Dora Brisa
Todas as manhãs, lá estava ele - pousado na soleira da janela do meu quarto -, aguardando espreguiçar-me para abrir as cortinas, deixar voar o vento. Permanecia calado, até sentir a correnteza do ar. Inflava o peito frágil, e começava a cantar. Parecia ser um pássaro comum, desses que nem se encontra em enciclopédia, mas tinha uma melodia que me fascinava.
Às vezes, cantava triste, outras alegremente, como a contar-me histórias, fatos que tinha vivido lá fora, nos ares. Com a melodia sempre afinada, voava em direção da sacada, tão logo para lá eu me dirigisse. Acompanhava cada movimento meu, com perspicácia que ia além dos minúsculos olhos a me espreitarem.
Foram dias, meses assim: ritual diário, tão logo amanhecia. O pássaro sempre pontual, afinado, ali na sacada a cantar, sem nada pedir. Ao preparar meu café, dava-lhe farelo de pão e enchia o prato de água. Ele parecia não se importar. Continuava a cantar a melodia meio triste, meio alegre. Quando bicava um farelo de pão, fazia-o num ato de gratidão, a encarar-me silencioso. Depois, como a adivinhar que eu teria de sair para o trabalho, o pássaro alçava vôo, sem olhar para trás. E eu ficava a buscá-lo em direção das nuvens, mas só minha imaginação conseguia alcançá-lo.
Lembro da primeira ausência dele na minha janela. Era um dia comum, nem chovendo estava. Tão logo abri as cortinas, nem reparei o sol que ressurgia, pois faltava a figura minúscula daquele pássaro na soleira. Por um momento, simplesmente deixei-me hipnotizado diante da janela vazia. Depois, num ímpeto, olhei para baixo, como se fosse possível detectar aquele corpinho cheio de penas no asfalto, na distância de 15 andares.
Impaciente, busquei a sacada. Nenhum sinal do pássaro. Nenhuma melodia. Olhei para o céu azul, e sabia que aqueles pássaros que voavam despreocupadamente não tinham compromisso em nenhuma janela, nenhuma sacada. Por um instante, andei de um lado para o outro na sala, inconformado com a ausência. Depois, já entristecido, saí para o trabalho, sem sequer tomar café. Deixei o carro na garagem, pois inconscientemente queria deparar-me, numa esquina qualquer, com aquele pássaro que encantava minhas manhãs.
No outro amanhecer, a mesma situação: ausência. E assim passaram os dias, até habituar-me com as manhãs de sol, sem melodia.
Depois que já nem contava mais as semanas de ausência, eis que, de repente, num final de tarde, escuto a mesma melodia vindo da sacada. Era ele: peito arfante cantando. A melodia era melancólica, e os olhos estavam voltados para o infinito.
Em silêncio, ofereci-lhe farelos de pão e o prato com água. Ele pareceu não notar meu gesto. Continuou a cantar. Inesperadamente, interrompeu a melodia, e jogou-se da sacada, movimentando as asas depois do salto. Partiu.
Os dias que se seguiram foram de expectativa. Eu mantinha a janela do quarto e a porta da sacada sempre abertas. Nenhum sinal dele.
A surpresa chegou num dia comum, quando ainda sonolento eu afastava as cortinas do quarto. Lá estava ele a esperar-me. Como sempre, em silêncio, seguindo nosso ritual, saí do quarto, dirigi-me à sacada, e lá sentei na rede. Em pouco tempo, o pássaro cantava uma melodia alegre, festiva.
Enquanto buscava farelos de pão, veio-me a idéia de prendê-lo. Mas como o faria? Não dispunha de gaiola, ou caixa vazia. Afastei o pensamento, e fui servi-lo. Como sempre, o pássaro não parecia preocupar-se em alimentar o corpo frágil. Finalizando nosso ritual matinal, lá foi ele em direção das alturas.
E assim tudo voltou a ser como era antes. Enquanto tomava meu café, fiquei a pensar: comprarei uma gaiola e darei jeito de prendê-lo. Ele não escutava meus pensamentos, pois parecia concentrado na melodia afinada.
No final do dia, comprei gaiola, prato e alimentação própria para pássaros. Entrei radiante no apartamento vazio. Por mais de uma hora, fiquei a planejar como faria a armadilha para aprisioná-lo na manhã seguinte. Nem quando menino brincando na rua vi-me tão feliz quanto naquela noite. Não via a hora de o sol reaparecer, para eu ter finalmente aquele pássaro sempre comigo.
Ele veio, como sempre. Parecia mais feliz naquela manhã. Cantava sem parar. Num só vôo, acompanhou meus passos em direção da sacada, e lá continuou sua canção.
No momento de buscar-lhe farelo de pão, conferi a gaiola aberta, que deixei atrás da cortina da sacada. O pássaro continuava a cantar despreocupado, ora olhando para o céu, ora a espreitar-me. E eu no aguardo dele em direção dos farelos, como sempre fazia.
Tão logo caminhou para o prato, ainda cantando, num só gesto, pela primeira vez, toquei aquelas penas suaves. Minha preocupação era não machucá-lo. Nem chegou a debater-se. Simplesmente silenciou a melodia, e baixou a cabeça minúscula. Com cuidado, coloquei-lhe na gaiola, trancando-a..
Instalei a gaiola num suporte devidamente preparado na sacada, onde o pássaro não correria riscos de tomar chuva, ou muito sol. A gaiola era espaçosa, escolhida para dar-lhe maior liberdade de movimentos.
Ali ficou, silencioso, entregue no canto da gaiola onde eu o havia colocado. Não esboçava a menor revolta, o que me tranquilizou. Ele habitua - pensei, enquanto saía para trabalhar.
À noite, ele permanecia imóvel, como a esperar que eu o soltasse. Claro, não o fiz. Era um pássaro comum, mas aquela melodia eu jamais havia escutado. Era como se ele trouxesse a canção dos céus.
Os dias voando, e nada do pássaro alimentar-se. Às vezes, tentava falar-lhe algumas coisas, até que apercebia-me do ridículo. Enquanto ele permanecia silencioso, ausente. Nem levantava os olhos para cuidar meus gestos.
Já andava preocupado com a situação, sentindo falta daquele canto melodioso na janela. Cheguei a falar com um veterinário amigo, mas nada. "É stress, daqui a pouco ele reage" - considerou o profissional. Minha espera tornou-se ansiosa, enquanto o pássaro só engolia poucas sementes e alguma água, quando eu abria-lhe o pequeno bico e forçava-o a alimentar-se.
Numa manhã, depois de retirar a capa da gaiola, percebi o pássaro encolhido. Será que resolvera dormir mais que eu, naquele dia? Com os dedos entre as grades, percebi o corpo desfalecido. Não havia mais melodia. Não havia mais vida.
Os anos passaram, mas ainda lembro daquele pássaro acordando-me todos os dias. Guardo aquelas canções, que me contavam histórias de um infinito que desconheço. A imagem dele - pássaro comum - continua ali na sacada, naquele frágil corpo empalhado. Mas aquela melodia - ah - voltou para o infinito. Se pelo menos eu soubesse o caminho...
Todas as manhãs, lá estava ele - pousado na soleira da janela do meu quarto -, aguardando espreguiçar-me para abrir as cortinas, deixar voar o vento. Permanecia calado, até sentir a correnteza do ar. Inflava o peito frágil, e começava a cantar. Parecia ser um pássaro comum, desses que nem se encontra em enciclopédia, mas tinha uma melodia que me fascinava.
Às vezes, cantava triste, outras alegremente, como a contar-me histórias, fatos que tinha vivido lá fora, nos ares. Com a melodia sempre afinada, voava em direção da sacada, tão logo para lá eu me dirigisse. Acompanhava cada movimento meu, com perspicácia que ia além dos minúsculos olhos a me espreitarem.
Foram dias, meses assim: ritual diário, tão logo amanhecia. O pássaro sempre pontual, afinado, ali na sacada a cantar, sem nada pedir. Ao preparar meu café, dava-lhe farelo de pão e enchia o prato de água. Ele parecia não se importar. Continuava a cantar a melodia meio triste, meio alegre. Quando bicava um farelo de pão, fazia-o num ato de gratidão, a encarar-me silencioso. Depois, como a adivinhar que eu teria de sair para o trabalho, o pássaro alçava vôo, sem olhar para trás. E eu ficava a buscá-lo em direção das nuvens, mas só minha imaginação conseguia alcançá-lo.
Lembro da primeira ausência dele na minha janela. Era um dia comum, nem chovendo estava. Tão logo abri as cortinas, nem reparei o sol que ressurgia, pois faltava a figura minúscula daquele pássaro na soleira. Por um momento, simplesmente deixei-me hipnotizado diante da janela vazia. Depois, num ímpeto, olhei para baixo, como se fosse possível detectar aquele corpinho cheio de penas no asfalto, na distância de 15 andares.
Impaciente, busquei a sacada. Nenhum sinal do pássaro. Nenhuma melodia. Olhei para o céu azul, e sabia que aqueles pássaros que voavam despreocupadamente não tinham compromisso em nenhuma janela, nenhuma sacada. Por um instante, andei de um lado para o outro na sala, inconformado com a ausência. Depois, já entristecido, saí para o trabalho, sem sequer tomar café. Deixei o carro na garagem, pois inconscientemente queria deparar-me, numa esquina qualquer, com aquele pássaro que encantava minhas manhãs.
No outro amanhecer, a mesma situação: ausência. E assim passaram os dias, até habituar-me com as manhãs de sol, sem melodia.
Depois que já nem contava mais as semanas de ausência, eis que, de repente, num final de tarde, escuto a mesma melodia vindo da sacada. Era ele: peito arfante cantando. A melodia era melancólica, e os olhos estavam voltados para o infinito.
Em silêncio, ofereci-lhe farelos de pão e o prato com água. Ele pareceu não notar meu gesto. Continuou a cantar. Inesperadamente, interrompeu a melodia, e jogou-se da sacada, movimentando as asas depois do salto. Partiu.
Os dias que se seguiram foram de expectativa. Eu mantinha a janela do quarto e a porta da sacada sempre abertas. Nenhum sinal dele.
A surpresa chegou num dia comum, quando ainda sonolento eu afastava as cortinas do quarto. Lá estava ele a esperar-me. Como sempre, em silêncio, seguindo nosso ritual, saí do quarto, dirigi-me à sacada, e lá sentei na rede. Em pouco tempo, o pássaro cantava uma melodia alegre, festiva.
Enquanto buscava farelos de pão, veio-me a idéia de prendê-lo. Mas como o faria? Não dispunha de gaiola, ou caixa vazia. Afastei o pensamento, e fui servi-lo. Como sempre, o pássaro não parecia preocupar-se em alimentar o corpo frágil. Finalizando nosso ritual matinal, lá foi ele em direção das alturas.
E assim tudo voltou a ser como era antes. Enquanto tomava meu café, fiquei a pensar: comprarei uma gaiola e darei jeito de prendê-lo. Ele não escutava meus pensamentos, pois parecia concentrado na melodia afinada.
No final do dia, comprei gaiola, prato e alimentação própria para pássaros. Entrei radiante no apartamento vazio. Por mais de uma hora, fiquei a planejar como faria a armadilha para aprisioná-lo na manhã seguinte. Nem quando menino brincando na rua vi-me tão feliz quanto naquela noite. Não via a hora de o sol reaparecer, para eu ter finalmente aquele pássaro sempre comigo.
Ele veio, como sempre. Parecia mais feliz naquela manhã. Cantava sem parar. Num só vôo, acompanhou meus passos em direção da sacada, e lá continuou sua canção.
No momento de buscar-lhe farelo de pão, conferi a gaiola aberta, que deixei atrás da cortina da sacada. O pássaro continuava a cantar despreocupado, ora olhando para o céu, ora a espreitar-me. E eu no aguardo dele em direção dos farelos, como sempre fazia.
Tão logo caminhou para o prato, ainda cantando, num só gesto, pela primeira vez, toquei aquelas penas suaves. Minha preocupação era não machucá-lo. Nem chegou a debater-se. Simplesmente silenciou a melodia, e baixou a cabeça minúscula. Com cuidado, coloquei-lhe na gaiola, trancando-a..
Instalei a gaiola num suporte devidamente preparado na sacada, onde o pássaro não correria riscos de tomar chuva, ou muito sol. A gaiola era espaçosa, escolhida para dar-lhe maior liberdade de movimentos.
Ali ficou, silencioso, entregue no canto da gaiola onde eu o havia colocado. Não esboçava a menor revolta, o que me tranquilizou. Ele habitua - pensei, enquanto saía para trabalhar.
À noite, ele permanecia imóvel, como a esperar que eu o soltasse. Claro, não o fiz. Era um pássaro comum, mas aquela melodia eu jamais havia escutado. Era como se ele trouxesse a canção dos céus.
Os dias voando, e nada do pássaro alimentar-se. Às vezes, tentava falar-lhe algumas coisas, até que apercebia-me do ridículo. Enquanto ele permanecia silencioso, ausente. Nem levantava os olhos para cuidar meus gestos.
Já andava preocupado com a situação, sentindo falta daquele canto melodioso na janela. Cheguei a falar com um veterinário amigo, mas nada. "É stress, daqui a pouco ele reage" - considerou o profissional. Minha espera tornou-se ansiosa, enquanto o pássaro só engolia poucas sementes e alguma água, quando eu abria-lhe o pequeno bico e forçava-o a alimentar-se.
Numa manhã, depois de retirar a capa da gaiola, percebi o pássaro encolhido. Será que resolvera dormir mais que eu, naquele dia? Com os dedos entre as grades, percebi o corpo desfalecido. Não havia mais melodia. Não havia mais vida.
Os anos passaram, mas ainda lembro daquele pássaro acordando-me todos os dias. Guardo aquelas canções, que me contavam histórias de um infinito que desconheço. A imagem dele - pássaro comum - continua ali na sacada, naquele frágil corpo empalhado. Mas aquela melodia - ah - voltou para o infinito. Se pelo menos eu soubesse o caminho...
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