Dora Brisa
“Por ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar
o abismo de que sou feita.” (Clarice Lispector)
Um final de dia insosso, como o é o outono, em todos os seus lânguidos dias e noites. Restam apenas o fragor do verão e o prenúncio do frio que traz o inverno. Em passos lentos, dirijo-me ao banheiro, como quem carrega poucas roupas numa valise, procurando um só vagão na estação de trem.
Não havia planejado, mas desejo agora imergir em água morna. O desejo de tornar-me liquefeita toma conta de mim. Com certa violência – eu, que detenho em mim, gestos imperceptíveis -, começo a encher a banheira de água límpida, translúcida, vaporizando o azulejo frio e rijo do banheiro.
Ouvindo o barulho da água que jorra na banheira ainda fria, tiro do meu corpo, o vestido simples que cobriu-me do meu dia já vivido – passado. Na calcinha, uma fraca nódoa vermelha. Detenho-me na água viva que jorra, na qual banharei minha vida.
Nua, diante do espelho que circunda a banheira, deixo-me inundar pelo sentimento mais humano que prevalece: piedade. Enxergando além do corpo, com a largueza que o vapor da banheira me dá, penso nas tantas vidas vividas por este só corpo só. E é pelo espelho que vejo cair, timidamente, uma gota vermelha. E mais outra.
Quando baixo o olhar, agora rendido pela realidade, que – dominadora – se sobressai, o que vejo é um filete vermelho a escorrer na minha coxa direita. Sangue. Do meu corpo, desliza um tênue fio de navalha cortante. O mesmo sangue que escorre dentro do meu corpo, que se perde em veias, vasos, artérias, brota agora para fora de mim, como se não houvesse mais espaço lá dentro para tanta vida vermelha.
Aos poucos, o filete se alarga, e já não mais escorre somente pela coxa direita. Busca outros caminhos na coxa esquerda. E o que vejo agora é minhas pernas banharem-se de um vermelho vivo, viscoso. Meus olhos rendem-se ao vermelho cintilante, e também eu inundo-me da vida que verte de dentro de mim. No tapete, uma gota de sangue sobrepõe à outra. E mais outra.
Nada mais sinto. Neste instante único, esfacelo-me em gotículas de glóbulos brancos e vermelhos, que abandonam meu corpo íntimo, entregando-se ao primeiro capacho que as acolhe. Gota a gota.
Lentamente, uma hemorragia caudalosa se forma junto aos meus pés. Enquanto implora o que ainda não entendo, mais e mais sangue jorra de dentro de mim. Já não são gotas que juntam-se umas às outras. Rompem-se todas as comportas, e não há outro jeito, senão aceitar silenciosamente o correr das águas do rio, que retornam finalmente ao leito de origem – o chão frio, agora coagulado.
Água pura vem unir-se à pequena e presente poça de sangue. Detenho-me a olhar minuciosamente a água que tenta lavar o vermelho que pinta o azulejo de vida. Mas nem o insistente líquido transparente retira o brilho sanguinolento do chão onde se aloja. Só assim percebo que, como eu, a banheira transborda, dando passagem à água, que, como meu sangue, também é vida. Enquanto desligo a torneira, dois tipos de vidas diferentes – duas composições químicas provindas da mesma natureza – disputam espaço no azulejo inerte, fundindo-se num vermelho ainda mais líquido.
Penso. E o que penso agora é que a vida brota de dentro de mim, num só impulso desesperado, desesperador. Mas não me desespero. E ainda penso. Enquanto o fio da navalha liquefaz de vermelho o meu corpo.
Será isso o que chamam de parto? Se – finalmente – estou parindo, onde está o corpo fetal? Será que vou parir um feto coagulado no azulejo sempre inerte? Será que o coágulo – meu filho – dará vida ao azulejo?
Por que um filho – nunca por mim desejado? Estarei parindo o sonho de tantas mulheres? Por que eu – logo eu -, que nunca desejei ter um só filho? Por isso estou parindo assim: em coágulos que coagulam outros coágulos?
Será isso um aborto natural? A revolta de um filho contra a própria mãe, que nada fez para tê-lo, ou detê-lo? Que jamais imaginou desejá-lo? Que dizer a este filho-sangue, que se recusa a transformar-se carne da minha carne, neste ato insano de doação ao nada? Serei eu o nada a quem este coágulo-filho se doa pungente, num só gemido escarlate?
E se estou a parir outro Messias, outro Salvador? Mas nem me chamo Maria. E também não sou santa. Não saberia sofrer a dor de mãe, aos pés da grande cruz. Oh, Pai, afasta de mim este cálice, porque não saberei beber, num só gole, este sangue que continua a sair de dentro de mim.
“E erguendo a taça de vinho, Ele disse: Eis aqui o meu sangue”. O que jorra de dentro para fora de mim é vinho? Vinho que agora azeda abandonado no azulejo? Terei plantações de uva dentro de mim – cada vaso, uma semente? Parreiras imensas, infindas, que desfolham no outono? Serão as folhas ressecadas que agora – liquefeitas e avermelhadas – tingem minhas pernas, meus pés, até o azulejo que não é meu?
Mas ainda sinto dentro de mim, sangue a correr nas veias. Cada vez mais célere, como a multiplicar-se loucamente, na vã tentativa de compensar a falta das folhas secas, que continuam a cair, a inundar de vermelho os meus olhos.
“O meu sangue ferve por você”. É a música que a memória me traz. Cada vez mais presente aquele dia em que resolvi caminhar entre os barracos no morro. Era essa música que saía de um rádio à pilha, que escorava a porta aberta da casa da lavadeira, que, assoviando, estendia brancos lençóis ao vento. Nada mais lembro.
O sangue que escorre de mim não é fervente. Nem parece morno. Insólito. Desliza sem pressa nas minhas pernas, que às vezes estremecem. Se pelo menos o sangue fervesse, eu sentiria minhas pernas protegidas. Quem sabe até me banhasse no vermelho que escorre, buscando sentir-me tão liquefeita – o próprio sangue -, como jamais me senti na água pura e morna da banheira.
Sinto-me impelida à auto-comiseração. O sangue que até agora viveu em mim quer doar-se por inteiro – ao nada. E já não sei se, nesta doação involuntária, restará sequer uma gota de vida vermelha em mim.
Será que isso está acontecendo, por que nunca fiz sequer uma mísera doação? Será que meu sangue acumulou-se em tempo cronometrado, para, num só e decidido ímpeto, esvair-se em doação desmedida, até a última gota?
Se em mim não restar um só filete de sangue a rastejar nas veias? Serei eu a única pessoa a viver sem vida? Com certeza, tomando conhecimento do meu estranho caso de doação ao nada, cientistas me farão de cobaia em suas experimentações cada vez mais absurdas. Como absurda seria a minha vida sem sangue. Quem sabe até minhas veias recebessem doação de sangue de barata. Porque só as baratas sabem doar-se à morte, ao nada. E ainda procriam, multiplicam-se. Talvez seja por isso que barata não tenha sangue. Irei me tornar uma barata? Não. Prefiro a borboleta, voltando sempre à sua crisálida. Borboleta não tem sangue? Mas tem asas.
De dentro para fora de mim, acontece um assassinato. E eu inerte, e eu pálida, e eu pintada de vermelho insólito, como o próprio azulejo frio, indiferente. Dentro de mim, alguma coisa mata uma outra coisa que jorra sangue para fora de mim. Será um sinal? Um pedido de socorro? Mesmo que decifrado o grande enigma, quem ouviria meu pedido de socorro? Estou no vigésimo terceiro andar deste prédio emudecido. Nem que se configure a total doação involuntária – até a última gota deste sangue que coagula -, nem assim um só glóbulo vermelho chegaria à entrada desse edifício.
E se eu embalasse este sangue coagulado, e arremessasse o pequeno pacote improvisado pela janela do banheiro? Será que chegaria até lá embaixo? Será que alguém – um só alguém – se deteria, por curiosidade, ou simples compaixão, na vida que continua a brotar de dentro de mim?
Resignada e compadecida, ajoelho-me, nua (rendida), na poça pegajosa de sangue. Nada mais penso. E o que sinto é uma extrema emoção, nunca sentida por meus sentidos – todos concentrados neste instante que escorre no sangue, cada vez mais vivo, borbulhante até. Pela primeira e única vez, estou ajoelhada em cima da minha vida mais secreta, mais íntima. O que sinto nas minhas pernas e nos meus pés é o sangue que corria lá dentro, e agora se doa ao nada.
E o que sinto mais forte é que agora estou dividida: parte de mim corre entre vasos, artérias e veias, e a outra parte coagula no chão estéril, silencioso. E ainda assim vivo. E ainda o vermelho toma conta das minhas pernas, dos meus pés, colorindo até o azulejo antigo. Por um momento, fecho os olhos, e deixo-me invadir pela tontura condescendente.
Braços largados até o chão, sinto meus pulsos enfraquecerem. Será o fim? Fim de quê? Se a vida ainda brota de dentro de mim, e torna cintilante o coágulo que meus olhos – agora abertos – vislumbram. Na lápide derradeira, ficaria registrado, entre heras e ervas daninhas: Aqui jaz uma criatura que doou a vida ao nada, até a última gota. E outra coisa não restaria, porque já teriam limpado o coágulo seco deste banheiro.
Mas se de fato for a morte, de que me valeu a vida? De que valeu o escorrer do sangue pelas minhas pernas? De que valeu eu sentir o vermelho escarlate tingindo meu corpo – por dentro e por fora?
Nem sequer um filho? Mas nunca desejei parir um filho. Mas se eu desejar algum dia? De que me vale agora o fim, este sangue que coagula entre minhas pernas?
E se um dia, complacente, eu aceitar ser Maria? E quiser parir o sangue salvador? E se eu juntar todas as lágrimas e dores, para chorar aos pés da grande cruz?
E se eu decidir tomar, num impetuoso e demorado gole, de uma só vez, todo este vinho que o dentro de mim despeja para fora? E se, ainda assim, eu sentir o doce do coágulo que doa a vida ao nada? E se?...
E se eu me recusar a seguir esta doação inteira ao nada? E se eu quiser estancar este sangue que teima em sair, como lágrima incontida? E se o meu medo coagular agora – neste instante – até a última gota de sangue que resta ainda dentro de mim?
Quando criança, ouvi a benzedeira dizer, na sua sabedoria plena, que deve-se colocar compressa de açúcar, para se estancar o sangue. Quero adoçar meu sangue vermelho – não este que já está fora, que já não é mais meu. Quero tornar doce o sangue que faz meu corpo todo estremecer à sua passagem.
Se meu sangue é a minha vida, minha vida escorre agora borbulhante de benzeduras, simpatias, mandingas. Ouço as novenas das beatas fiéis à Nossa Senhora da Boa Morte.
Já não penso, porque o sangue que ainda vagueia dentro de mim transita tão-somente no meu sentir. Sinto dificuldade para respirar. E já nem sinto as veias pulsarem – sequer a aorta. O que sinto, mais que isso, é uma câimbra febril nas pernas e nos pés. Uma febre lancinante, viva. Enquanto o vermelho se faz agora em vagarosos coágulos, que obedecem a ordem da cadeia que impera, coagulando o chão – que nem mais azulejo é -, para receber a vida que se esvai.
Sem nenhum pensar, olho para a poça sanguinolenta. Minha boca está seca, sedenta do sangue que já não é mais meu. Num impulso de misericórdia – semelhante àquele da mulher que roubou três pãezinhos na padaria -, também eu roubo um coágulo da perna que continua sendo minha.
O sabor que me chega à língua é agridoce, tal qual minha vida. Pela primeira e única vez, degusto o sabor insólito da minha própria vida. Saber não é sentir. E para sentir, é preciso não saber. Por isso, nada sei da minha vida. Sinto.
Que seja esta a última gota do sangue que já foi meu. Demoro-me em degustar o agridoce de que é feito o dentro de mim. Voltando o olhar à poça no chão, sinto que me embriaguei com o meu próprio vinho, engolindo toda a vida que ainda vivia entre os coágulos agora secos.
E agora meu paladar jamais voltará a ser o mesmo. Porque antes de degustar o vinho de dentro de mim, pensava eu que sabia, que conhecia sabores. Pobre consciência, que para tudo busca definição.
O sabor da laranja não está na laranja. Porque o verdadeiro sabor da fruta é o que ela carrega no broto da flor, que se doa em fruto. O sabor é sempre genuíno – como o sangue que ainda goteja insistente entre minhas pernas amortecidas.
Aceito a doação involuntária – desde que não seja para o nada. Quero doar-me em semente, depois tronco, galhos, folhas, flor, até o bendito fruto sabor genuíno. Que meu sangue dividido – o que goteja fora de mim, e aquele que borbulha lá dentro – regue a semente do que será o sabor genuíno de todas as coisas. Porque eu experimentei, sem vacilar, o cálice do meu próprio vinho, e tomei-o à última gota vermelha.
E nada mais poderá ser como antes. Porque o meu medo foi destruído pelos coágulos sanguinolentos que continuam a coagularem-se entre si. O que se forma é uma massa espessa no chão, aparentemente dura, que se desfaz com a primeira gotícula vermelha que segue o curso natural: de dentro para fora de mim.
Meu corpo tremeluz agora na penumbra do banheiro. E a auréola da poça coagulada começa a escurecer. Já não cintila mais o sangue borbulhante. Não há mais vida? Vida existe ainda – dentro de mim. Mas fora de mim, meu corpo padece, como padecem todos os corpos que se doam desmedidamente. E já não há mais força para soerguer-me. E já nem quero mais levantar. O sangue a escorrer lentamente. Ainda.
Quiçá meu último pensamento humano: e se tudo isso for apenas um sonho, um mísero sonho de um corpo cansado? Não é um sonho. Porque o agridoce toma conta da minha boca, que chega a arder em saliva. Enquanto o dentro de mim se esvazia.
Sentir minha vida por um fio de navalha faz-me concentrar na passagem de cada glóbulo, dentro para fora de mim. Não há revolta. Nem aceitação. A desistência simples – sem artifícios, ou heroísmo – a tudo assiste. Calada. Tudo sente. E consente.
E também não há dor – porque nenhuma parte do meu corpo foi decepada. E meu sangue não esguicha, em sinal de emergência. Agora, somente um tênue fio vermelho perpassa a linha quase invisível que separa o dentro do fora de mim.
Minha cabeça cambaleia à frente. Sinto que não preciso mais manter os olhos abertos. É o meu corpo que sangra, que sente. E a vida a gotejar humildemente. Sem nenhuma pressa, ou prece.
Cada vez mais vazia de sangue, uma lembrança vaga me chega: Quando criança, eu estava sempre a aventurar-me em bicicletas, árvores enormes. De quando em quando, um arranhão aqui, outro ali. Eu não chorava. Podendo alcançar o ferimento com a língua, ficava a lamber o meu sangue – este mesmo sangue que agora sai de mim -, até estancar a ferida.
Hoje, são tantas feridas, que eu não teria saliva para lambê-las todas. Até porque o sangue que deixa de ser meu, neste instante, não brota de nenhuma cicatriz mal curada. Pelo contrário. Este sangue que coagula ao sair de mim provém da passagem mais natural, pela qual a maioria de nós nasce para a vida que está fora.
Lentamente, rastejo agora em direção do espaço vago que existe entre a banheira e o vaso sanitário. Desprovida de força humana, rastejo, deslizo sobre o sangue coagulado no piso agora morno. E meu esforço sanguinário deixa rastros vermelhos, de novo cintilantes. Pouco resta nas comportas dilaceradas, que persistem em gotejar todo o vermelho da vida que se esvai. Para onde?...
Em estado de torpor, sinto minha cabeça pesar. Pesa com tantas palavras sem sentido. E já nem sinto o pardo filete de sangue que dá seguimento à saga da desistência mórbida.
Cada vez mais palavras desconexas faz minha cabeça pender até a tampa do vaso sanitário. Chuva. Campo. Sol. Dia nublado. Branca nuvem. Folha seca. Carrossel. Pipa. Mudez. Abraço. Frio. Floresta. Mar. Noite. Solidão.
Em minha semi-consciência, as palavras se esvaem como o sangue de dentro de mim. Todas coagulando, uma a uma. E restam sílabas, letras, e depois somente hieróglifos que já não podem ser desvendados.
Silêncio. Um zunido ensurdecedor arrebenta a consciência que ainda resta. Desfaleço.
... Desperto numa cama leve, onde o colchão, o travesseiro e os lençóis são de uma leveza que combina com a brancura do ambiente. Reconheço que estou num hospital. Como vim parar aqui? Há quanto tempo estou internada? As perguntas insistentes fazem minha cabeça – agora leve – latejar.
Tento mover o corpo, para quem sabe sentir o sangue que ainda vive dentro de mim. Sinto. Só não posso mexer o braço esquerdo, preso por uma agulha até o suporte que goteja líquido vermelho, viscoso, plasma sem brilho. Será aquele mesmo sangue, coagulado no azulejo, que já foi meu, e agora retorna para dentro de mim?
Sentindo dormência no braço direito, com esforço humano, busco a campainha. Aperto ininterruptas vezes, até surgir na porta branca, uma moça sorridente, toda vestida de branco, com os cabelos pretos escondidos em alvo lenço.
Procuro minha voz, e depois palavras conexas – que atendam aos meus sentidos. Nenhum som audível. Somente eu escuto meus pensamentos, onde as perguntas continuam alojadas. A enfermeira – que assim se parece – tenta me tranqüilizar. Pede para eu não ficar nervosa, que “está tudo bem agora”.
Tudo bem? Que tudo está bem? E o que é este bem em tudo? Você escuta meus pensamentos, moça? Onde estou? Como vim parar aqui? Com certeza, não joguei-me do vigésimo terceiro andar. Se me lembro, havia uma poça de sangue coagulado no piso, que já não era mais tão frio. Meu corpo estava lá. Você lê meus pensamentos, enfermeira? Então, responda-me: O que fizeram com o sangue que, ao sair de dentro de mim, já não era mais meu? Responda. Responda.
Entre minhas perguntas sem respostas, adormeço.
Quando acordo, o que enxergo é uma pele que, de tão morena, parece negra. E nesta pele, dois olhos ávidos, um nariz franzido, e uma boca larga, com brancos dentes a combinarem com a brancura dos lençóis, da parede do quarto. É Ermelinda, a empregada fiel – mais de dez anos de convivência em casa. É ela quem vai me contar tudo o que preciso saber. Se ela está aqui, é por saber de tudo o que aconteceu comigo, depois que eu deixei de saber de mim, do meu sangue que escorria, e agora não sinto mais escorrer.
Ermelinda continua parada – sorridente – diante de mim. Nada fala. Parece estar em oração, enquanto não tira – um só segundo – os olhos de mim. Balbucia alguma coisa, que a mim chega ininteligível, e depois ergue os braços, olha para o teto branco, e diz: Amém! Amém! No meu mutismo incompreensível, repito com ela: Amém! Amém!
O que se segue é um gesto vão da minha parte. Tento, com esforço humano, erguer o antebraço direito em direção de Ermelinda, que agora se aproxima de mim. Ela fala baixo, pausadamente (agora sei por que há tanto tempo ela trabalha comigo).
Com Ermelinda por perto, nada preciso falar. Ela sabe. Ela intui. Ela sente. E é esta sabedoria que agora responde a todas as perguntas latejantes da minha cabeça. Começa dizendo para eu não exigir muito da mente, que também enfraquecera com a hemorragia. E Ermelinda me conta que, naquele domingo de folga, depois de lavar as louças do almoço, ela despediu-se de mim, e foi visitar o pai velhinho, que vive num asilo. Ainda presa à minha mudez, lembro o dia que nós duas fomos visitá-lo. E dizer que ainda guardo o aperto daquela mão emagrecida, cheia de grossas veias de sangue.
E Ermelinda verbaliza o que eu já havia deduzido: ao entardecer, logo após a missa (“Rezei tanto pela senhora!”), ela retornou à casa. E o que encontrou foram poças de sangue, na escuridão do banheiro, e um corpo nu, pálido, mais inerte que o próprio azulejo que ela limpa com tanto zelo.
Lentamente, minha mão – agora tão alva quanto o lençol que me cobre – busca as mãos calejadas da velha e fiel Ermelinda. Dos meus olhos, grossas lágrimas a fitá-la. E também Ermelinda emudece, deixando escorrerem, quase desapercebidas, lágrimas dos alvos olhos.
Uma semana depois, já estou em casa. E silenciosa, diante da porta aberta do banheiro, fico a tentar rememorar tudo o que aconteceu naquele dia. A suave fragrância de eucalipto comprova a dedicação de Ermelinda, que, atrás de mim, conta que passou meio dia ajoelhada ali, naquele piso, para retirar até o menor resquício – indelével – de todo aquele sangue coagulado. Abracei silenciosamente a velha companheira, lembrando que também eu ficara ajoelhada sobre o sangue que vertia de dentro de mim. Ermelinda retirara até a mais ínfima partícula da minha vida coagulada neste chão frio. Sinto-me – finalmente – perdoada de todos os pecados do mundo. A fiel Ermelinda apagou todas as provas da guerra sanguinolenta travada dentro de mim. Amém! Amém!
Passei dois dias com a tela no cavalete, no canto da sala. Precisava fazer gotejar ali, naquele espaço antes frio e indiferente, todo meu sangue derramado na doação involuntária ao nada. Agora, com ajuda de Ermelinda, perfuro a parede do hall de entrada, onde meu sangue permanecerá – eternamente? – borbulhando. Para quem entrar aqui saber que há sangue a jorrar – dentro e fora de mim...
“Por ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar
o abismo de que sou feita.” (Clarice Lispector)
Um final de dia insosso, como o é o outono, em todos os seus lânguidos dias e noites. Restam apenas o fragor do verão e o prenúncio do frio que traz o inverno. Em passos lentos, dirijo-me ao banheiro, como quem carrega poucas roupas numa valise, procurando um só vagão na estação de trem.
Não havia planejado, mas desejo agora imergir em água morna. O desejo de tornar-me liquefeita toma conta de mim. Com certa violência – eu, que detenho em mim, gestos imperceptíveis -, começo a encher a banheira de água límpida, translúcida, vaporizando o azulejo frio e rijo do banheiro.
Ouvindo o barulho da água que jorra na banheira ainda fria, tiro do meu corpo, o vestido simples que cobriu-me do meu dia já vivido – passado. Na calcinha, uma fraca nódoa vermelha. Detenho-me na água viva que jorra, na qual banharei minha vida.
Nua, diante do espelho que circunda a banheira, deixo-me inundar pelo sentimento mais humano que prevalece: piedade. Enxergando além do corpo, com a largueza que o vapor da banheira me dá, penso nas tantas vidas vividas por este só corpo só. E é pelo espelho que vejo cair, timidamente, uma gota vermelha. E mais outra.
Quando baixo o olhar, agora rendido pela realidade, que – dominadora – se sobressai, o que vejo é um filete vermelho a escorrer na minha coxa direita. Sangue. Do meu corpo, desliza um tênue fio de navalha cortante. O mesmo sangue que escorre dentro do meu corpo, que se perde em veias, vasos, artérias, brota agora para fora de mim, como se não houvesse mais espaço lá dentro para tanta vida vermelha.
Aos poucos, o filete se alarga, e já não mais escorre somente pela coxa direita. Busca outros caminhos na coxa esquerda. E o que vejo agora é minhas pernas banharem-se de um vermelho vivo, viscoso. Meus olhos rendem-se ao vermelho cintilante, e também eu inundo-me da vida que verte de dentro de mim. No tapete, uma gota de sangue sobrepõe à outra. E mais outra.
Nada mais sinto. Neste instante único, esfacelo-me em gotículas de glóbulos brancos e vermelhos, que abandonam meu corpo íntimo, entregando-se ao primeiro capacho que as acolhe. Gota a gota.
Lentamente, uma hemorragia caudalosa se forma junto aos meus pés. Enquanto implora o que ainda não entendo, mais e mais sangue jorra de dentro de mim. Já não são gotas que juntam-se umas às outras. Rompem-se todas as comportas, e não há outro jeito, senão aceitar silenciosamente o correr das águas do rio, que retornam finalmente ao leito de origem – o chão frio, agora coagulado.
Água pura vem unir-se à pequena e presente poça de sangue. Detenho-me a olhar minuciosamente a água que tenta lavar o vermelho que pinta o azulejo de vida. Mas nem o insistente líquido transparente retira o brilho sanguinolento do chão onde se aloja. Só assim percebo que, como eu, a banheira transborda, dando passagem à água, que, como meu sangue, também é vida. Enquanto desligo a torneira, dois tipos de vidas diferentes – duas composições químicas provindas da mesma natureza – disputam espaço no azulejo inerte, fundindo-se num vermelho ainda mais líquido.
Penso. E o que penso agora é que a vida brota de dentro de mim, num só impulso desesperado, desesperador. Mas não me desespero. E ainda penso. Enquanto o fio da navalha liquefaz de vermelho o meu corpo.
Será isso o que chamam de parto? Se – finalmente – estou parindo, onde está o corpo fetal? Será que vou parir um feto coagulado no azulejo sempre inerte? Será que o coágulo – meu filho – dará vida ao azulejo?
Por que um filho – nunca por mim desejado? Estarei parindo o sonho de tantas mulheres? Por que eu – logo eu -, que nunca desejei ter um só filho? Por isso estou parindo assim: em coágulos que coagulam outros coágulos?
Será isso um aborto natural? A revolta de um filho contra a própria mãe, que nada fez para tê-lo, ou detê-lo? Que jamais imaginou desejá-lo? Que dizer a este filho-sangue, que se recusa a transformar-se carne da minha carne, neste ato insano de doação ao nada? Serei eu o nada a quem este coágulo-filho se doa pungente, num só gemido escarlate?
E se estou a parir outro Messias, outro Salvador? Mas nem me chamo Maria. E também não sou santa. Não saberia sofrer a dor de mãe, aos pés da grande cruz. Oh, Pai, afasta de mim este cálice, porque não saberei beber, num só gole, este sangue que continua a sair de dentro de mim.
“E erguendo a taça de vinho, Ele disse: Eis aqui o meu sangue”. O que jorra de dentro para fora de mim é vinho? Vinho que agora azeda abandonado no azulejo? Terei plantações de uva dentro de mim – cada vaso, uma semente? Parreiras imensas, infindas, que desfolham no outono? Serão as folhas ressecadas que agora – liquefeitas e avermelhadas – tingem minhas pernas, meus pés, até o azulejo que não é meu?
Mas ainda sinto dentro de mim, sangue a correr nas veias. Cada vez mais célere, como a multiplicar-se loucamente, na vã tentativa de compensar a falta das folhas secas, que continuam a cair, a inundar de vermelho os meus olhos.
“O meu sangue ferve por você”. É a música que a memória me traz. Cada vez mais presente aquele dia em que resolvi caminhar entre os barracos no morro. Era essa música que saía de um rádio à pilha, que escorava a porta aberta da casa da lavadeira, que, assoviando, estendia brancos lençóis ao vento. Nada mais lembro.
O sangue que escorre de mim não é fervente. Nem parece morno. Insólito. Desliza sem pressa nas minhas pernas, que às vezes estremecem. Se pelo menos o sangue fervesse, eu sentiria minhas pernas protegidas. Quem sabe até me banhasse no vermelho que escorre, buscando sentir-me tão liquefeita – o próprio sangue -, como jamais me senti na água pura e morna da banheira.
Sinto-me impelida à auto-comiseração. O sangue que até agora viveu em mim quer doar-se por inteiro – ao nada. E já não sei se, nesta doação involuntária, restará sequer uma gota de vida vermelha em mim.
Será que isso está acontecendo, por que nunca fiz sequer uma mísera doação? Será que meu sangue acumulou-se em tempo cronometrado, para, num só e decidido ímpeto, esvair-se em doação desmedida, até a última gota?
Se em mim não restar um só filete de sangue a rastejar nas veias? Serei eu a única pessoa a viver sem vida? Com certeza, tomando conhecimento do meu estranho caso de doação ao nada, cientistas me farão de cobaia em suas experimentações cada vez mais absurdas. Como absurda seria a minha vida sem sangue. Quem sabe até minhas veias recebessem doação de sangue de barata. Porque só as baratas sabem doar-se à morte, ao nada. E ainda procriam, multiplicam-se. Talvez seja por isso que barata não tenha sangue. Irei me tornar uma barata? Não. Prefiro a borboleta, voltando sempre à sua crisálida. Borboleta não tem sangue? Mas tem asas.
De dentro para fora de mim, acontece um assassinato. E eu inerte, e eu pálida, e eu pintada de vermelho insólito, como o próprio azulejo frio, indiferente. Dentro de mim, alguma coisa mata uma outra coisa que jorra sangue para fora de mim. Será um sinal? Um pedido de socorro? Mesmo que decifrado o grande enigma, quem ouviria meu pedido de socorro? Estou no vigésimo terceiro andar deste prédio emudecido. Nem que se configure a total doação involuntária – até a última gota deste sangue que coagula -, nem assim um só glóbulo vermelho chegaria à entrada desse edifício.
E se eu embalasse este sangue coagulado, e arremessasse o pequeno pacote improvisado pela janela do banheiro? Será que chegaria até lá embaixo? Será que alguém – um só alguém – se deteria, por curiosidade, ou simples compaixão, na vida que continua a brotar de dentro de mim?
Resignada e compadecida, ajoelho-me, nua (rendida), na poça pegajosa de sangue. Nada mais penso. E o que sinto é uma extrema emoção, nunca sentida por meus sentidos – todos concentrados neste instante que escorre no sangue, cada vez mais vivo, borbulhante até. Pela primeira e única vez, estou ajoelhada em cima da minha vida mais secreta, mais íntima. O que sinto nas minhas pernas e nos meus pés é o sangue que corria lá dentro, e agora se doa ao nada.
E o que sinto mais forte é que agora estou dividida: parte de mim corre entre vasos, artérias e veias, e a outra parte coagula no chão estéril, silencioso. E ainda assim vivo. E ainda o vermelho toma conta das minhas pernas, dos meus pés, colorindo até o azulejo antigo. Por um momento, fecho os olhos, e deixo-me invadir pela tontura condescendente.
Braços largados até o chão, sinto meus pulsos enfraquecerem. Será o fim? Fim de quê? Se a vida ainda brota de dentro de mim, e torna cintilante o coágulo que meus olhos – agora abertos – vislumbram. Na lápide derradeira, ficaria registrado, entre heras e ervas daninhas: Aqui jaz uma criatura que doou a vida ao nada, até a última gota. E outra coisa não restaria, porque já teriam limpado o coágulo seco deste banheiro.
Mas se de fato for a morte, de que me valeu a vida? De que valeu o escorrer do sangue pelas minhas pernas? De que valeu eu sentir o vermelho escarlate tingindo meu corpo – por dentro e por fora?
Nem sequer um filho? Mas nunca desejei parir um filho. Mas se eu desejar algum dia? De que me vale agora o fim, este sangue que coagula entre minhas pernas?
E se um dia, complacente, eu aceitar ser Maria? E quiser parir o sangue salvador? E se eu juntar todas as lágrimas e dores, para chorar aos pés da grande cruz?
E se eu decidir tomar, num impetuoso e demorado gole, de uma só vez, todo este vinho que o dentro de mim despeja para fora? E se, ainda assim, eu sentir o doce do coágulo que doa a vida ao nada? E se?...
E se eu me recusar a seguir esta doação inteira ao nada? E se eu quiser estancar este sangue que teima em sair, como lágrima incontida? E se o meu medo coagular agora – neste instante – até a última gota de sangue que resta ainda dentro de mim?
Quando criança, ouvi a benzedeira dizer, na sua sabedoria plena, que deve-se colocar compressa de açúcar, para se estancar o sangue. Quero adoçar meu sangue vermelho – não este que já está fora, que já não é mais meu. Quero tornar doce o sangue que faz meu corpo todo estremecer à sua passagem.
Se meu sangue é a minha vida, minha vida escorre agora borbulhante de benzeduras, simpatias, mandingas. Ouço as novenas das beatas fiéis à Nossa Senhora da Boa Morte.
Já não penso, porque o sangue que ainda vagueia dentro de mim transita tão-somente no meu sentir. Sinto dificuldade para respirar. E já nem sinto as veias pulsarem – sequer a aorta. O que sinto, mais que isso, é uma câimbra febril nas pernas e nos pés. Uma febre lancinante, viva. Enquanto o vermelho se faz agora em vagarosos coágulos, que obedecem a ordem da cadeia que impera, coagulando o chão – que nem mais azulejo é -, para receber a vida que se esvai.
Sem nenhum pensar, olho para a poça sanguinolenta. Minha boca está seca, sedenta do sangue que já não é mais meu. Num impulso de misericórdia – semelhante àquele da mulher que roubou três pãezinhos na padaria -, também eu roubo um coágulo da perna que continua sendo minha.
O sabor que me chega à língua é agridoce, tal qual minha vida. Pela primeira e única vez, degusto o sabor insólito da minha própria vida. Saber não é sentir. E para sentir, é preciso não saber. Por isso, nada sei da minha vida. Sinto.
Que seja esta a última gota do sangue que já foi meu. Demoro-me em degustar o agridoce de que é feito o dentro de mim. Voltando o olhar à poça no chão, sinto que me embriaguei com o meu próprio vinho, engolindo toda a vida que ainda vivia entre os coágulos agora secos.
E agora meu paladar jamais voltará a ser o mesmo. Porque antes de degustar o vinho de dentro de mim, pensava eu que sabia, que conhecia sabores. Pobre consciência, que para tudo busca definição.
O sabor da laranja não está na laranja. Porque o verdadeiro sabor da fruta é o que ela carrega no broto da flor, que se doa em fruto. O sabor é sempre genuíno – como o sangue que ainda goteja insistente entre minhas pernas amortecidas.
Aceito a doação involuntária – desde que não seja para o nada. Quero doar-me em semente, depois tronco, galhos, folhas, flor, até o bendito fruto sabor genuíno. Que meu sangue dividido – o que goteja fora de mim, e aquele que borbulha lá dentro – regue a semente do que será o sabor genuíno de todas as coisas. Porque eu experimentei, sem vacilar, o cálice do meu próprio vinho, e tomei-o à última gota vermelha.
E nada mais poderá ser como antes. Porque o meu medo foi destruído pelos coágulos sanguinolentos que continuam a coagularem-se entre si. O que se forma é uma massa espessa no chão, aparentemente dura, que se desfaz com a primeira gotícula vermelha que segue o curso natural: de dentro para fora de mim.
Meu corpo tremeluz agora na penumbra do banheiro. E a auréola da poça coagulada começa a escurecer. Já não cintila mais o sangue borbulhante. Não há mais vida? Vida existe ainda – dentro de mim. Mas fora de mim, meu corpo padece, como padecem todos os corpos que se doam desmedidamente. E já não há mais força para soerguer-me. E já nem quero mais levantar. O sangue a escorrer lentamente. Ainda.
Quiçá meu último pensamento humano: e se tudo isso for apenas um sonho, um mísero sonho de um corpo cansado? Não é um sonho. Porque o agridoce toma conta da minha boca, que chega a arder em saliva. Enquanto o dentro de mim se esvazia.
Sentir minha vida por um fio de navalha faz-me concentrar na passagem de cada glóbulo, dentro para fora de mim. Não há revolta. Nem aceitação. A desistência simples – sem artifícios, ou heroísmo – a tudo assiste. Calada. Tudo sente. E consente.
E também não há dor – porque nenhuma parte do meu corpo foi decepada. E meu sangue não esguicha, em sinal de emergência. Agora, somente um tênue fio vermelho perpassa a linha quase invisível que separa o dentro do fora de mim.
Minha cabeça cambaleia à frente. Sinto que não preciso mais manter os olhos abertos. É o meu corpo que sangra, que sente. E a vida a gotejar humildemente. Sem nenhuma pressa, ou prece.
Cada vez mais vazia de sangue, uma lembrança vaga me chega: Quando criança, eu estava sempre a aventurar-me em bicicletas, árvores enormes. De quando em quando, um arranhão aqui, outro ali. Eu não chorava. Podendo alcançar o ferimento com a língua, ficava a lamber o meu sangue – este mesmo sangue que agora sai de mim -, até estancar a ferida.
Hoje, são tantas feridas, que eu não teria saliva para lambê-las todas. Até porque o sangue que deixa de ser meu, neste instante, não brota de nenhuma cicatriz mal curada. Pelo contrário. Este sangue que coagula ao sair de mim provém da passagem mais natural, pela qual a maioria de nós nasce para a vida que está fora.
Lentamente, rastejo agora em direção do espaço vago que existe entre a banheira e o vaso sanitário. Desprovida de força humana, rastejo, deslizo sobre o sangue coagulado no piso agora morno. E meu esforço sanguinário deixa rastros vermelhos, de novo cintilantes. Pouco resta nas comportas dilaceradas, que persistem em gotejar todo o vermelho da vida que se esvai. Para onde?...
Em estado de torpor, sinto minha cabeça pesar. Pesa com tantas palavras sem sentido. E já nem sinto o pardo filete de sangue que dá seguimento à saga da desistência mórbida.
Cada vez mais palavras desconexas faz minha cabeça pender até a tampa do vaso sanitário. Chuva. Campo. Sol. Dia nublado. Branca nuvem. Folha seca. Carrossel. Pipa. Mudez. Abraço. Frio. Floresta. Mar. Noite. Solidão.
Em minha semi-consciência, as palavras se esvaem como o sangue de dentro de mim. Todas coagulando, uma a uma. E restam sílabas, letras, e depois somente hieróglifos que já não podem ser desvendados.
Silêncio. Um zunido ensurdecedor arrebenta a consciência que ainda resta. Desfaleço.
... Desperto numa cama leve, onde o colchão, o travesseiro e os lençóis são de uma leveza que combina com a brancura do ambiente. Reconheço que estou num hospital. Como vim parar aqui? Há quanto tempo estou internada? As perguntas insistentes fazem minha cabeça – agora leve – latejar.
Tento mover o corpo, para quem sabe sentir o sangue que ainda vive dentro de mim. Sinto. Só não posso mexer o braço esquerdo, preso por uma agulha até o suporte que goteja líquido vermelho, viscoso, plasma sem brilho. Será aquele mesmo sangue, coagulado no azulejo, que já foi meu, e agora retorna para dentro de mim?
Sentindo dormência no braço direito, com esforço humano, busco a campainha. Aperto ininterruptas vezes, até surgir na porta branca, uma moça sorridente, toda vestida de branco, com os cabelos pretos escondidos em alvo lenço.
Procuro minha voz, e depois palavras conexas – que atendam aos meus sentidos. Nenhum som audível. Somente eu escuto meus pensamentos, onde as perguntas continuam alojadas. A enfermeira – que assim se parece – tenta me tranqüilizar. Pede para eu não ficar nervosa, que “está tudo bem agora”.
Tudo bem? Que tudo está bem? E o que é este bem em tudo? Você escuta meus pensamentos, moça? Onde estou? Como vim parar aqui? Com certeza, não joguei-me do vigésimo terceiro andar. Se me lembro, havia uma poça de sangue coagulado no piso, que já não era mais tão frio. Meu corpo estava lá. Você lê meus pensamentos, enfermeira? Então, responda-me: O que fizeram com o sangue que, ao sair de dentro de mim, já não era mais meu? Responda. Responda.
Entre minhas perguntas sem respostas, adormeço.
Quando acordo, o que enxergo é uma pele que, de tão morena, parece negra. E nesta pele, dois olhos ávidos, um nariz franzido, e uma boca larga, com brancos dentes a combinarem com a brancura dos lençóis, da parede do quarto. É Ermelinda, a empregada fiel – mais de dez anos de convivência em casa. É ela quem vai me contar tudo o que preciso saber. Se ela está aqui, é por saber de tudo o que aconteceu comigo, depois que eu deixei de saber de mim, do meu sangue que escorria, e agora não sinto mais escorrer.
Ermelinda continua parada – sorridente – diante de mim. Nada fala. Parece estar em oração, enquanto não tira – um só segundo – os olhos de mim. Balbucia alguma coisa, que a mim chega ininteligível, e depois ergue os braços, olha para o teto branco, e diz: Amém! Amém! No meu mutismo incompreensível, repito com ela: Amém! Amém!
O que se segue é um gesto vão da minha parte. Tento, com esforço humano, erguer o antebraço direito em direção de Ermelinda, que agora se aproxima de mim. Ela fala baixo, pausadamente (agora sei por que há tanto tempo ela trabalha comigo).
Com Ermelinda por perto, nada preciso falar. Ela sabe. Ela intui. Ela sente. E é esta sabedoria que agora responde a todas as perguntas latejantes da minha cabeça. Começa dizendo para eu não exigir muito da mente, que também enfraquecera com a hemorragia. E Ermelinda me conta que, naquele domingo de folga, depois de lavar as louças do almoço, ela despediu-se de mim, e foi visitar o pai velhinho, que vive num asilo. Ainda presa à minha mudez, lembro o dia que nós duas fomos visitá-lo. E dizer que ainda guardo o aperto daquela mão emagrecida, cheia de grossas veias de sangue.
E Ermelinda verbaliza o que eu já havia deduzido: ao entardecer, logo após a missa (“Rezei tanto pela senhora!”), ela retornou à casa. E o que encontrou foram poças de sangue, na escuridão do banheiro, e um corpo nu, pálido, mais inerte que o próprio azulejo que ela limpa com tanto zelo.
Lentamente, minha mão – agora tão alva quanto o lençol que me cobre – busca as mãos calejadas da velha e fiel Ermelinda. Dos meus olhos, grossas lágrimas a fitá-la. E também Ermelinda emudece, deixando escorrerem, quase desapercebidas, lágrimas dos alvos olhos.
Uma semana depois, já estou em casa. E silenciosa, diante da porta aberta do banheiro, fico a tentar rememorar tudo o que aconteceu naquele dia. A suave fragrância de eucalipto comprova a dedicação de Ermelinda, que, atrás de mim, conta que passou meio dia ajoelhada ali, naquele piso, para retirar até o menor resquício – indelével – de todo aquele sangue coagulado. Abracei silenciosamente a velha companheira, lembrando que também eu ficara ajoelhada sobre o sangue que vertia de dentro de mim. Ermelinda retirara até a mais ínfima partícula da minha vida coagulada neste chão frio. Sinto-me – finalmente – perdoada de todos os pecados do mundo. A fiel Ermelinda apagou todas as provas da guerra sanguinolenta travada dentro de mim. Amém! Amém!
Passei dois dias com a tela no cavalete, no canto da sala. Precisava fazer gotejar ali, naquele espaço antes frio e indiferente, todo meu sangue derramado na doação involuntária ao nada. Agora, com ajuda de Ermelinda, perfuro a parede do hall de entrada, onde meu sangue permanecerá – eternamente? – borbulhando. Para quem entrar aqui saber que há sangue a jorrar – dentro e fora de mim...
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