sexta-feira, 30 de julho de 2010

Pela janela

Dora Brisa
(Para Drummond, companhia a qualquer hora)

Todas as paredes do pequeno apartamento escutam Liszt, em Consolation in E Major. O mormaço insiste em tomar conta das frestas das poucas janelas entreabertas. É tarde de sábado.
Somente na sala, a janela exibe cortinas arregaçadas. Lá fora, o silêncio é tanto, que Liszt chega a pairar nos ouvidos sensíveis. Como se os demais sentidos estivessem adormecidos.
No canto mais próximo à janela, há anos repousa uma poltrona. Fiel ao seu dono, permanece ali, convidando-o ao repouso. É o que ele faz agora, com seus óculos cansados de enxergar a vida, e um livro aberto, suavemente depositado nas mãos.
Por um momento, chega a esquecer que hoje é sábado. O livro que lê - Kafka - o distancia da realidade que nunca foi dele. Nem hesita, rendendo-se à leitura, ao mormaço. No apartamento, Liszt e Kafka mantêm diálogo de convivência antiga.
Num único instante, toda a paisagem (incluindo o silêncio de Kafka e Liszt) é quebrada. Pior que uma tempestade, uma buzina, ou uma briga de casal lá fora, a campainha soa estridente, desesperada. Como despertando de um (longo e pesado) sono, lentamente ele fecha os olhos, num mínimo gesto de retomada de consciência. Com a insistência da campainha, em sinal de derrota, repousa Kafka na cadeira de balanço, enquanto procura em vão o par de chinelos.
Numa atitude quase involuntária, dirige-se à porta, surpreendendo o par de olhos desesperados que o aguarda. A fisionomia do homem é cansada, mas não o reconhece. Nem poderia. O homem vem de longe, fala da vida, da longa viagem que fez, há dezoito meses, para estar naquela cidade.
A circunstância, por mais inusitada que pareça, é assim mesmo que se desenrola. Porta aberta, um homem com a barba por fazer, quase maltrapilho, adentra subitamente no apartamento. Fala muito, gesticula mais ainda, enquanto os olhos escamoteiam rios de lágrimas.
Atônito, o já velho dono do apartamento, da poltrona, esquece Liszt, Kafka, e todos seus fiéis companheiros na estante. No olhar, ressurge o sentimento mais puro que tem em relação à humanidade: piedade. Aos poucos, resgata, mais uma vez, todos os sentidos, concentrando atenção no desconhecido.
Enquanto aponta-lhe a poltrona, o estranho repete que veio do interior, com a mulher com quem recém casara. Muitos sonhos, nenhum projeto de vida. "Enquanto eu buscava serviço decente, ela se arranjava numa casa de tolerância", desabafa o coitado. O confidente não esboça qualquer reação, permitindo que o homem continue a falar da miséria, da morte da mãe, da solidão.
Após esses minutos de relato de uma vida inteira, o pobre homem respira fundo, e se cala. Em gesto menos surpreendente do que havia feito na porta, confessa que tem um só pedido a fazer. O velho espectador, já sentindo-se cúmplice, apenas acena com a cabeça afirmativamente. Outro silêncio toma conta da sala, maior que o silêncio de Liszt e Kafka.
Com o olhar concentrado na janela, o homem pede para pular dali. "Não tenho para onde ir, nem quero ir ou ficar em lugar algum. Só preciso de uma passagem", quase implora. O confidente está impassível, diante da janela.
Em segundos, com os olhos vidrados na janela, o homem joga a vida, as lembranças, o desespero...
É final de tarde. Sábado. Como sempre acontece, o velho acorda na poltrona. Os óculos adormecem em cima do livro prestes a cair. Lá fora, buzinas ensurdecem Liszt, que ainda insiste em Consolation in E Major.
De repente, a consciência. Volta o olhar à janela, ainda escancarada, como a perguntar alguma coisa. Os sons lá de fora invadem o ambiente. Num ímpeto, fecha a janela, repousa Kafka na cadeira de balanço.
Anoitece. A campainha não toca. E todas as paredes continuam a escutar Liszt.

Post Scriptum

Dora Brisa

Não me falem de
Balas e homens perdidos,
Terremotos,
Assaltos,
Infância violentada.

Já não quero
Saber de mais nada.

Não tenho coração?
Não, não mais coração,
Nem corpo.
Basta, vida!
Estou morto.

Na minha voz:

terça-feira, 27 de julho de 2010

Meio assim

Dora Brisa

Você sabe,
Sou assim:
Alma mutilada,
Meio errante,
Tateando o nada,
Sem luz adiante.

Você sabe,
Sou assim:
Alma insegura,
Meio melancólica,
Fugindo da amargura
De uma vida lógica.

Você sabe,
Sou assim:
Alma desnorteada,
Meio incompreensível,
Tecendo uma estrada
Louca, impossível.

Você sabe,
Sou assim:
Alma que ignora onde pisa,
Sem paciência com manual.
Às vezes, brisa,
Nem sempre vendaval.

Você sabe,
Sou assim:
Alma desumana,
Meio tresloucada,
Às vezes profana,
Sempre desregrada.

Você sabe,
Sou assim:
Alma suicida,
Meio inacabada,
Matando tempo na vida,
Sem esperança em nada.

Você sabe,
Sou assim:
Alma incoerente,
Meio esquisita.
A verdade, desmente.
A mentira, evita.

Você sabe,
Sou assim:
Alma em pedaço,
Meio incerta,
Tropeçando a cada passo,
Fugindo de toda porta aberta.

Você sabe,
Sou assim:
Alma imunda,
Meio anormal,
Precipitadamente profunda,
Descaradamente superficial.

Você sabe,
Sou meio isso,
Meio aquilo,
Sou assim:
Meio lixo.
Cuida de mim.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

A virgem do mar

Dora Brisa

Rosália tem uma beleza natural, nos seus quinze anos. Nada extraordinária. Cabelos castanhos e longos, penteados pelo vento. Pele queimada pelo sal e pelo sol. Como todas as filhas dos pescadores, aprendeu a ler e escrever com o irmão mais velho, e, seguindo a tradição, ensinou o mesmo ao irmão mais novo.
Mas pouco – ou quase nada – há que se ler nesta praia distante. Tampouco há o que se escrever a respeito da vida simples que se leva aqui. A rotina não chega a entediar, porque os moradores não conhecem outra vida. Todos nasceram aqui nesta praia, e por aqui foram crescendo, procriando, vivendo, morrendo.
Os pescadores mais velhos ainda guardam na memória as histórias contadas por seus pais e avós, sobre os primeiros habitantes desta praia. Diziam eles que há muito, muito tempo mesmo, dezenas de pescadores, depois de enfrentarem a maior tempestade da história, atracaram por aqui. Bem ali, atrás dos rochedos.
Como tiveram de permanecer dias no aguardo do bom tempo, exploraram o lugar. Diante da farta vegetação, resolveram trazer para cá suas famílias. Durante dias, meses, mulheres e crianças eram trazidas, enquanto os homens se ocupavam da pesca e da construção dos barracos.
Quando todas as famílias já estavam confortavelmente alojadas, um fato inusitado começou a ocorrer. A cada dia, um pescador se jogava em alto mar. O mais estranho era que todos, antes de se suicidarem, com os olhos fixos nas profundezas do mar, gritavam: Iara!... E assim aconteceu, até o último pescador se despedir das viúvas e das crianças, à beira da praia. Quando esse, em alto mar, gritou por Iara, não havia companheiro para ouvi-lo. Dias depois, o mar devolveu o barco às lágrimas da última viúva da praia, que passou a ser chamada Praia do Fascínio.
As mulheres, em luto coletivo, não desistiram da vida. Pelo contrário. Esforçaram-se ainda mais. Criaram seus filhos. Pescaram. Plantaram e colheram. Com o tempo, tiveram a ajuda dos filhos mais velhos, que aprenderam cedo a manejar os barcos, as redes. E assim, novas famílias foram construindo.
Rosália nunca soube dessas histórias. Quando a mãe era viva, a menina ajudava nos afazeres domésticos. Hoje, com a mãe morta, cabe à Rosália, única mulher na família, cuidar do pai e dos cinco irmãos. É o que ela faz agora – três e meia da madrugada. Como todos os dias, Rosália prepara o café do pai e dos irmãos, que vão se lançar ao mar, na busca dos cardumes a serem vendidos na feira da praia mais próxima.
Como em todas as madrugadas, Rosália se despede do pai e dos irmãos, à beira da praia. “O tempo parece que vai continuar nos ajudando” – comenta o pai, enquanto os irmãos entregam o barco de volta ao mar, que os recebe escuro, silencioso. Rosália acena, vendo outros barcos também abrirem sulco no mar.
A menina só pára de acenar, quando o barco da família está longe, tão longe que não consegue mais enxergar. “Que Deus os acompanhe” – grita, seguindo o mesmo ritual ensinado pela mãe, que voltava sempre para casa secando lágrimas no velho avental. Rosália não entendia, mas guardou a lembrança.
A menina não chora. Torce a barra do vestido de chita. Risca com os pés a areia molhada. Volta a olhar o mar – a vastidão, a solidão do mar. Enquanto o dia vai clareando, o mar lava as pernas e os pés de Rosália, com ondas suaves, num espreguiçar profundo.
Curiosidade. Rosália avista ao longe uma garrafa, e corre até lá. A garrafa simples, transparente, está tampada. “Tem um papel dentro dela” – diz em voz alta e ansiosa a menina, que destampa a garrafa. Antes de puxar o pequeno papel, seca as mãos, e lê: “Minha doce Iara, sonhei mais uma vez com tua beleza jovial, e volto para o mar com tua imagem no meu coração”. Rosália aperta o papel contra o peito, e suspira. “Será um apaixonado, que, ao me ver todos os dias na praia, resolveu se declarar assim? – pensa em sobressalto – Mas por que me chama de Iara? Não há menina, moça ou mulher com este nome por toda a praia”.
Voltou para casa pensativa, onde, se ocupando dos serviços domésticos, relia de vez em quando o papel preso ao peito. E sorria. Os olhos de Rosália chegavam a brilhar. Brilho de quem sonha acordada.
Quando a casa voltou a se encher do vozerio do pai e dos irmãos, a menina nem prestava atenção. E eles todos falavam ao mesmo tempo, gesticulando, contando façanhas da pesca do dia. Estavam tão entretidos na balbúrdia que faziam, que nem perceberam o olhar e os gestos perdidos de Rosália, que suspirava pelo amanhecer do dia seguinte. “Quem sabe, o jovem pescador tome coragem, e resolve se atrasar para o trabalho e falar comigo” – pensava, imaginava, coloria fantasias.
A família de Rosália adormeceu com o crepúsculo. Só ela ficou na rede, sem sequer pensar em dormir. Preferiu sonhar acordada. Tanto sonhou, que despertou dos devaneios com o arrastar dos chinelos do velho pescador. A menina salta da rede, enquanto o pai chama os irmãos.
Nunca se viu tanta rapidez no preparo o café da manhã nesta casa. Rosália sorri, e até cantarola alguma coisa baixinho. O pai devolve-lhe o sorriso, e conta seus planos. Acredita que “se a pesca continuar boa, poderemos vender o velho barco, e comprar um maior”. Os irmãos aprovam, num sorriso otimista. Nos seus devaneios, Rosália também sorri.
Tão logo saem da mesa, Rosália, em tom de brincadeira, empurra o irmão mais novo à porta: “Vamos logo à praia, porque o dia será lindo”. Na praia, enquanto a menina corre, rodopia de braços abertos, os irmãos indagam o pai, com seus olhares sonolentos. “Vão se acostumando, porque mulher é assim mesmo. A mãe de vocês era assim também” – responde o velho pescador, sorrindo, enquanto verifica a última rede colocada no barco.
Lá vão, outra vez, os seis súditos do mar, que, antes do amanhecer, já começam a “faxina” no castelo do “grande rei”. Rosália acena, saltita, grita, sorri – tudo ao mesmo tempo.
Quando o barco deles se torna uma concha no oceano, a menina franze a testa, e fica a observar concentrada em volta. Nenhum pescador. As mulheres se dispersaram com as crianças, provavelmente voltando a dormir em suas redes. Só Rosália ficou a olhar o mar, suspirando. Mais uma vez, as primeiras ondas chegam de mansinho aos pés da menina, que avista, ao longe, outra garrafa, tão comum quanto aquela de ontem.
Ofegante, Rosália corre. A garrafa tampada é lavada pelas ondas. Intempestivamente, destampa a garrafa, na busca de outra carta. Com o peito arfando, a menina lê: “Minha doce Iara, fico a sonhar contigo nos meus braços. Chego a imaginar teu canto que fascina. Todos os dias da minha vida, entrego a ti neste mar”.
Num suspiro profundo, Rosália pensa: “Meu canto? Mas eu não sei cantar quase nada. Será que ele me ouviu cantarolar esta manhã?” Com a carta contra o peito, os pés enterrados na areia molhada, a menina senta numa rocha. Olhando para o mar, ela canta uma canção antiga, de alguém que se despediu de um pescador que nunca mais voltou. A composição é triste, como o olhar de Rosália perdido no mar. “Minha mãe cantava melhor – fala vagamente -, mas prometo que vou ensaiar todos os dias, para que meu canto te fascine além do teu sonho, galante pescador”.
Os dias são todos iguais, nesta praia lânguida: um dia de pesca, o outro também. Rosália com o peito cheio de declarações que chegam sempre ao amanhecer, numa garrafa embalada pelas ondas do poderoso mar. Todos os dias também, enquanto o pai e os irmãos estão a pescar, a menina senta ao pé do rochedo e canta, canta com a alma melancólica de saudade. Ninguém a vê. Ninguém mais a escuta cantar, senão o mar silencioso, refletindo o amanhecer.
Num desses dias mornos na praia, depois de acenar para o pai e os irmãos no mar, Rosália procura a garrafa com outra mensagem. Não demora muito, corre em direção do rochedo. A garrafa está quebrada. Foi estilhaçada pelas ondas bravias contra o rochedo. “A carta” – grita Rosália, atirando-se à onda que ameaça engolir o pedaço de papel. Chorando, a menina retira o papel da água salgada. Com cuidado, abre a mensagem sobre os joelhos, sentada na areia seca da praia. Os primeiros raios de sol pairam sobre a folha e os olhos molhados de Rosália. O poema parece também encharcado de lágrimas:

“Minha doce Iara,

Sou teu mar:
Silencioso, profundo,
Protegendo teu navegar
Dos perigos deste mundo...
Nas minhas profundezas,
Escondo teus segredos...
Entre minhas maiores riquezas,
Guardo o baú dos teus medos...
Sou teu mar,
Água morna com teu calor...
Chego em ondas para teu pranto molhar,
E à noite, faço-me reflexo da lua - puro amor...
Estou sempre a te embalar...
Nas minhas águas calmas,
Chegas a sonhar
Com outros mundos, outras almas...
Sou teu mar...
Em noites de tempestade escura,
Te concentras a buscar
Aconchego na direção segura...
Na minha vastidão,
Tua alma se desnuda:
És puro coração
Pulsando na melodia muda...
Sou teu mar...
A ti, presenteio todo meu natural:
Peixes, conchas, até estrelas a encantar
Tua vida previsível, com sabor de sal...
Infinito que pareço,
Diante da tua esperança infantil,
Silencioso, adormeço,
Inteiro, nas tuas mãos, teu servil...
Sou teu mar,
E assim sempre serei...
Tu - barco a me acompanhar...
Eu - tua bússola-, seguirei...”

A menina se enche de suspiros, enquanto lê, relê, à espera que o sol seque por completo o papel. Depois, apertando a carta contra o peito, chora: “Tua doce Iara não agüenta mais tanta espera, meu querido pescador. Me leva contigo na tua vastidão infinita. Sou tua”.
Caminhando à beira da praia ainda solitária, Rosália às vezes ergue o olhar, tentando buscar ao longe a imagem do seu amado pescador. Com a carta ao peito, a menina diz: “Tu és meu mar, e eu, tua sereia”. Com as mãos em concha, movida por um instinto até então desconhecido, Rosália toma a água salgada, fria. Depois, deita junto ao mar, e chama as ondas que salgam seus cabelos, seu corpo todo, sua alma.
Quando levanta, caminha cabisbaixa, silenciosa como o mar, com a sensação de ter se doado inteira – corpo e alma. Olha um instante só para o mar, que já não lhe é mais o mesmo: também se doou inteiro – corpo e alma. Exaustos, menina e mar se distanciam. Ela retorna para casa, com a certeza de ter o mar que a tem. Inteiros.
A volta do pai e dos irmãos não é esperada. Eles chegam um pouco atrasados do que o costume. Estão tristes. O íntimo de Rosália nem percebe. Depois de um silêncio prolongado, o pai diz na mesa: “Hoje, perdemos um companheiro, Rosália. Um jovem pescador abriu os braços, num dos barcos, gritou ‘Iara’, e jogou-se com tamanha força no mar, que não conseguimos achá-lo até agora. Outros pescadores continuam em alto mar procurando-o, mas duvido que localizem o corpo”.
A menina sai correndo em direção à praia. Os irmãos ameaçam ir atrás, mas acabam obedecendo o pai, e permanecem sentados à mesa. “Mulheres são sensíveis assim. Deixem ela chorar sozinha. A mãe de vocês era assim também” – arremata o velho pescador.
Com os olhos encharcados de mar, Rosália busca refúgio junto ao rochedo. Chora baixinho. Olhando o mar, pensa: “Por isso aquele poema, meu pescador, agora meu mar”.
A rotina da pesca faz os dias cada vez mais tranquilos, na Praia do Fascínio. Já nem se fala mais no jovem pescador sem família, que, chamando por ‘Iara’, num gesto de abraço livre, atirou-se ao mar. “Dissolveu-se no mar, para tornar-se o próprio mar para mim, sua doce Iara”, pensa Rosália, quando, todo dia, joga flores às ondas.
Nas madrugadas, após se despedir do pai e dos irmãos, a menina deita junto ao mar, que lhe cobre de suaves ondas salgadas. A cada toque, um estremecimento no corpo de mulher. Ambos silenciosos, até o sol chegar cheio de preguiça. É hora de Rosália voltar para casa, ainda sentindo o gosto de sal nos lábios, no corpo, na alma. Ela chega a imaginar que, em sua ausência, o mar recolhe todas as ondas, e fica mais profundo, até Rosália voltar.
Meses, anos passam sem pressa, como os barcos a navegar nas águas calmas da Praia do Fascínio. Rosália é mulher feita, não só diante do mar. Os pescadores admiram-na de longe, já que ela parece ter um só olhar – sempre voltado àquelas ondas silenciosas, que guardam segredos de um grande amor.
O mar, fiel companheiro, está sempre a beijar-lhe os passos. Às vezes, parece agitado com algum pensamento dela, mas logo apazigua, depois que a mulher se deita ao seu lado, e se entrega às suas ondas suaves A doçura de Rosália se mistura com o mar salgado. Quando a mulher levanta, sente caminhar como uma onda – suavemente rendida -, enquanto o mar já não lhe parece tão salgado.
Com o corpo do pai enterrado, os irmãos, já com mulheres e filhos, decidem seguir uma grande embarcação de pesca. “O trabalho é garantido, de exportação e tudo, Rosália. Vem com a gente. Vamos embora desta praia quase deserta” – propõe o irmão mais novo. O olhar marejado da mulher não deixa dúvidas: ela fica, enquanto houver o mar a inundar-lhe o corpo e a alma de vida.
Chega o dia da partida da última família da Praia do Fascínio. Rosália se despede, no mesmo ritual que manteve com o pai e os irmãos, depois de mentir que um dos irmãos viria buscá-la em dois dias. A família se vai. O último barco também. Só - Rosália e o mar. Rosália olha o mar. Rosália deita junto ao mar. Rosália canta baixinho para o mar. Rosália se entrega ao mar. Pouco tempo depois, Rosália morre – de amor – no mar...
Voz - Elisa:

terça-feira, 20 de julho de 2010

De repente

Dora Brisa

De repente, você se vê
Sem pai, nem mãe,
Sem a esperança de um dia tê-los...

De repente, você olha para o lado,
E já não enxerga mais
O companheiro na cama...

De repente, você procura o berço,
E não encontra mais o filho querido...

De repente, você telefona para o amigo,
E ele não atende,
Porque não está mais lá...

De repente, você fica sabendo
Que o outro amigo desistiu de viver...

De repente, você busca
Amigos antigos, guardados no coração,
Mas também eles se foram...

De repente, você percebe
Que o mundo está esvaziando...

De repente, todo o vazio do mundo
Faz você se sentir também em viagem,
De repente...

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Abismal

Dora Brisa

Seguindo meu curso natural,
Tateio a loucura antiga,
Nesta lucidez abismal.
E não há poesia amiga
Que hoje não me faça mal.
Contorno a grande ferida,
Que jorra vermelho colossal.
Não fujo do que chamam vida,
Nem abandono o prumo racional.
Quero apenas ficar recolhida,
Respirando ar universal,
Por todos esquecida,
Sem precisar ser normal.
Cambaleando pensativa,
Em meditação sepulcral,
Engulo o silêncio da avenida,
Vomito na transversal.
Adiante, corro, espavorida,
Ultrapasso o sinal.
Consciência desmedida,
Nem percebo o que é fatal:
Louca existência perdida
No vazio de uma vida real.

Voz - Rosany Costa:

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Zé – o tal

Dora Brisa

José Velasquez Neto
Herdou o nome do avô
Filho único naquela cobertura de zona sul
Garoto cuidado antes mesmo de nascer
Era a realização de um sonho de família
Toda infância Zezinho teve gravada
Em fotos e vídeos que circulavam pelo mundo
Gostava dos mimos que recebia
E logo aprendeu a fazer o que lhe pediam
Quando recebia dinheiro em troca
Estudava
Treinava nin-jitsu
Desde pequeno
Tinha babá e professores particulares
Zezinho cresceu
Com dez anos exigia roupas de marca
Não demorou muito para experimentar as drogas
Fazia parte de um grupo de crack e maconha
A mesada garantia o consumo
E Zé já era conhecido nos morros
Pagava bem
Nunca ficava devendo
Já nem ia mais à escola
Nem completou a quarta série do ensino fundamental
Fugiu das provas finais
Quando os pais souberam
Zé prometeu que retomaria os estudos
Os anos passaram
A família confiante no tratamento psicológico
Do filho único
E Zé cada vez mais ausente
Tinha quinze anos
Pedia aumento de mesada todo mês
Prometeu que faria supletivo
Se recebesse um carro
O pai aceitou
E deu-lhe o carro aos dezessete anos
Ninguém mais segurava o Zé
Bebedeiras
Rachas
Mulheres
Cocaína
Heroína
A vida do Zé
Tinha fornecedor exclusivo
Não ia mais para os morros
Com dezoito anos
Pediu um apartamento de presente aos pais
Precisava de privacidade
Para pensar numa profissão
Os pais fantasiaram esperanças
Agora Zé nem voltava mais para casa
Aparecia duas vezes por semana
Pedindo mais dinheiro
Agradecendo os depósitos bancários
O apartamento do Zé
Era só festa
Dia e noite
Noite e dia
Drogas servidas em bandejas
Muitas mulheres na cama
Numa noite dessas
Apartamento lotado
Zé urina no vaso presenteado pela mãe
Enxerto de orquídeas
Perdido no canto da sala
Cocaína no nariz
Zé busca bebida forte
Boca seca
Enquanto baba no copo
Os olhos esbugalhados
Já não enxergam mais
Tomba o corpo
Overdose
Morreu
Acabou.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Um tal Zé

Dora Brisa

Nasceu lá no morro
A mãe deu-lhe o nome de José
Era o quinto filho
De um pai que foi embora
Na infância, Zé teve pneumonia
Corria descalço pelas vielas
Parecia ignorar a própria miséria
Aos cinco anos Zé recebeu
Cola de sapateiro de um amigo de rua
Vomitou o resto do dia
Depois conheceu a maconha
Os pulmões recusaram
E Zé vomitou o angu do almoço
Escola nem pensar
Foi para o sinal vender doces
Perdeu amigos drogados
Sentia saudade dos três irmãos traficantes
Que tiveram de fugir do morro
Para nunca mais voltar
Na adolescência do Zé
A mãe caiu morta
Quando subia o morro
A irmã fugiu para a Capital
E Zé ficou sozinho no barraco
Conheceu Maria mãe solteira
Enquanto namoravam Zé foi estudar
Completou a quarta série primária
Tinha vinte anos quando conseguiu
Emprego de cobrador de ônibus
Casou com Maria
Cuidou do filho dela
Depois tiveram três filhos
Zé nunca saiu do morro
Trabalhava semana toda
Estudava com os filhos quando podia
A alegria da família
Era o churrasquinho
De final de semana
Na churrasqueira de latão
Era um desses domingos
Corrida de carros na televisão
Carvão queimando lá fora
Maria na cozinha
Os filhos brincando na churrasqueira
Zé sintonizando a televisão
Os carros em disparada
E Zé sem poder assistir
Subiu no telhado
Para consertar mais uma vez a velha antena
Escorregou
Morreu
Acabou.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O outro

Dora Brisa

Quem é o outro que me assusta, me alegra, me entristece, me decepciona, me surpreende? Quem é o outro que eu conheço pelo passo, pelo olhar, pelo sorriso, pelo toque, pela voz? Quem é o outro que eu vejo na rua, e nunca vi antes (talvez, nunca mais verei)?...
Quem é o outro que eu decepciono, faço sorrir, chorar, surpreendo, mando embora? Quem é esse outro que me busca para um cumprimento, um abraço, um colo, uma palavra de amizade? Quem é esse outro que me vira às costas, me abandona no meio do caminho, me manda embora, me violenta, mutila minha alma?
Quem será o outro do outro – serei eu? Eu, o outro que sorri, machuca, perdoa, ouve, acompanha?...
Mas o outro é tão diferente de mim – eu, o outro dele. O outro não me compreende, não quer o que eu quero, nem faz o que eu faço. O outro sente tantos medos e desejos que por mim são desconhecidos. O outro vive de um jeito tão diferente do meu. O outro joga fora o que eu mais quero na vida. O outro busca o que eu renunciei há tanto tempo. O outro caminha por estradas que eu recuso. Ah, o outro, sempre o outro...
Será por isso a solidão – falta do outro?... Mas como me aproximar do outro – se tão diferente de mim?... Quando espero ouvir, o outro cala; quando tudo que preciso é silêncio, o outro resolve falar, falar...
Mas, se eu sou o outro do outro, também o outro deve reclamar do outro dele. Nem sempre correspondo ao outro: ele me pede uma palavra, bato-lhe a porta; ele busca um sorriso meu, não dou-lhe mais que uma 'cara amarrada'...
Serei eu esse outro – impaciente, insuportável? Serei eu esse outro – egoísta, que não consegue enxergar o outro? Serei eu esse outro – que não aceita o outro como o outro é, mas exige ser aceito? Serei eu esse outro que se enxerga no outro, que reflete o olhar dele no outro?... Serei eu o outro?...
Ah, esse outro que me instiga, por que tão diferente, e, ao mesmo tempo, tão igual: inseguro, com medo do olhar do outro...
(Enquanto isso, a vida segue, como se fosse um ensaio... o tempo, alheio a tudo, também segue...)

Voz - Elisa:

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Última estação

Dora Brisa

Esse é o meu tempo, tempo de voltar
À velha estação de trem
Em abandono, como eu.
É tempo de olhar a vida que passa,
Já que os trens, há muito,
Não passam mais em comboio.
Não há mais trilhos.
Por isso, minha vida descarrilada.
Sento no único banco vazio que restou,
Igual minha alma.
E o que faço é simplesmente respirar:
Inspiro, expiro,
Inspiro, expiro.
E o que sei, nesse gesto meu impensado,
É que a minha vida não expira.
Ainda não.
Por isso, agora respiro com ironia.
Encho e esvazio os pulmões, que
Um dia cessarão carcomidos, junto com o resto
Do meu corpo, que será presenteado
Aos vermes, ou fará parte, uma ínfima parte,
Dessa poluição de cidade grande. E assim
Não voltarei mais à velha estação,
Nem meu corpo ocupará espaço
No universo humano.
Simplesmente por que meu tempo
Terá expirado, junto com essa vida
Que agora respira o ar poluído
Das fábricas,
Dos motores,
Dos incineradores.
Tudo misturado, como a minha própria vida,
Que pulsa com o tempo sem porquê.
Meu tempo de vida está sendo
Cronometrado, sem eu saber.
E, sem eu saber também,
Meu tempo de morte será marcado,
Pois alguém, um dia qualquer,
Lembrará desse espectro humano.
Sem relógio, deixo-me ficar só com o tempo,
Para quebrar as algemas propositadamente.
Hoje, neste velho banco de estação,
Que o tempo não me encontre,
Pois estou sem tempo para ver
O tempo passar, o tempo escoar.
Não, não me venha o tempo
Da sentença, o tempo que só marca
O que não faço, o que não vivo, o tempo perdido.
Liberto, respiro. Não há movimento
Nas ruas, nas calçadas, nas pessoas.
Ora, não venham me dizer
Que dia é hoje, que horas são.
Não. Não quero saber de mais nada,
Nem do tempo futuro, tampouco do tempo passado,
Menos ainda do tempo que não é presente algum.
Levem para longe dos meus sentidos,
O badalar dos sinos da Catedral, que anuncia
Mais um quarto de hora passado no tempo.
Quanto tempo dura uma saudade?
E uma despedida? E a partida de
Quem se foi, sem se despedir?...
Meu coração acompanha agora
O ritmo descompassado do meu pensar,
Invadido por lembranças marcadas
Pelo tempo - este mesmo tempo
Que ora se esvai no meu olhar perdido -,
Como se ainda houvesse tempo,
Tempo para viver, e depois,
Só depois de a vida tornar-se enfadonha,
Aí sim, tempo de morrer,
Ou não morrer.
Um homem maltrapilho pára diante de mim.
Pede um trocado para continuar sobrevivendo.
Aturdido, remexo os bolsos do velho casaco.
Nem sei se trago algum dinheiro comigo.
Decido impetuosamente tirar o casaco,
E oferecê-lo ao olhar estupefato.
Preciso dizer alguma coisa, qualquer coisa.
Apenas um murmúrio sai da minha alma:
– Pode levar o casaco,
Porque você e eu morreremos.
Provavelmente, você conheça mais gente,
A quem este surrado paletó ainda possa servir.
Digo isso, tirando os sapatos:
– Esses também podem ajudar
Na caminhada que resta...
Com o casaco no braço, o homem ainda pega o par
De sapatos rotos, e corre.
Perde um dos sapatos no caminho.
Nem olha para trás.
Fugiu de mim, como acha que
Foge da morte.
Nem pude dizer a ele que também eu sinto medo,
Medo de perder a vida, sem aviso prévio.
Sobrevivi até hoje assim:
Sob o crivo do tempo, silencioso, este mesmo
Tempo que passa na velha estação.
Envelheci. Já não posso mais correr, fugir.
Por isso, permaneço sentado
Nesse banco empedernido
Pelo sempre tempo que torna opaca
Qualquer visão humana.
Tanto eu, quanto aquele homem que escafedeu-se,
Já não podemos mais crer
Em vida eterna, céu, harpas e querubins.
Todos nós, seres humanos,
Até mesmo aqueles que professam uma fé,
Sabemos que podem haver outras vidas.
Mas cada vida é única,
Como também são únicos os laços.
Quando alguém diz que não teme a morte,
Está falando por todos nós:
Eu minto,
Tu mentes,
Ele mente,
Nós mentimos,
Vós mentis,
Eles mentem.
(Duas varejeiras me perseguem.
Chegaram cedo para o banquete.
Não importa. Parecem ter
todo o tempo do mundo. Mas
também elas morrerão. Pois que
esperem o meu tempo, que
marca sentido contrário dos relógios.)
De onde surgiu este cão?
Parece velho, cansado.
Lentamente, vem se chegando ao banco.
Deita em silêncio, baixa o olhar sem brilho.
Reparo nas feridas dele,
Pêlos com pus ressequido.
E eu aqui sentado, sem uma chaga sequer,
Nem mesmo um calo purulento.
Talvez, também por isso, sinto medo,
Medo de perder a vida que nunca tive.
Não trago no corpo, as chagas da crucificação
Daquele que (dizem) morreu
Por nós, os pecadores.
Eu, ordinário que sou, não saberia
Render-me à morte, com beatitude.
Não, não eu, que represento
O homus sapiens do terceiro milênio,
Com toda a sua tecnologia, toda a sua ciência,
Todo o seu horror à morte, cada vez maior.
Viver é um susto; morrer é uma fatalidade.
O cão, de olhos fechados, focinho no chão,
Não sabe disso, ignora que vai morrer.
Nem sabe que vive, por que não pensa.
Eu penso,
Tu pensas,
Ele pensa,
Nós pensamos,
Vós pensais,
Eles pensam.
Fecho também os olhos, por um momento.
Mas ainda penso.
Sinto uma vontade louca de
Encostar meu nariz no chão, e
Não mais precisar fugir do meu pensar,
Do meu medo genuíno, que
Há décadas me atormenta, farejador:
Morte!
Morte!
Morte!
Como viver, morrendo a todo instante?
Como não pensar na vida, que
Poderia ter sido vida ganha, ou perdida?
O cão não escuta minhas divagações amedrontadas
Pelo fim predestinado à vida humana.
A cada nascimento (na maioria),
Júbilo em derredor.
O choro do bebê pode ser traduzido:
– Vou morrer. Nasci para morrer.
Esse vagido permanece o resto da vida,
Até que a morte chega, e
Faz tudo calar. Definitivamente.
A vida é eterna? Mas
Eu morro.
Tu morres,
Ele morre,
Nós morremos,
Vós morreis,
Eles morrem.
(Primeiro, de medo.)
Todos, indubitavelmente.
Morre aquele que crê,
Morre aquele que não crê.
Todos – 'farinha do mesmo saco' -,
Matéria orgânica perecível, mortal.
Sempre a morte. A morte sempre
Nos aguardando à espreita,
Num navio, num avião,
Até numa estação de trem, esquecida
Pela vida que passa:
Vida célere, morte lenta.
Um dia a mais, um dia a menos.
O cão não pensa.
Invejavelmente, o cão dorme o
Sono dos justos purulentos.
Se o tempo é o melhor remédio,
Quero sorver até a última gota
Da minha parte da cicuta
Reservada a nós, miseráveis,
Temerosos, solitários, mortais seres humanos.
Do outro lado da rua, que um dia foi trilho,
Passa agora uma madame, que
Passeia com seu cachorro com pedigree.
Ela acelera o passo, após nos observar,
A mim e ao cão deitado.
A madame desvia o olhar com asco,
Visível desconforto. Segue,
Ajeitando-se pelo caminho invisível dos
Trilhos, acompanhada pelo cachorro,
Que fareja aguçadamente o trajeto.
Cachorro de madame não tem feridas,
Só mordomias invejáveis.
Também ele não sabe que vive,
Não pensa sobre a morte,
Idêntico à madame, que deve
Buscar sempre mais banalidades
Que burlem quaisquer indícios
De um breve pensar.
Mas também ela, ser humano, vai morrer.
Ainda que esconda o enfraquecimento físico, com
Cirurgias plásticas irreveláveis, a morte a espera,
Sem pressa, e também ao seu cachorro.
Porque o tempo só é limitado
Às criaturas limitadas.
Eu feneço,
Tu feneces,
Ele fenece,
Nós fenecemos,
Vós feneceis,
Eles fenecem.
Toda vida é subjugada à morte implacável,
Algoz sedento em chamar o próximo da lista
Infindável, à guilhotina.
Neste morticínio, estamos nós, seres (ainda) vivos,
No aguardo forçado da nossa vez.
Todos, meninos solitários,
Tremendo de medo, sob um único
Olhar rígido, mortal: sentença irrevogável.
Para o medo do escuro, existe a luz;
Para cuidar das tantas fobias do homem,
Existem os tratamentos terapêuticos.
Antídoto à morte? Talvez revolta.
Talvez rendição, numa única lágrima de quem
Sempre soube que um dia seria extinto
Do convívio humano, e arremessado ao desconhecido.
Foram-se os tempos
Das brincadeiras de bicho-papão,
Debaixo das macieiras.
É chegado o tempo de não haver mais tempo:
Tempo de medo.
Tempo de silêncio.
Tempo de solidão.
Tempo de quedar a cabeça.
Tempo de não ter razão.
Quanto a mim, humano descartável,
Igual à humanidade inteira, neste mundaréu de medos,
Que resultam num medo só (perder a vida),
Não há mais tempo para
Ter um filho, plantar uma árvore,
Escrever um livro...
Que importa?
Se houvesse mais tempo, com certeza,
Eu nem imaginaria fazer essas coisas todas,
Nem coisa alguma. Morrerei mesmo assim,
Morrerei igual morreram ou morrerão
Aqueles que escreveram árvores,
Plantaram filhos, tiveram livros...
Presságio fatídico.
Por certo, deixarei alguém, um só alguém
Que hoje me ama, ou me odeia,
Já não interessa mais.
Alguém que também vai morrer,
Semelhante ao cão que (ainda) adormece
Ao pé desse velho banco
(tão duro, quanto a morte),
Que não tem vida para perder,
Nem tempo a ganhar.
A morte é onipresente - onipotente.
A vida é limitada - atemorizante.
Entre a vida e a morte,
Tateia a humanidade frágil,
Assustada, indefesa.
Todo mundo sabe que, aonde for,
O que fizer, acabará num só lugar:
Morte.
Haverá sempre o fim da linha, como para o trem.
Erros e acertos oscilam num determinado tempo.
Depois, morte cruel. Não importa
Se for numa clínica moderna e equipada,
Ou num barraco de lama, onde falta até
Um toco de vela. A vida é extinta num
Tempo qualquer: seja diante
Da indignação, ou da subserviência.
Ganhamos tempo; perdemos vida.
Perdemos tempo; perdemos vida.
No final de tudo – morte -,
A eterna morte de uma vida passageira.
Depois, ainda dizem:
– Foi tão cedo.
Não interessa se viveu sete ou setenta anos.
Foi cedo, sim, por que a morte é perversa,
Arranca pela raiz o mais frágil broto,
Até a árvore frondosa,
Sem direito à contestação.
Assim é a morte (aceitam).
Sou irmão dos irmãos que não suportam
O peso da morte nos ombros da vida.
Alguns bebem, outros cheiram ou fumam:
Suicídio lento (quem tem pressa?).
Morreremos, de qualquer jeito.
A vida de uma borboleta não dura mais que
Duas semanas. Por isso, ela voa, voa...
A grande massa humana trabalha para não morrer
De frio, de fome, mas continua morrendo
De medo da morte.
Mesmo sabendo disso,
Eu insisto,
Tu insistes,
Ele insiste,
Nós insistimos,
Vós insistis,
Eles insistem.
Assim é a vida (aceitam).
O que vivemos foi vivido.
O resto é morte.
O tempo em que estou sentado no banco
Dessa velha estação, o tempo é passado.
E tudo o que eu poderia ter feito neste
Tempo que passou é morte.
Vivo agora a minha morte futura,
Sem consciência dela.
Tateio um outro tempo, fora de qualquer tempo,
Sentado apenas sem pensar no que já fiz,
Deixei de fazer, ou o que faria amanhã.
Neste momento, a minha morte respira.
Nem isso quero pensar.
Prefiro olhar para o chão, onde o cão dorme.
Nada sinto. Nem sono.
Estou aquém ou além
(que importância tem?)
Do tempo, que chego crer que eu não
Reagiria, nem por instinto, caso minha
Respiração fosse espaçando, lentamente,
Até nada mais.
Não quero saber se sou 'um grão de areia', ou
'Uma gota de oceano' no universo.
O que sei é que nem sei quem sou.
E aquele mendigo levou há pouco
Minha carteira de identidade, junto com o casaco.
Já não tenho mais sequer nome.
Sou ninguém.
E respiro agora um ar mais leve,
Um tempo tão suave, que eu nunca tive na vida.
Será a morte?... Não, não pode ser,
Porque a morte (dizem) machuca, faz doer fundo.
Nada me dói, nem o que não vivi.
Se eu pudesse,
Se tu pudesses,
Se ele pudesse,
Se nós pudéssemos,
Se vós pudésseis,
Se eles pudessem,
Escolheriam (escolheríamos, todos)
Que ninguém mais morreria.
Quem sabe, a vida fosse diferente,
A humanidade fosse mais humana,
Menos abandonada.
Quem sabe, não haveria mais a palavra
Solidão, nos dicionários das casas, das ruas...
Quem nunca, por um instante só, desejou morrer?
Não é preciso perder (mais) este tempo,
Porque a morte chega, chega sim -
Traiçoeira, desumana.
Em todo velório, a mesma coisa, o tempo todo:
Lágrimas, sentidas lágrimas.
Eu choro,
Tu choras,
Ele chora,
Nós choramos,
Vós chorais,
Eles choram.
Mas não é mais só por causa do
Falecido (já está morto).
Cada qual chora a sua própria morte
Particular, singular, imposta.
Quando as lágrimas esgotam,
Começamos nos observar, um a um,
E nos reconhecemos no olhar apavorado
Do outro, que treme de medo da morte,
Que fatalmente está a caminho.
(Quem será o próximo 'eleito'?)
O que nos resta, então, é baixarmos a cabeça,
Emudecermos, sermos tão humanos
Como foram nossos pais, avós, bisavós,
E também os tataravós dos nossos bisavós,
Como será a humanidade futura.
Neste meu caminho à morte, tenho aprendido que
Cada criatura humana é um universo
Limitado, único, por isso tão só, vulnerável.
Na minha solidão, sou toda a humanidade,
Que busca sofregamente não pensar,
Não sentir tudo isso que provém do peso de
Sermos (todos) mortais, filhos do começo, do meio e do fim.
A vida não tem sentido, nem nexo, nem seta, mas
Eu vivo,
Tu vives,
Ele vive,
Nós vivemos,
Vós viveis,
Eles vivem.
Todos tentamos decifrar, reter o sentido da vida.
Se a morte tem ou faz algum sentido,
Os mortos (só eles) devem saber,
Ou, talvez, a procura insana continua.
Apenas isso. Se assim for,
Menos sentido ainda tem tudo isso
(vida-tempo-morte).
Afinal, quem é este 'Ser' proclamado
Entre os religiosos como justo e misericordioso?
Se assim é, por que uns nascem abastados,
E outros morrem famintos?
Por que uns vivem matando,
E outros morrem assassinados?
Onde a justiça – na vida? na morte?
E ainda dizem que nasci para pagar os meus pecados.
Logo eu, pecador confesso, especialista
Na genuína arte de pecar.
Peco contra mim mesmo,
E não pago contas. Peco neste tempo todo
Que espreita meus passos trôpegos,
Meus pecados imundos. Tempo-urubu:
Paciente, hábil, à espera da minha morte,
Quando também ele, o meu tempo,
Será aniquilado, imerso no tempo eterno da morte.
No tempo da minha morte,
Não me venham prometer purgatório, céu, inferno.
Com certeza, eu morreria antes da hora,
Anteciparia a minha viagem, depois de vomitar
Toda náusea que me dá a palavra eternidade.
De nada adianta, porque
Eu acabo,
Tu acabas,
Ele acaba,
Nós acabamos,
Vós acabais,
Eles acabam.
Morte. Ponto final.
Se depois disso houver mais enredo,
Que venham todas as vidas que tiverem de vir,
Todas, todas as vidas e todas as mortes também.
Cada vida única, cada morte sofrida na solidão
Do existir sempre humano a se repetir.
Ou que não venha mais vida alguma,
Seguida de morte. Que seja o fim.
O fim de cada um. O fim de todos. O fim de tudo.
O nada. O retorno do caos, de onde podem (ou não)
Surgir outra luz, outra vida.
Que seja, ou que não seja, pois
Eu não existirei
Tu não existirás
Ele não existirá
Nós não existiremos
Vós não existireis
Eles não existirão.
E tudo será nada (recomeço?).
Definitivamente, não sei ser humano,
Ou outra coisa qualquer.
Não compreendo a criatura (também eu) que sonha sempre com
Mudanças diversas de vida, mas não admite a morte,
Que não passa de (mais) uma mudança.
Por que toda mudança pressupõe morte – fim de
Alguma coisa -, para aparecimento de outra.
Por isso, quem perde, ganha; e sempre ganha, quem perde.
Vida é mudança constante, incluindo a própria morte.
Minha incompreensão reside nisso:
Por que temo, ser humano que sou, a morte, que
Muda tanto a vida?...
Indiscreta ou sutil, mudança é sempre mudança.
Isso é inquestionável – como a morte.
E não há resposta que faça calar a alma
Humana – inquieta e trêmula.
Na minha finitude, vejo o crepúsculo morrendo
No infinito. Isso me dói. Morre o dia.
Morre o homem. Morre a luz de tudo o que é mundo humano.
De súbito, uma pedra trespassa meu olhar.
Caio de novo na realidade, e o que vejo é
Um menino de rua provocando, de longe,
O cão, que continua deitado, inerte.
Sob meu olhar inquiridor, o menino se afasta,
Arremessando mais pedras, agora na rua sem trilhos.
Olho para o cão. O corpo está hirto. Não há mais
Vida nele. O trem da morte levou a vida
Que restava no cão moribundo, que, certamente,
Não tem um só alguém que chore a sua falta.
Choro eu, cão desconhecido, eu que sou
Tão desconhecido para mim mesmo.
Choro a tua morte, o fim da tua vida sem sentido.
Choro a minha morte também, que virá sorrateira,
E deixará em abandono meu corpo cansado, indefeso.
Retiro a camisa, cubro-lhe as chagas, em silêncio.
Eis tua mortalha, cão que não deve ter sido protegido
Na vida. Também eu, ser humano que (ainda) sou,
Precisei aprender sozinho me proteger, cobrindo
As marcas infames que trago na alma.
Continua dormindo, cão sem nome.
Eu, sem nome também, velo teu sono, o sono
De quem viveu sem saber que vivia, e morre sem despertar.
Só eu sei que você está morto, cão, porque a
Escuridão da noite cobre agora a tua morte e a minha vida.
O que respiro é o ar da morte, que ainda ronda.
Sinto, pressinto, farejo, animal que sou,
Tão mortal quanto o cão rendido.
Mas não me rendo, ainda não,
Não eu, animal teimoso, negando o próprio fim.
Quero respirar também o ar do cão sem vida,
Para provar (a mim? ao cão? à morte?) que ainda vivo.
Não interessa por que, para que, até quando, até onde.
Vivo este instante – basta -, enquanto a morte permeia
Solta, poderosa. Não, não vou me refugiar
Debaixo do banco, nem fingir estar morto.
Respiro profundamente. Estou vivo. Vivo e sozinho.
Viajei tanto na vida, mas meus pés fincam
Nessa estação, onde há muito tempo equilibrei
Meu corpo infantil sobre esses trilhos hoje invisíveis.
Tanto é verdade, que agora mesmo poderia eu percorrer o
Trajeto cego dessa linha morta de trem.
Respondo ao meu menino eufórico: estou cansado.
Não viajei de trem até aqui, com o olhar extasiado em paisagens.
A minha vida humana é isso:
Tão-somente esse momento em que suspiro
Diante da morte, que se apodera de um cão.
'Um dia, todos voltaremos à casa do Pai?'
Não eu, que nunca tive pai, nem casa, sequer um lugar.
Acho mesmo que, morrendo, vou acabar
No meio do caminho - entre qualquer coisa e o nada.
E isso será tudo.
Que fiz eu da morte que vivi, até chegar aqui?
Alguns poucos diriam:
– Construíste casas (não lares).
É bem verdade: exímio construtor, visível profissional.
Debaixo da minha máscara, destruí sonhos,
Cortei caminhos, matei destinos.
Também eu poderia ter sido o chefe das construções.
De que serviria? Estaria morrendo, como tudo, como todos,
Como eu, que sempre fui sem nunca ter sido.
Nem sequer construí uma casa para mim,
Por desconhecer o mais ignóbil projeto de um lar.
Com certeza, aquela que seria minha esposa
Vive – casada – com aquele que poderia ser um
Desconhecido, ou o prefeito da cidade, ou até
O mendigo que há pouco passou por aqui.
Vou morrer sem conhecê-la, tampouco ela saberá de mim,
E terá filhos, muitos filhos, os filhos que seriam nossos.
Não importa! Ela morrerá viúva, ou ele morrerá viúvo,
Até os filhos morrerão, e eu também morrerei.
E morreremos todos, com ou sem lar.
Nunca achei graça ou desgraça na vida.
Por que haverei de culpar ou desculpar alguém na morte?
Não e não, nem a mim mesmo, que nunca soube existir.
O vento sopra a noite e a vida.
Por isso, sinto frio. Encolho-me envergonhado junto ao
Corpo do cão, que ainda morre a própria morte.
Partilho contigo tua mortalha, cão cheio de morte,
E já nem lembro que é minha a camisa que cobre teu pêlo sujo.
Quisera eu ter manchado esta, ou outra camisa qualquer.
Não. Jamais manchei de sangue vivo minha vida morta.
Acomodo minhas costas junto aos pêlos caninos
Cobertos pela mortalha, que era camisa de alguém
Que parecia ser vivo, por que usava camisa.
Fecho os olhos a contragosto, e revejo o sonho,
Aquele mesmo sonho que me persegue - sonho africano -,
Sonho parecido com insônia letárgica, que
Dizima, mutila, mata restos de sonhos.
Também eu estava lá, no chão africano,
Estirado à morte, mas não morria.
Também era noite, mais escura que a pele dos mortos africanos.
Só eu não morria, por que não tinha vida.
Arregalo os olhos, o sonho se dissipa espavorido,
E a noite fria já não eriça mais os pêlos do pobre cão.
Nunca bebi (vida) na vida, e me sinto embriagado,
Farto dessa mesma vida que jamais senti arder na garganta.
Façam suas apostas, senhores.
Aqui jazem um cão e um homem
Sem dono-destino, nem desatino – entregues, rendidos.
Eis aqui um cão que teve vida e morreu,
E um homem que não morreu, por que nem vida teve.
Quem dá mais, senhores?...
Quem pagar pelo cão, leva a mortalha para tapar-lhe as feridas.
Quem arrematar o homem, não paga,
Por que ser humano nada tem, além de um tempo que acaba,
Antes mesmo de a vida principiar...
(Ao longe, o apito da locomotiva – está na minha hora?
Já não enxergo mais o guichê das passagens,
Para eu escolher o destino que nunca tive.
Nem trouxe bagagem. E agora?...)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Menino-passarinho

Dora Brisa

Era apenas um passarinho a sonhar
Cansado de voar,
Do ninho, não conhecia o calor,
Ficava para baixo a observar...
A vontade de ser humano crescia em dor,
E o passarinho ao céu chegou a implorar
Um milagre, um só favor:
Em vez de asas, dois braços no lugar...
O céu, iluminado com todo o esplendor,
Trocou as asas do passarinho, que começou a andar...
O menino tudo vivenciou, sem temor,
Com outros garotos na rua passou a morar...
Partilhando esmolas, conheceu o amor,
E já sabia a alegria do abraçar...
Numa madrugada, pânico, terror:
Marginais do morro e do asfalto a atirar...
Entre balas perdidas e achadas, a dor,
Pela morte dos amigos de rua a chorar...
Ferido, sozinho, aturdido de pavor,
O menino pede ao céu para o passarinho voltar...
Com as asas mutiladas,
Já não pode voar,
Fazer das nuvens, almofadas,
Nem nunca mais abraçar...
Sem um só alguém,
O menino-passarinho continua a caminhar...
Às vezes, um anjo que lhe quer bem
Leva-o nas suas asas a voar...

Voz - Helena Antoun: