sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Prelúdio

Dora Brisa

Minhas vestes são bandeiras
Brancas tingidas de sangue.
Minha única arma é a palavra:
Fria, fere e mata a minha alma.
Quente, salva a minha loucura.
Vivo de grandes revoluções,
Só dentro de mim.
Nem faço mais perguntas,
Pois as respostas me perseguem,
Ávidas, irônicas, febris.
Só tenho duas máscaras,
Que não me foram herdadas:
Uma é a máscara de um palhaço
Que matei de tanto chorar
De rir da minha cara.
Outra, máscara de bicho-papão.
Essa é minha mesmo.
Tanto uma, quanta a outra
Provam minha incompetência,
Total inutilidade à vida humana.
Eu, que desumana sou,
Sem qualquer herança,
Eu, sem gestos,
Eu, sem olhares,
Eu, sem saber se sou,
Ou se um dia fui
O que nunca serei.
Se já não peço desculpas
Por eu mesma existir,
É por desconfiar, na verdade,
Dessa existência de eu mesma.
Por vezes, sei que toco
A simplicidade e a complexidade
Do que chamam vida.
Mas meu astigmatismo
Só me permite enxergar
O que parece ser uma vida
Complexa na simplicidade,
E tão simples na complexidade.
Eu, desistente,
Eu, convencida de nada,
Eu, isenta de ser e não ser,
Silencio na resignação.
Aparentemente saudável,
Não desafio eletrodos.
Há muito, meu coração
Foi servido em banquete de vermes,
Depois, chegaram os abutres.
Há muito, é minha alma
Que pulsa, e sangra,
Sangra, pulsa.
Até o dia do nada.
O síndico do prédio anuncia
Que (ainda) estou viva:
  • A senhora tem de pagar
O condomínio,
A conta do gás.
Ele não sabe que devo
O pagamento do meu parto
À rezadeira negra, que,
Numa cantilena de noite chuvosa,
Chorou, quando me viu nascer.
Definitivamente, não sei viver
Com os seres humanos,
Eu, desumana, que só
Aprendi a não ser.
A quem, e como, pagarei
O meu funeral indigente?
Eu, que nada sei de vida,
Menos ainda de morte.
Eu, que insisti em nascer,
Para ver a vida passar,
Pela janela embaçada,
Enquanto a morte me faz
Companhia, na sala de espera.
Eu, que nada sei de eterno,
Não compreendo o momentâneo.
Eu, que não sei andar na escuridão,
Silencio os olhos, diante da luz.
Eu, passado do futuro que recebi
De presente, enquanto dormia.
Mas ela insiste em repetir:
Não entender é tão vasto”.
Ora, Clarice, vastidão é não existir.
Até Clarice continua viva,
Mais viva ainda, na morte.
E isso nada tem de eternidade:
As lembranças, as obras
Não a deixam morrer em paz.
Agora é tarde.
Mas não havia aviso prévio.
Existo.
E a minha existência é tão grandiosa,
Quanto a existência de uma pulga,
Que salta desapercebida,
Numa ida-e-vinda inconsequente,
Para depois deixar-se morrer,
Morrer tanto, sem precisar ser esquecida.
A palavra 'sempre' me assusta,
Enquanto morro, a cada 'nunca'.
Não sei o que fazer de mim,
Do que eu poderia ter sido,
Do que era para eu ter sido,
De tudo o que não quis ser,
Do nada que eu também recusei,
Do que não serei, não fui, não sou.
Não sei o que fazer com o que não sou,
E nada mais resta saber em mim.
Já fui ninguém, alguém viu.
Mas faz tanto tempo.
O que me sobra é não ser,

Enquanto o tempo me finge existir.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Meu Plural

Dora Brisa

Pensando nos meus amigos, vejo que todos somos tão diferentes, e ao mesmo tempo tão iguais...
Tenho amigos que não me procuram, não me falam coisas – nem da própria vida, nem da vida dos outros. Outro amigos me procuram a todo momento, contando coisas da vida.
Tenho amigos que, quando me procuram, estão sempre chorando por alguma coisa. Outros amigos me procuram pra contar piadas, sorrir junto.
Tenho amigos que se aproximam em silêncio, e em silêncio se afastam. Outros amigos chegam fazendo alarde, e movimentam a minha vida.
Tenho amigos que sentem ciúmes de mim, e às vezes até 'emburram' por causa disso, e me punem com a ausência deles. Outros amigos me apresentam os amigos deles e fazem amizade com os meus amigos – e a família aumenta.
Tenho amigos que, quando me procuram, é para falar sobre economia, política, situação do País, profissões, mercado de trabalho. Outros amigos compartilham comigo a alma poética, e viajamos juntos por nuvens que eu (ainda) não conhecia.
Tenho amigos que me falam de futilidades, brincam com as vaidades, e acabamos rindo juntos. Outros amigos só me dizem coisas sérias, abismais até, e nos perdemos em questões existenciais.
Tenho amigos que estão sempre procurando um jeito pra falarem comigo, se preocupando como vão me tratar. Outros amigos me chegam de qualquer jeito, e rimos à toa, ou até choramos.
Tenho amigos que não me compreendem, ou talvez não me aceitem, mas nem por isso deixam de me buscar. Outros amigos, sem questionarem se me entendem ou não, permanecem comigo na caminhada atemporal.
Tenho amigos pretos, brancos, vermelhos, amarelos – coloridos de alma. Tenho amigos melancólicos, alegres, silenciosos, festeiros. São amigos queridos que sempre encontram no meu coração, o aconchego. Sei que todos os meus amigos são o meu plural – por que eu sou cadinho de cada um deles.
Voz: Rosany Costa - Edição - Enise: