Dora Brisa
A primeira vez que ela o enxergou era um dia qualquer, sem
previsão de “grande amor”, no horóscopo que leu no jornal do dia. Como todos os
encontros, também esse foi casual. O olhar dele era fixo – o olhar dela sabia
que ele a seguia. Ela fingiu não perceber, e seguiu em frente, sem saber mais
aonde ia. Ele ficou lá – estático, com o olhar ainda fixo.
Depois que dobrou a esquina, cambaleando, ela entrou numa
lanchonete qualquer, pediu água com gás, e parou para pensar, enquanto retinha
na boca, cada gole da água gelada, até sentir todas as bolhas de gás deslizarem
pela garganta seca. Aquele olhar fixo, no semblante de serenidade dele,
permaneceu com ela, até que desistiu de tentar lembrar aonde teria de ir, e
voltou para casa.
O apartamento quase vazio tinha as marcas do final do casamento
dela. O ex-marido levara quase todos os móveis, os livros, as louças, os dvds,
os eletrodomésticos, os cds, e até a coleção de discos de vinil dela, que não
se importara. Só não levou o filho que ela tanto sonhara, e ele evitara – até o
fim. Pela primeira vez, ela lembra a separação, e isso não chega causar-lhe
mal, nem perda. Quanto tempo faz?... Ela não sabe, não quer saber, nem pensar.
Involuntariamente, ela recorda o olhar fixo do homem que
encontrou na calçada qualquer. Não era atração física – ela sabia, por que,
depois da separação, aventurou-se em alguns relacionamentos, por atração
física. Viveu bons momentos – momentos que não passaram de momentos mesmo. Em
cada caso que teve (foram poucos), buscou o olhar do homem que tomava-lhe nos
braços, mas nada enxergava, além da superfície. Nunca tinha visto um olhar tão
fixo, quanto daquele desconhecido, que ela nem chegou reparar nas roupas dele.
Chegou pensar em voltar àquela rua, àquela calçada. Não. Seria
esforço perdido. O mais certo era que também ele estivesse de passagem por ali.
Mas ele não era estranho a ela, mesmo sem saber quem ele era.
O tempo continuou passando. A vida continuou sendo vivida – ou
não. Num outro dia qualquer, ela volta àquela calçada, aonde enxergara, pela
primeira vez, aquele olhar tão fixo. E lá está ele, sentado, olhando à rua.
Mais uma vez, ela sente aquele olhar fixar-se na presença dela, que, por um
instante, para na calçada, esboça um sorriso, que não chega ser correspondido.
Mais uma vez, ela desiste – o olhar fixo a intimida. Tropeçando na calçada, ela
sabe que o olhar dele a segue – fixo.
Com férias do trabalho, ela resolve reorganizar o apartamento –
um jeito útil de ocupar-se, movimentando a nova vida. Com as economias que fez,
comprou cortinas coloridas – e leves, e soltas nas janelas. Fez doação do sofá
aonde estava dormindo, desde a separação (o ex-marido levara os móveis do
quarto do casal). Comprou estofados novos, coloridos, e televisão nova, novos
dvds, novos cds, cozinha nova. Ainda falta-lhe uma estante, para comprar novos
livros, nos velhos sebos da cidade.
Almoça, e resolve procurar uma estante – pequena, funcional. Sai
de casa a pé, desce a avenida principal, dobra à esquerda, atravessa a rua, e
se depara na mesma calçada da loja aonde (ela intui) o olhar fixo trabalha. Lá
está ele. Pela primeira vez, ela o enxerga, além do olhar: ele é alto,
elegante, charmoso, mas o que mais a instiga é aquele olhar fixo que a penetra,
no mais fundo da alma.
Ela o cumprimenta, brevemente: Olá! Acelera os passos,
imaginando que ele tenha retribuído o cumprimento, mantendo o olhar fixo, que a
acompanha agora, ao dobrar a esquina. O coração dela acelera. Ela transpira
ansiedade.
É noite. Ela organiza alguns poucos livros que conseguiu no sebo
mais próximo, depois de comprar a pequena estante, instalada na sala. Aquele
olhar fixo tira-lhe qualquer pensamento. Ela esboça sorriso maroto, e planeja
voltar àquela calçada, quem sabe até entrar na loja onde ele trabalha, no dia
seguinte.
Quando acorda, já passa do meio-dia. Não se importa. Está em
férias. Resolve almoçar no restaurante que viu, próximo à loja em que ele
trabalha. “O destino pode nos aproximar, num almoço” – pensa, confiante. Depois
do banho, ela fica escolhendo a roupa que vai vestir – há tanto tempo não fazia
mais isso. Resolveu sair com o vestido vermelho, que comprou na liquidação de
uma loja do shopping da zona sul. Salto alto, lá vai ela, chamando a atenção de
todos, pela calçada. Quando se aproxima do que chama “destino”, o olhar fixo
não está lá, próximo ao balcão da loja. Nem sinal dele. Ela finge olhar a
vitrine, perscrutando todo o interior da pequena loja. Nada. Desiste de ir ao
restaurante – não quer mais almoçar. Volta para casa, desolada. Nem sabe onde ele
mora, para procurá-lo. Nem sequer o nome dele.
Os dias dela seguem vazios, ansiosos, sem a presença dele,
naquela redoma de vidro. Ansiosa, ela segue o ritual, diariamente, às vezes
até, pela manhã e à tarde – para diante da loja, fazendo de conta que está
interessada em alguma roupa exposta na vitrine, e se afasta. Não chega chamar a
atenção das funcionárias, por que a loja tem bastante movimento, e todas estão
ocupadas em bem atender os clientes que adentram.
Dias depois (para ela, anos de ansiedade), quando passa pela
porta da loja, o vê – o mesmo olhar fixo, dessa vez, não para ela. Ele está
sentado, com os braços relaxados nos ombros de uma mulher, que ajeita-lhe a
gravata ao colarinho salmão. O corpo da mulher está entre as pernas dele, que,
sentado, fixa todo o olhar à mulher que sorri. Ela observa, minuciosamente, a
cena inteira, estarrecida. Vai embora.
Em casa, desaba em choro, no sofá novo que comprara na
liquidação. “Boba! Boba! Mil vezes, boba!” – grita para si mesma, e chora mais
ainda, até adormecer.
O tempo passando, e ela sem passar na frente daquela loja. Num
dia qualquer, como aquele em que, pela primeira vez, os olhares de ambos se
cruzaram, ela se vê diante da loja, onde o olhar fixo permanece, solitário. Sem
pensar, impetuosamente, ela resolve transpor a redoma de vidro. Entra na loja.
Caminha, com segurança, em direção daquele olhar, que, a cada passo dela,
torna-se cada vez mais fixo. Quando fica diante dele, ela fala alto, gesticula,
grita mesmo – o olhar, cada vez mais fixo, silencioso. Repentinamente, ela
começa a quebrar os objetos da vitrine. Segura, com toda força, uma caixa
enorme de estecas, e arremessa contra o vidro da vitrine, que estilhaça,
chamando a atenção dos transeuntes. Alguns correm, outros chamam a polícia.
No dia seguinte, ela não
quer acordar, nem levantar. Os vizinhos do apartamento não a veem mais sair,
nem voltar. Numa loja qualquer, a vitrine exibe o mesmo manequim, de olhar
fixo, feito de argila, abraçando o corpo de uma mulher, também feita de argila,
sem cabeça.
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