ainda vivendo.
Na época, eu morava numa cidadezinha do interior. Poluição zero. Num desses (cada vez mais raros) lugares onde ainda se podia sentir cheiro de estrume, e até ouvir canto de passaros. Aí estava a razão de eu continuar vivendo. Era isso. Como não havia imaginado antes?
Em pouco tempo, providenciei a mudança, e fui morar em Cubatão, mais próximo que pude daquelas fabricas gigantescas (que contribuem para o progresso do País) que disparam, até em domingos e feriados, nuvens de fumaça cada vez mais densa. Era pouco. Passei a fumar cigarros contrabandeados do Paraguai. Depois de um tempo, procurei um medico. Diagnostico taxativo: “Seus pulmões parecem de um bebê saudável. Repita os exames, daqui a duzentos anos”. Não morri, nem de susto.
Revoltado, desisti de Cubatão, e busquei a estrada, sempre manchete nos noticiarios, por causa do elevado indice de mortes por acidente. Por impeto, decidi jogar-me na frente do primeiro caminhão que aparecesse. E não demorou surgir uma carreta imponente. Corri para o meio do asfalto (agora morro). O caminhão foi freado bruscamente. Desesperada, desceu a motorista – uma caminhoneira com mais de cinquenta anos e os olhos arregalados. Para resumir a historia: Só consegui convencê-la não me adotar, depois de prometer à ela que seria mais atento no transito. Não morri, nem de vergonha.
Mais acabrunhado que revoltado, voltei para casa, e esvaziei meia duzia de garrafas de teor alcoolico. Deitado, olhei para o teto, e foi neste momento que veio a inspiração (é agora, ou nunca). Como não tinha pensado? O caminho da minha morte estava, o tempo todo, sobre a minha cabeça. Meio tonto, levantei, e fui buscar a mesa alta. Lentamente, subi, equilibrei, e forcei, com as duas mãos, uma emenda logo rompida entre as madeiras. Desci vitorioso (é nessa que eu vou). Olhei ao redor, e peguei o lençol da cama, enrolei-o e subi novamente. Não foi difícil encontrar um barrote para amarrar a corda improvisada. Calmamente, prendi a outra ponta do lençol retorcido ao meu pescoço de galo. Fechei os olhos, com nausea alcoolica, e empurrei a mesa com força. Eu só não sabia o quanto estava puído o tecido do meu velho lençol, que virou andrajo no ato, me arremessando ao chão. Dormi logo depois. Lembro, no outro dia, eu acordar pensando que, de tão bebado, nem conseguira chegar à cama, acabando por me enrolar (demais até) no lençol jogado ao chão. Não morri, nem de ressaca.
Não passou muito tempo, e lá estava eu, olhando pela janela do apartamento, indignado. Era primavera, e eu ignorava o perfume das flores, o zumbir das abelhas. Se todo mundo podia morrer – por que não eu? Nem precisei pensar tanto. Afinal, a janela já estava aberta. Só tive o trabalho de subir (tem que ser agora). Acho que nem fechei os olhos. Arremessei o corpo, como quem atira uma casca de banana. Só que o mais comum é a casca de banana cair bem no meio da calçada – armadilha aos incautos. Pasme: O meu corpo foi parar em cima da árvore mais velha e frondosa de toda a rua. O maximo que consegui foi causar morte prematura de muitas folhas e flores. Naquele dia, os vizinhos ficaram sabendo que era eu mesmo quem lavava as vidraças do apartamento no segundo andar. Não morri, nem com os poucos arranhões e os muitos conselhos preventivos.
A ideia da morte já estava me matando de desanimo. Tinha de dar um jeito naquilo. Passei a vida toda lendo e ouvindo que “dificil mesmo é viver”. Onde a morte fácil? Não, eu não desistiria assim. Foi num só momento, me olhando no reflexo do espelho, que surgiu a ideia. Fazendo caretas, dando tapas no meu proprio rosto, disse: rato, você é mesmo um rato – não um homem. Era isso – um rato. E como se mata um rato? Corri à loja, comprei o raticida mais eficaz (letal) e o mais caro também (a minha morte valia mais). Nenhuma preparação, nenhum ritual, nenhuma carta ou bilhete. Tomei todo o pó misturado à agua. Dormi (morri?). Acordei com uma dor de barriga insuportavel. Horas depois, quando – finalmente – consegui levantar da privada, fiquei sabendo pelo porteiro do predio que a policia estava à procura de uma gangue de falsificadores de medicamentos e similares. Não morri, nem de indignação.
Para comprovar minha teimosia em busca da morte, lembro aquela noite (unica) que eu andava cabisbaixo pela rua escura. De repente, dois garotos (um armado com 38, vale relatar) gritaram que era um assalto. Pegaram minha carteira, meu relogio, e advertiram que, se eu ficasse calado, não me matariam. O que foi que eu fiz, obviamente? Comecei a falar, gritar. Eles correram de desespero, perdendo meu relogio, minha carteira e até o revolver pelo caminho. Revolver? Esqueci a carteira, o relogio. Finalmente, morreria. Apontei a arma à minha cabeça de bagre (fechei os olhos?), acionei o gatilho e. O revolver deve ter sido roubado num museu, pois o unico estampido que ouvi foi o gatilho, corroido pela ferrugem, quebrando com a força do meu indicador. Não morri, nem depois de ter chorado – ali mesmo, na rua –, até amanhecer.
Passei a viver mais atento, com um objetivo só: a minha morte. Onde andaria a minha morte, no meio de tanta vida? A troco de nada, como coco de passarinho na cabeça da gente, chegou a grande revelação. Sempre ouvia falar das guerras nos morros, balas perdidas e achadas, e mortes, muitas mortes (com sorte, haveria mais uma). Mas não segui o impeto de correr a qualquer morro, não. Pesquisei muito, até descobrir os dois mais perigosos do momento. No primeiro, os traficantes, numa trégua a perder de vista, festejavam o casamento do líder. No outro morro, policiais improvisaram um picadeiro – todos pintados, fazendo palhaçadas. Era Dia de Cosme e Damião, e as crianças recebiam balas de açúcar. Não morri, nem de tanto ouvir cantoria desafinada e piadas sem graça – tudo no mesmo dia.
Chega. Cansei. Hoje, depois de muito tempo vivido, meneando os meus (cada vez mais ralos) cabelos grisalhos, sei que morro a cada instante. Agora um pouco. E mais um pouco. Por onde piso, não levo relogio, mas (me previno) sempre desvio das cascas de banana no caminho. E ainda descobri como é bom acordar com o canto dos passaros, e sentir o aroma de excremento do gado que pasta ao redor da minha casa, longe das fabricas, dos morros, da morte talvez. Uma dorzinha no meu peito... Será o fim, Serafim?...
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