quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Eu e minhas naturezas

Foto: Lara

Dora Brisa

I
Sou filha
De um amor louco
Da madrugada
Com o luar
Por isso o olhar
Sempre desperto
Distante do sol
Buscando nuvens
Nos holofotes das estrelas

II
A lua me bateu nos olhos
Alguém viu
No atrito
Meus olhos
Transbordaram estrelas
Ninguém viu
Nem meus olhos
Que se perderam
Na poça d’água
Que embalava a lua

III
Vivo sob a influência
Do tempo
Não esse tempo tosco
Cronometrado por relógios
Tempo que brinca com toda gente
No passar de cada hora
Seguindo lentamente
Quando já deveria ter
Ido embora

IV
O vento soprou
No meu rosto
Queria brincar
De brisa
Eu não podia
A casa estava cheia
Pessoas
Problemas
Todos os “pes”
O vento foi embora
Soprou longe
As nuvens
Que não pude ver

V
Da minha terra
Brotou a chuva
Que lavou o céu
E deixou brancas
As nuvens
Que caíram
Em outras terras
Secas
Que não eram minhas

VI
O mar banhou-me
A alma
Cheio de profundezas
Nunca mais
Perdi o gosto do sal
No doce sabor
Da minha alma
Que ainda arde
Em direção do mar

VII
Perco-me na mata nativa
Que não deixa rastros
Nem aponta caminhos
Mata menos escura
Menos fechada
Que a minha alma
Que brota em musgos
Os sonhos adormecidos
Pelo descaminho
E segue sem bússola
O silêncio da mata
Cheio de sombras

VIII
Eu sem sentido
Fiz as pazes
Com todos os sentidos
Que se rebelaram
Num repente
A visão foi tateando
A audição começou a cheirar
O tato passou a ter paladar
O olfato ouvia tudo calado
Enquanto o paladar a enxergar
De imediato
Meti os pés pelas mãos

domingo, 25 de dezembro de 2011

sábado, 24 de dezembro de 2011

Acalanto

Foto: Denise
Dora Brisa

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu fecho as cortinas, para que
o sol clareie cedo tudo só lá fora...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu leio estórias, para que
os teus medos vão embora...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu sopro o teu canto
no ar da tua realidade...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu despejo teu pranto
no baú da saudade...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu embalo teu sono
na rede da ternura...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu protejo teu sonho
da tempestade escura...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu guardo tudo o que é teu
na caixinha de corações...

Dorme, criança, dorme,
enquanto eu escondo debaixo
da cama, as tuas ilusões...

Dorme, criança, dorme...
Já é tarde...
Ainda tão cedo...
Os pássaros ensaiam alarde...
Também durmo - não percebo...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Por um fio

Dora Brisa

Alô?... Quer falar com quem?...
Nada de trote, por favor...
Sem essa de me chamar de ‘meu bem’!...
Afinal, quem é o senhor?...

Ricardo... Ricardo...
Desculpe por eu não lembrar...
Ex-namorado?...
Vai ser difícil adivinhar...

Ah, Ricardo!...
Resgatei na memória!...
Antigo namorado...
Faz tanto tempo essa história...

Pra você não faz tanto tempo assim?...
Oh, desculpe, por favor...
Claro que guardei em mim
Os nossos momentos de amor...

Vivíamos a volúpia da mocidade...
Como eu haveria de esquecer?...
Nossas juras, nossa saudade...
Nosso desejo de tudo viver...

Ricardo, como você amadureceu...
Até tua voz está mais grave...
Teu vocabulário também cresceu...
Um verdadeiro homem... é verdade...

Ah, não me diga isso...
Olha que eu até acredito...
Você fazia me sentir um lixo...
Eu sei... Você não gostava dos meus gritos...

Mas me conta, Ricardo:
O que você tem feito?...
Como queria, foi ser advogado?...
Nem sequer vestibular pra Direito?...

Nossa... Isso que é novidade...
Confessa: você está brincando?...
Não consigo te imaginar no centro da cidade,
Vendendo contrabando...

Eu até entendo... Confia em mim...
Está difícil ganhar a vida...
Eu?... Dou aulas de latim...
Qual era mesmo a nossa música preferida?...

Ricardo... Ah, se você soubesse...
Falando doce desse jeito,
O meu coração enlouquece,
Batendo descompassado no meu peito...

Você sempre soube me encabular...
O quê?... Nem lembro mais
O porquê de nos separar...
Não... Ninguém mais fez, ou faz...

Ah, Ricardo... Fala tudo...
Desabafa, meu amor...
Liberta esse tempo mudo...
Repete que me ama... Por favor...

Há quanto tempo eu te esperava...
O destino é sempre assim...
Quanto mais sozinha eu chorava,
Você – inteiro – se guardando pra mim...

Repete... Arrepia o meu ouvido...
Só você sabe fazer...
Todo este tempo foi castigo...
Ricardo, de amor vamos viver...

O quê?... Por que você está me chamando
De Cristina?... Seu brincalhão!...
Logo você, que vivia gritando:
- Lá vai Beatriz, meu coração...

Engano?... O que você está dizendo?...
Melhor, fica um pouco calado...
Ouve meu coração batendo:
Ricardo... Ricardo...

Você tem certeza do engano?...
Ricardo, pensa bem...
Não lembra mais daquele final de ano?...
Na barraca, só nós dois... Mais ninguém...

Desculpe... Entendi agora...
Não... Não me chamo Cristina...
Namorei Ricardo no tempo de escola...
Eu ainda sonhava... Era uma menina...

Quando sentir saudade da Cristina,
Ricardo, por favor, me ligue...
Faz eu recordar, nessa neblina,
O amor que nunca tive...

Voz - Elisa:

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Quem não sou

Dora Brisa

Não sou o tempo
Do meu tempo,
Nem ocupo o espaço
Do meu espaço.
Sou o impossível
De mim mesmo,
Vivendo o possível
De alguém que não sou eu,
Nem sabe quem é também.
Um dia, minha história
Será contada em roda
De loucos, que também
Não saberão se foram,
Ou o que não serão.
Mas tudo isso não fará
A menor diferença,
Pois tudo o que fui
Será nada do que não fui,
E o que não fui
Será tudo que era para eu ter sido.
Desacreditei de tudo
Do que acreditei ser nada,
E hoje não há nada em mim
Que me faça acreditar ser.
Tudo e nada já não me fazem
Sentido, há tanto tempo,
Que já não sei se vivo
O meu tempo real,
Ou transito por um tempo,
Passado ou futuro,
Que não me pertence,
Nem me pertenceria,
Se eu fosse eu.
Mas nem sei quem sou,
Para exigir de mim
Algum tempo que seja meu.
A verdade maior é que
Não existe verdade,
Nem mesmo a ínfima verdade
Sinalizando uma verdade maior.
Não sou, mas nem sei quem eu seria,
Porque quem quer eu fosse
Não pensaria em ser,
Por que já era,
Não seria mais eu, nem menos.
Sei que ocupo um espaço
Que não é meu,
Porque sempre estou
Onde não estou,
E tudo me leva ao nada.
Ainda que houvesse no mundo,
Um só espaço meu,
Não seria meu espaço,
Porque eu estaria ocupando
Um outro espaço, que,
Por não ser meu,
Não seria eu a ocupá-lo.
Por isso, tudo na vida me pesa,
Pesa tanto quanto uma pena,
A pena que não sinto de mim.
Porque não sou eu nas coisas todas,
E por isso a vida não me pesa,
Por que também a vida não me pertence,
Por que nem eu sei pertencer a mim mesmo.
Por que haveria a vida de pertencer-me?
Já não sei de mim,
Nunca soube do meu tempo,
Se é que tive algum tempo meu,
Ou espaço que me pertencesse.
Esse não saber, não ser, me torna
Tão vasto, que passo existir
Em tudo, em todos, em nada.
Não havendo verdade, tempo, espaço,
Eu mesmo também não existo
No tempo que não é meu,
Nem no espaço que ocupo,
Sem verdade alguma para
Proteger-me de mim mesmo,
Eu - que nem sei quem sou,
Porque não sou quem sei ser.
Eu – perdido do meu tempo,
Do espaço que nunca foi meu.
Eu – perdido de mim mesmo,
Sem saber se sou eu,
Ou um outro eu, achado por acaso,
Numa sarjeta qualquer,
Enquanto lavavam a calçada
Do prédio destruído pelo fogo
Ateado por um louco que se dizia deus,
Criador de seres perdidos.
Eu – há tanto tempo perdido,
Num tempo que não é meu,
Ocupando um espaço de outro ser,
Que nem sabe que é,
Por nunca ter sido.
Eu – que só sei cambalear
Perdido de mim mesmo,
Sem saber quem sou eu,
Nem quem eu poderia ter sido,
Se eu soubesse de mim,
E não fosse quem sou,
Porque quem sou não sou eu,
Nem quem eu imaginaria ter sido,
Se um dia quisesse ser eu...

domingo, 11 de dezembro de 2011

Procissão

Dora Brisa

Minha nega, acenda a lareira,
Que teu nego vai chegar.
Estou descendo a ladeira,
Tão só, cansado de caminhar.
Prepara a espreguiçadeira,
Porque tenho tanto pra te contar.

Imagino teu sorriso brejeiro,
Dizendo que não foi tanto tempo assim.
Minha nega, você não sabe do nevoeiro
Que há depois do Monte Sem-Fim.
Em cidade grande, tudo é ligeiro,
Abrindo feridas profundas, como essas em mim.

Você compreende, minha nega, a vontade
De ir ardia mais e mais no peito.
Era qualquer coisa de saudade,
Que não tive outro jeito.
Depois, ainda tinha a tal curiosidade
De tudo conhecer, saber direito.

Já te contei tantas vezes a mesma história:
Meu velho trabalhava lá, na cidade grande.
As imagens mais coloridas da minha memória
São do meu pai voltando, tocando o berrante.
Minha mãe largava a semeadura da chicória,
E corria, ladeira acima, comigo no peito arfante.

Meu velho falava horas, dias sem parar,
Contava que na cidade tudo era lindo,
As pessoas eram boas, só sabiam amar.
O tempo passava, e meu pai já estava indo
Novamente à cidade trabalhar.
Eu ficava com minha mãe, sonhando, sorrindo.


Até que um dia meu pai não mais voltou.
Minha mãe ficou no pé da ladeira,
Esperando, esperando, até que chorou.
Imaginei meu pai fazendo brincadeira,
Mas a realidade dura chegou,
Minha mãe não mais sorriu, nem acendeu a lareira.

Desde sempre, minha nega, você sabia,
Eu precisava conhecer onde meu pai trabalhava.
Fui lá, não acreditava no que via.
Hoje sei, em tudo o que o velho falava,
De real, só o nome da cidade existia.
Meu pai não nos queria tristes, e tudo fantasiava.

Lá longe, minha nega, onde chamam cidade,
Teu nego foi cuspido, pisoteado.
Lá em cima, minha nega, não existe bondade,
E o poder está com quem vive armado.
Lá, minha nega, alta sociedade
É sinônimo de valor vendido, trocado.

Vi muito cachorro de madame
Desfilar com empregados pela calçada,
Enquanto comia lixo o mendigo infame.
Vi cães e gatos com alimentação balanceada,
Trabalhadores sem segurança caindo de andaime,
Gente infeliz rebolando em roupa apertada.

Tinha gente com cara tão esticada,
Minha nega, se você visse,
Se desse uma só gargalhada,
Provavelmente a costura se abrisse.
Se a fantasia fosse rasgada,
Desconhecido seria o espectro que surgisse.

Nas praças, o lago está sempre cheio
De crianças a brincar,
Pombos circulam pelo meio,
Dividindo os restos de comida do lugar.
De repente, a polícia chega em tiroteio,
Espanta os pombos, e contra os meninos sai a atirar.

Minha nega, de onde eu desço,
É preso e torturado, o pobre que rouba um pão.
O pior de tudo, isso não esqueço,
É a idolatria aos que roubam mais de um milhão.
Se tudo naquela cidade tem um preço,
Dignidade está sempre em liquidação.

Teu nego retorna cansado,
Querendo nos teus braços tudo esquecer.
Minha nega, prepara aquele refogado
Que só você sabe fazer.
Teu nego passou frio, fome, volta mais magro,
Triste, desiludido, vivo só pra você.

Queria tanto te trazer alegria,
Histórias verdadeiras de um mundo bonito,
Mas o que trago no peito é a agonia
Que dói em desilusão, sem um grito.
Todo aquele tempo, tua alma eu via,
Só queria voltar, cada vez mais aflito.

Desço a ladeira finalmente,
E tudo aqui me parece tão mais claro,
Apesar da noite escura, vejo tudo calmamente,
Até nosso barraco, lugar tão raro.
E saber que estou voltando me faz tão contente,
Minha nega, mesmo exausto, não paro.

Você já deve estar dormindo,
E o teu sonho vai chegando.
Quando a porta eu estiver abrindo,
Tenho certeza, tua felicidade irá despertando.
Minha nega abrirá os braços sorrindo,
Enquanto minha alma em pedaços estará chorando.

Ficaremos um tempo abraçados, emudecidos,
Depois misturaremos dores, saudades, emoção.
Trocaremos olhares enternecidos,
Falaremos tanta coisa desconexa, sem razão.
Aos poucos, os olhos ficarão umedecidos,
A todos os sentimentos dando vazão.

Sentarei contigo no colo, junto à lareira,
Evitando contar fatos da cidade.
Perguntarei do pomar, do jardim, da horta, da palmeira.
Depois, farei minha nega sorrir a maior felicidade:
Precisamos saber onde mora uma parteira,
Porque vamos ter um filho. É verdade.

Neste momento, pode ser até que eu não diga,
Mas não quero filho nosso subindo o Monte Sem-Fim.
Vamos fazer melhor: Cercamos tudo com arame e urtiga.
Precisamos proteger nosso filho. Acredita em mim.
Não quero um neguinho depois desiludido, cheio de ferida.
Minha nega, nossa família será feliz assim.

Ah, eu já ia quase esquecendo,
Minha nega, o teu presente:
Um vestido de chita que só vendo.
Você vai abrir o embrulho num repente,
Cada vez mais se surpreendendo,
Vai perguntar o que acho, com o vestido à tua frente.

E vamos, junto à lareira, dançar,
Minha nega com seu novo vestido,
E o nego com nova alma a respirar.
O resto lá em cima esquecido,
Nada mais a lembrar, chorar.
Só por isso, valeu ter sobrevivido.

Minha nega, pode acreditar,
Nessa ladeira, não há cansaço.
Quanto mais desço a imaginar
Teu beijo, tua saudade, teu abraço,
A ladeira fica macia, ajuda o andar,
E coisa mais leve não há que o meu passo.

Agora falta pouco descer,
O nosso barraco já consigo enxergar.
Apesar do escuro a entontecer,
Surgem a porta, as janelas alumiando o meu olhar.
Com toda luz, minha imaginação traz você,
Que corre em minha direção a me abraçar.

Num soco, sou tragado pela realidade:
Tem tiroteio lá em cima, por onde passei.
Desço correndo, fugindo da cidade,
Lembrando e chorando tudo o que penei.
Mais tiros que vêm da atrocidade
Daquele mundo desumano, sem lei.

Minha nega, eles estão descendo,
São muitos chegando perto.
Estou no final da ladeira correndo,
Nenhuma árvore pra me fazer encoberto.
Eles continuam atirando, o chão estremecendo,
E eu mais uma vez fugindo de olho aberto.

As costas me ardem por um momento,
Depois do mais forte estampido.
Curvado, arrasto o corpo no tormento.
O nosso barraco à minha frente, vivo.
Tento levantar o braço, um só movimento,
Seguro o mais que posso o pacote com teu vestido.

De repente, a porta fechada,
Minha nega acendendo a lareira,
Nós dois abraçados na madrugada,
Trocando saudades, lágrimas, falando de palmeira,
Fazendo planos, filho, a noite enluarada,
Minha nega dançando com vestido de chita, toda faceira.

Perdão, minha nega, por tudo na vida:
Perdão por eu ter chegado sem avisar,
Perdão pelo meu sangue no teu vestido de chita,
Perdão por mais uma vez eu te fazer chorar,
Perdão pelo filho que não deixei na tua barriga,
Perdão por eu ter voltado, e não poder mais te abraçar.

Música - Encruzamares - Márcio Arruda/Voz - Reinadi Sampaio:

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Tempus Fugit

Foto: Denise
Dora Brisa

Um dia,
Eu morrerei,
Tu morrerás,
Ele morrerá,
Nós morreremos,
Vós morrereis,
Eles morrerão.
Assim mesmo:
Num dia qualquer,
Numa noite qualquer.
Não importa.
Morreremos – todos.
No primeiro dia,
Chorarão a nossa morte,
Em lágrimas de saudade
E arrependimento.
No centésimo décimo sexto dia,
Lembrarão a nossa morte,
Na justificativa de um
Fracasso qualquer.
No milésimo centésimo terceiro dia,
Saberão a nossa morte,
Com a curiosidade turística
Do olhar que visita terra estranha.
No milionésimo vigésimo oitavo dia,
Já não chorarão, nem lembrarão a nossa morte.
No meio de entulhos ignorados pelo tempo,
Alguém (sem saber) guarda a nossa existência.
Displicentemente.