terça-feira, 29 de março de 2011

Sozinho

Dora Brisa
Sinto que sozinho
Terei de continuar
Nesta vida em desalinho
Só aprendi a voar
Preciso construir meu ninho
Em algum qualquer lugar
Neste mundo passarinho
Só conheci o infinito ar
Fechei olhos e asas ao redemoinho
Na ânsia de acreditar:
De repente um ninho
Esperando para me abrigar
O que restou foi um sonho sozinho
De quem só voou buscando amar
Nesta vida não há um só cantinho
Para simplesmente ficar, ficar
Seguir um só caminho
E não ter mais que voar, voar...

Voz - Helena Antoun:

segunda-feira, 28 de março de 2011

Vai, poeta

Dora Brisa

Vai, poeta
Beba teu último gole
De melancolia
Mastiga com voracidade
O pão que o diabo amassou
Vai, poeta
Atira pela janela
Tua última esperança
Solta teu
Último escarro
Vai, poeta
Dá a última tragada
Dos teus pulmões
Fala pela última vez
Dos teus medos
Vai, poeta
Derrama tua última
Lágrima inútil
Joga tua parca bagagem
No trem-fantasma
Vai, poeta
Queima tua
Pobre máscara
Veste tua nudez
Com tua última alma
Vai, poeta
Sopra teu
Último sonho
Varre tua
Lembrança mofada
Vai, poeta
Cuspa na fogueira
Que vem das cinzas
Quebra teu único riso
No muro da realidade
Vai, poeta
Fuja das palavras
Enlouquecidas, libertas
(todas as palavras)
Que querem matar o poeta
E tudo o que resta
Corra, poeta
As palavras não querem mais
Saber de mago ou domador
As palavras despertaram:
São mortíferas
Corra, poeta
As palavras não querem rimar
Amor com dor
Criança com esperança
Morte com sorte
Corra, poeta
As palavras se rebelaram
Agitam frases obscenas
Na madrugada
Que o poeta deixou sem lua
Corra, poeta
As palavras querem matar
As rimas, a métrica
A bela melancolia poética
E antes assassinar o poeta
Corra, poeta
As palavras embaralharam
Loucas, embriagadas
Todas carregam uma tocha acesa
E gritam: “Abaixo a poesia que faz o poeta”
Corra, poeta
Não há mais palavras
Estilhaçaram-se todas
Diante de um poema teu
O último poema
(o último gole
o último pesadelo
o último suspiro)
Não adianta mais correr
Poeta
Os estilhaços te atingiram
As palavras viraram cinzas
As mesmas cinzas de que é feita
Tua alma poética.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Faz-de-conta

Dora Brisa

Se você existisse,
Eu continuaria sendo
Essas tantas:
Quem eu penso
Que sou,
Quem as pessoas
Pensam que sou,
Quem eu sou
Sem pensar, e
Quem eu não sou...

Se você existisse,
Eu continuaria
Tentando descontrair
O stress cotidiano,
Brincar de gravata,
Ensinar cumprimento
Breve, a quem
Finge não me ver...

Se você existisse,
Eu continuaria
Sendo a irônica
Incorrigível,
A palhaça
Sem graça do
Picadeiro da vida,
A criança fora de época...

Se você existisse,
Eu continuaria
Acreditando que
Gentileza
Sorriso
Respeito
Apoio
Fazem toda a diferença...

Se você existisse,
Eu continuaria
Tropeçando
Nos próprios pés,
Deslizando
No leite derramado,
Chorando o que tive
E o que não tive também...

Se você existisse,
Eu continuaria
Olhando mais
As nuvens
Que abaixo delas,
Os olhos da alma
Que o corpo efêmero,
O tudo do nada...

Se você existisse,
E um dia partisse,
Ainda ssim,
Você continuaria existindo em mim,
E eu ainda enxergaria
Solidão:
Tua e minha solidão,
No silêncio deste tempo
Que não quer
Saber de passar...

Voz - Rosany Costa:

segunda-feira, 21 de março de 2011

Sede

Dora Brisa

Hoje (instantes que passam), quero sentir sede, mas não sede saciada por uma água bem gelada. Não. Quero mais que isso.Quero saciar a sede da alma.
Lembro agora que, todos os dias, via aquela garotinha raquítica (não mais que oito anos de idade) passar pela rua, carregando uma garrafa vazia. Depois de algum tempo (longe dos relógios), voltava ela com a garrafa cheia d’água límpida, e seguia a ladeira, compenetrada, cabisbaixa.
Um dia qualquer desses, resolvi interpelá-la, quando ela dirigiu a mim, um olhar triste, absorto – único. Perguntei-lhe se não havia água em casa, e ela confessou-me, com o olhar fixo, que ia sempre buscar água para o avô doente, que morava sozinho. “Lá, no barraco do meu avô, água é líquido sagrado e raro” – disse-me ela, em voz séria e amadurecida, sentindo o que falava. “E meu avô também sente sede” – foi o que sussurrou, antes de seguir à ladeira.
O tempo passou, e fiquei com a imagem daquela menina no meu sentir (porque nunca mais pensei a respeito). Não mais a vi passar por ali, e julguei que o avô tivesse morrido; mas não de sede. Com certeza.
Neste instante (um dos instantes do meu hoje), quero sentir a sede deste velho desconhecido, doente. Quero saciar minha sede com a água cristalina que vi passar nos braços daquela criança. Quero sorver um só daqueles instantes em que a garota chegava no barraco do avô, punha a garrafa sobre a mesa improvisada, e pegava um copo para servi-lo à boca, que sequer balbuciava mais um “obrigado”.
Hoje (neste instante único que passa), quero absorver o olhar de gratidão do avô, saciando a sede que lhe queimava a alma. Quero sorver cada gota daquela água carregada pela menina. Quero mais sede ainda, para continuar sentindo o mesmo olhar que aguardava a menina na rua.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Nós mesmos nós

Dora Brisa

Bebemos o mesmo vinho
o mesmo pranto
Trocamos o mesmo carinho
o mesmo encanto
Perseguimos a mesma verdade
a mesma ilusão
Guardamos a mesma saudade
a mesma paixão
Lambemos o mesmo prato
a mesma ferida
Sofremos o mesmo desacato
a mesma despedida
Dividimos o mesmo cobertor
o mesmo vazio
Sentimos o mesmo tremor
o mesmo frio
Conhecemos a mesma linguagem
a mesma mímica
Parecemos a mesma folhagem
a mesma química
Saciamos o mesmo olhar
a mesma sede
Deitamos no mesmo mar
na mesma rede
Antevemos o mesmo futuro
o mesmo fim
Destruímos o mesmo muro
o mesmo jardim
Sentimos a mesma calma
a mesma ira
Somos a mesma fauna
a mesma mentira
Perdemos o mesmo trem
a mesma vida
Negamos o mesmo além
a mesma guarida
Sentamos no mesmo caminho
no mesmo avião
Fugimos do mesmo ninho
do mesmo trovão
Choramos a mesma dor
a mesma solidão
Carregamos a mesma flor
a mesma canção
Morremos no mesmo chão
na mesma melancolia
Nascemos no mesmo coração
na mesma poesia
Assim somos nós
Tecendo nossos nós.

Voz - Elisa:

terça-feira, 8 de março de 2011

Busca

Dora Brisa

Busco mais perguntas
Às minhas brechas preencher...
E, nessa busca quase insana,
Respostas encontro
De questionamentos que nunca fiz...
E assim me preencho,
Resvalando para dentro de mim mesma,
Em queda livre...
Enquanto dentro de mim, ecoa: Vida!...

domingo, 6 de março de 2011

A Beethoven

Dora Brisa

Fico a escutar-te
Em Adagio Sostenuto,
E a tua solidão
Faz companhia à minha solidão...
E a tua dor
Já não se dilacera
Sozinha,
Por que também a minha dor
Geme e esperneia...
Cada nota tua
No piano
É um grito dolorido,
Abafado...
E também eu abafo
Meu grito – minha dor...
E a minha solidão
Dialoga com a tua solidão,
Nesta melodia triste,
À procura do nada...
E sentimos nós
A dor mais humana:
A dor do existir...
... E a melodia segue
(triste, e por isso bela),
Como segue a vida...

Voz - Serenissima:

quarta-feira, 2 de março de 2011

Brincadeira infantil

Dora Brisa

Duas crianças a brincar,
Longe do olhar adulto...
O primeiro a falar
É o garoto, resoluto:

- Vamos brincar de gente grande.
Quero ser polícia, ou ladrão,
Que em todo mundo manda,
E sai a matar sem qualquer razão...

Como primeira reação,
A garotinha fica surpresa.
Após um instante de indecisão,
Fala com esperteza:

- Então, quero ser
Aquela mulher da vida,
Que mamãe pede para eu esquecer,
Quando a vemos na praça, ou na avenida...

- Ah, então eu vou brincar
Que sou político ladrão –
Responde o garotinho a imaginar -,
Roubando dinheiro público, iludindo a nação...

- Se você é político,
Quero ser dessas mulheres traficantes –
Interpela a garota, com olhar crítico
E pensamentos distantes...

O menino, para não ficar para trás,
Resume tudo, e se põe a explicar:
- Sabe o que a gente faz?
Escolhe um personagem a criar.

Ambos concordaram,
Dando asas à imaginação...
No mundo adulto se espelharam,
E o que resultou foi uma triste criação...

- Meu personagem rouba muito dinheiro,
Mata qualquer um que lhe diz não –
Explica o menino primeiro,
Fazendo pose de “chefão”...

- Minha personagem é cheia de vaidade,
Vai para cama com homens ricos, e ainda é traficante –
Relata a garotinha, com ar de seriedade,
Enquanto pinta com giz o semblante...

Por muito tempo, ficam os dois a brincar,
Sem pensarem no futuro,
Enquanto alguém está a matar,
Logo ali, atrás do muro...

... E os tiros da imaginação
Se confundem com os da realidade:
Futura concretização,
Presente exemplo de animalidade...