segunda-feira, 29 de março de 2010

Noite suja

Dora Brisa

Um estampido só. Oco. Mudo. Escuro. Lentamente, ele passa a mão na testa que transpira. De olhos fechados, sente o suor grosso na ponta dos dedos. Por alguns segundos, o estampido ainda ecoa na cabeça dele, agora vazia.

- Vô, quero fazer cocô.

- Não se diz “cocô”.

- Mas minha mãe...

- Ela sabe pouco, coitada.

- Como se diz, então? Cagar?

- Não. Se diz “fazer uma obra”, porque é uma obra – diferente

de todas as outras...

- Entendi. Mas continuo com vontade...

- Faz tua obra atrás daquela árvore, e depois seguimos para o rio...

Os olhos dele permanecem cerrados. Mas não sente dor.

- Fessora, posso ir ao banheiro?

- Vocês não conseguem nem ser originais. Basta ficarem

ajoelhados no milho, que já pensam em fugir para o banheiro...

- Mas...

- Nada de mas, menino... Fica quieto aí,

senão dobro o castigo...

- É que tô apertado – ainda fala, enquanto

a urina escorre no chão do canto da sala.

Silêncio absoluto. Mecanicamente, a mão dele ainda busca a testa. O suor espesso escorre agora pelas laterais da fisionomia impassível.

- Agora que sua mãe morreu, me diga: O que

você quer fazer?

- Pai, quero que o senhor me interne no Seminário.

- Você – seminarista? Meu único filho – padre? Por que

isso agora, menino?

- Porque o padre disse na missa que minha mãe foi pro céu... Eu

quero ficar perto dela... Padre fala até com Deus...

A cabeça dele lateja um pouco. A mão descansa rendida sobre o peito.

- As suas coisas estão aqui. Vá para o enterro

de seu pai... Se quiser, volte depois, para ser ordenado...

- Não voltarei, mas agradeço-lhe assim mesmo,

senhor diretor. (A porta pesada de madeira maciça

fecha-se para nunca mais se abrir.)

Por um momento, sente amargor na boca cheia de saliva. Não quer cuspir. Engole resignadamente.

- Nesta pensão, só se entrega chave de quarto, com

pagamento adiantado.

- Posso pagar dois meses adiantado. É o tempo que preciso pra

arranjar um emprego...

- Estou precisando de garçom no restaurante. O salário

é pequeno, mas pode ganhar gorjeta...

- Aceito. Claro. Até porque quero continuar estudando...

Involuntariamente, os olhos dele lacrimejam. Com lenta ternura, suspende a mão, que recolhe as pesadas lágrimas.

- Confessa aqui para o teu melhor amigo: Você nunca

comeu uma mulher, por que é viado? Pode contar. Não

discrimino...

- Em vez de viado, sou é maluco

mesmo... Você pode não acreditar, mas quero

fazer amor, não só sexo... Você entende isso?...

- Isso é loucura... Mas sorte minha, porque

você deixa mais mulher pra mim...

Quando reergue a mão ao rosto, sente, de olhos ainda fechados, o suor a persistir, cada vez mais grosso, pesado. A cabeça leve não ecoa mais estampido algum.

- Por que você vai embora pra Capital? Pensei que

nós dois...

- Vou estudar... Você sabe que quero ser ator... Por isso,

preciso ir... Mas volto pra buscar você,

Carolina, e aí nos casamos... Você me espera?...

- Espero, por que te amo... Mas dizem que a Capital está

cheia de mulheres bonitas, com silicone...

- Não trairei você, minha querida... Escreverei sempre... Adeus...

(Um último beijo amargo, na porta do ônibus.)

O suor na testa faz deslizarem imagens distorcidas. Na cabeça dele, o olhar moribundo da mãe, as discretas lágrimas do pai. Se alguma força ainda lhe restasse, só diria: Sinto frio.

“Minha doce Carolina,

Movido pela saudade que me dilacera, escrevo a segunda carta

para você, neste dia tedioso. Espero que seu coração se aqueça com as palavras que a minha

alma aqui registra.

Como já lhe escrevi anteriormente, continuo a trabalhar como

garçom, naquele restaurante movimentado, cheio de celebridades,

que às vezes me deixam polpudas gorjetas. O curso de teatro

continua, mas recusei a peça que me propuseram, por ainda me

achar incapacitado.

Tão logo tenha condições, volto para buscar você e os nossos sonhos,

quando então nos casaremos. Me espere.

Sempre seu,

Alfredo”

Tocando de leve a testa, ele sente que o suor que ainda escorre engrossa cada vez mais. Desliza a mão novamente até o peito.

“Não me escreva mais. Estou de casamento marcado. Adeus.”

(Rasga o telegrama, o sonho, a alma.)

O gelo que agora sente na cabeça faz-lhe recordar o beijo – derradeiro – da mãe na testa dele, pouco antes de morrer. Tenta mover os lábios, que não obedecem mais.

– Vamos ensaiar texto de Plínio Marcos. Por que você não

vem com a gente?

– Preciso fazer alguma coisa com a minha vida,

antes que resolva me matar...

– Nem fale uma coisa dessa. Amanhã, neste horário,

vem para o ensaio. Plínio Marcos tem um papel pra você...

– Venho sim... Chega de tanto fugir do palco, que é a minha vida...

Um torpor faz o corpo inteiro dele estremecer. Uma ácida gosma escorre pelo canto da boca, enquanto o olhar permanece escuro – impassível.

– A cena precisa ser crua – um verdadeiro soco no

estômago. - grita o diretor – Marcação. Luzes. Repetindo!

A leve tontura faz com que ele pressinta agora o corpo flutuar. Sente a camisa empapando de grosso suor.

– Não, não e não. - esbraveja o diretor – Vocês não podem esquecer dos olhos e do corpo, que fala mais que o texto.

Tonto, ainda tenta reagir. A mão repousa no peito, em completa desobediência. Dos olhos, pesadas lágrimas rendem-se ao espesso suor que faz brilhar o rosto lívido.

É preciso colocar medo nos olhos. - ordena o diretor,

respirando fundo – Marcelo, segura mais firme esta arma. Alfredo, olhos arregalados de

pavor. Podem recomeçar a partir daí!...

O que ele sente agora é o rosto encharcado de uma pasta que encobre os poros. Se ainda pudesse racionalizar alguma coisa, saberia que é sangue vivo a escorrer, misturando-se com suor frio.

- Alfredo, nosso Al Pacino brasileiro – brinca

o diretor -, depois do tiro, antes de cair, você

ainda fala através do olhar cravado

no Marcelo. Podem reiniciar a cena,

que até parece real...

De repente, um zunido ensurdecedor faz sacudir a cabeça dele. O corpo, estirado no asfalto, estremece, involuntariamente, com o frio que traz o estampido de volta, nesta noite suja de sangue. A rua permanece sombria, silenciosa. O estampido da bala perdida só ecoa ainda na cabeça dele, que nem chegou conhecer Al Pacino. Fim de cena.

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