segunda-feira, 7 de junho de 2010

O despertar da Esfinge

Dora Brisa
...
Vira para o lado, em vão as mãos dela buscam a maciez das cobertas. O corpo todo estremece com o frio úmido que sente. Abruptamente, arregala os olhos, e o que enxerga é o nada no meio da mais densa escuridão. Um mal súbito a imobiliza. As pupilas se dilatam. Estupefata, articula uma fala rouca, quase sussurro, gaguejante:
- Onde... Onde estou?... Como vim parar aqui?...
Ao esticar o braço, sente o chão rochoso, úmido. Instintivamente, levanta quase num salto. Cuidadosamente, esgueira-se pelas paredes rochosas, sentindo a textura intangível. Em pé, encostada na rocha, ela se esforça em rememorar a noite passada. Lembra-se então que saíra, quase madrugada, entrando num bar, onde tomara duas doses de uísque. Depois, ao voltar para casa, fora seguida por dois homens, que ficaram a espreitá-la, junto ao poste do outro lado da rua, enquanto ela abria a porta de casa. Só não consegue lembrar se trancara a porta depois, tal o assombro imprevisto. Após o banho rápido, sem condição de conciliar o sono, tomara um barbitúrico qualquer, voltando à cama. Nada mais precisa recordar, para adivinhar o que lhe acontecera. “Eles me sequestraram” – pensa num susto.
Em vez de “por que logo eu”, o que lhe vem à cabeça é que não tem ninguém para resgatá-la. Até o cheque especial dela está no vermelho, há quase um mês. Se o sequestro tivesse acontecido há duas semanas, ainda teria o (rico) amante para pagar-lhe o resgate. Proprietário de uma grande empresa de exportação, por certo ele, se não tivesse acabado o relacionamento, pagaria o preço que fosse para tê-la de volta. Mas quanto valeria ela (a vida dela) – em real, dólar, yen, franco ou euro?... Ela não sabe. Mas o que importa isso também, se já não tem mais o amante rico?...
Sem saber por que, lembra agora, quase visivelmente, a noite em que ele – o amante – adentrou à casa dela, que já estava dormindo. Acordara com os gritos dele – o amante – na sala. Levantara assustada, enquanto ele bradava:
- Precisamos conversar...
Silenciosa, ela sentara na poltrona. O amante caminhava, abrupto, de um lado para o outro, sem o olhar fixo. Às vezes, ele tinha rompantes de cólera. Ela sabia.
- Estava em casa... Não conseguia dormir... Precisamos acabar tudo agora, já... – ele falava com empáfia. (Ela silenciosa.)
- Cansei de tentar fazer de você, uma mulher de verdade... Mas tudo em você, inclusive essa sua silenciosa apatia, me enerva...
“Mas eu sou uma mulher de verdade. Não sou?...” – respondera ela emudecida, enquanto o amante prosseguia irascível:
- Fiz tudo para mudar este seu jeito... Nada adiantou...
“Mudar como, se nem eu sei quem sou?” – questionara ela calada, enquanto ele acusava:
- Lembra aquela viagem que tive de fazer com ela (a esposa) a Paris? O que trouxe de presente para você? Lembra? (Ela cabisbaixa.) Pois é, aquele belíssimo estojo de maquiagem... E o que você fez – lembra?... Pendurou uma alça, e achou ter feito a bolsa mais linda do mundo... Ridículo... (Os passos dele, acompanhados pelo tom de voz, também eram bruscos.)
“Quando mostrei a bolsa, você, furioso, destruiu-a, jogando todos os meus guardados na calçada...” – recordara tristonha e muda, enquanto o amante vociferava:
- E aquela vez que trouxe sushi para jantarmos juntos... Você lembra o que fez?... Não sei como, foi à cozinha e preparou moqueca de peixe, com um sorriso de satisfação ainda por cima... Uma vergonha...
“Ainda bem que você saiu sem jantar, porque o peixe que trouxe era pouco, cozido, então...” – respondera ela emudecida, enquanto ele ainda hostilizava:
- Definitivamente, você não é mulher de verdade... Nem pra amante você serve... Quanto mais te presenteava com perfumes, jóias e roupas caras, mais mal-arrumada você me esperava... Você parece retardada, Alice, ou então acha mesmo que vive no País das Maravilhas...
“Por que eu perderia horas, criando uma imagem que não sou eu, pra você desarrumar tudo em poucos minutos, com teus desejos insaciáveis?...” – perguntara em silêncio. Abrindo a porta, o amante arrematara:
- Não perco mais meu precioso tempo com você, porque o meu tempo vale ouro, dólares, euros, francos... Pra mim, chega!... – e o que ela ouviu foi só uma estrondosa batida da porta sendo fechada.
- Preciso te contar uma coisa... – ainda dissera ela emudecida. “Com certeza, ele me mandaria fazer aborto...” – pensara, enquanto revia o resultado comprovado da gravidez.
A escuridão da gruta clareia-lhe cada vez mais a memória. Agora, lembra que, naquela mesma madrugada em que o amante partiu, ela assumiu o ímpeto de colocar todas as coisas dele num saco de lixo, depositado em seguida na lixeira defronte à casa. Depois, movida pelo mesmo ímpeto, juntou todos os perfumes e produtos de maquiagem – inclusive, aqueles de Paris -, as jóias e roupas caras, colocando tudo num segundo saco de lixo, abandonado junto ao outro.
Quando voltou à sala – recorda agora, com os pés descalços na umidade escura -, pegou a colônia pós-barba, que, propositadamente, deixara sobre o sofá. Lentamente, despiu-se, na sala mesmo, e banhou-se com a colônia, esvaziando o pequeno frasco. Como num ritual, pegara uma taça, e começara destampar as garrafas de todas as bebidas que os amantes compartilharam. Suavemente, degustara todos os sabores alcoólicos, embriagando-se com as doses do esquecimento.
- Ele poderia ter mandado aqueles homens me sequestrarem... - arrisca verbalizar, pensando em seguida: “Não, ele disse que não perderia mais tempo e dinheiro comigo... Um sequestro deve custar caro...” (Desiste de buscar resposta.)
Não sabe o que (mais) pensar. Aliás, nunca soube. Durante toda a vida – quantos anos?... Quase trinta (sempre suprimiu a exatidão: tudo é quase, ou nada) -, o pensar de Alice foi pequeno, insignificante até para ela. É bem verdade que tinha pouco a lembrar, e menos ainda planejar ou sonhar. Alguma colega da fábrica de parafusos questionara, uma vez:
- Você não pensa, Alice?
- Pensar – em quê?...
- Alguma coisa... Pensar por pensar...
- Como se pensa por pensar?... - indagara, enquanto ouvia risos à volta.
O que ela gostava mesmo de fazer era sentir. Mas nem isso o pensar de Alice sabia.
Passava dez a doze horas por dia na fábrica, sem nunca ter reclamado hora-extra. Ficava sentindo os parafusos nas mãos – um por um, centenas, milhares deles -, e isso era tudo para ela. Era assim que Alice vivia: sentindo. O pensar fora sempre escravo do sentir. Não tocava o raio do sol, mas, desde pequena, espalmava as mãos e sentia o calor mais profundo, fechando-as logo depois. As mesmas mãos eram expostas à chuva, enquanto, pela janela, Alice então pensava: chove. Nada mais racionalizava. Assim crescera: sentindo, pensando (raras vezes) o que sentia, sem questionar, ou ir além. O pensar se entregava e se integrava ao sentir de Alice.
Lembra agora que, uma única vez, ao sair do trabalho, a noite já estava alta, enchendo o céu de escuridão. Foi ao atravessar a rua, que Alice (sempre cabisbaixa) enxergara a lua numa poça de chuva. Instintivamente, agachou, e primeiro tocou o reflexo da lua com a ponta dos dedos. Depois, imergiu a mão esquerda, mantendo a palma aberta na superfície. Fechou os olhos e a mão, para depois retirá-la, ainda molhada e fechada, guardando-a em segredo no bolso do velho casaco. Prazer maior não haveria para ela, que sentia na palma da mão fechada, a lua ainda tremeluzindo – não mais desamparada na poça d'água. Não havia o que pensar. Os olhos – brilhantes como a lua – sabiam disso.
Por diversas vezes, a mãe de Alice dissera que ela não valia nada. Na primeira vez que a ouviu falar assim, Alice ainda pensara: “Minha mãe descobriu o único segredo da minha existência”. Desde pequena, Alice sentia que carregava dentro dela, algo muito forte, que não valia nada. Mais forte que ela? Não sabia. O que tivera certeza, nas palavras da mãe, era que esse 'algo' fazia com que ela – Alice – não valesse nada. Nunca mais pensara, ou sequer recordara, isso. Agora, na gruta escura, sente a proporção do nada que ela vale. Em total desamparo, sem sequer pensar a respeito, Alice nada faz, rendendo-se ao sem-sentido.
No tempo de escola, Alice era sempre a última a sair. Olhava a sala vazia, e se despedia. Mas nada pensava, enquanto tocava a mesa, o quadro retangular na parede. Num desses dias, deparou-se logo adiante, no corredor, com uma das professoras.
- Você está chorando... - murmurou o sentir de Alice.
A professora, diante do olhar grave e inquiridor, limitou-se a enxugar as lágrimas, dizendo:
- Desculpe... Eu só estava pensando...
Alice, acompanhando os passos céleres, fugidios, ainda disse, sem ser ouvida:
- Não quero pensar... Quem pensa, chora...
Também saiu, seguindo os passos que já ecoavam pela escadaria. Sem pensar. Sem chorar. Só sentia – o quê?... Ela nunca soube, nem agora, quando se vê presa nesse breu.
Na gruta solitária, Alice dá passos em círculo, gestos desarticulados, grita:
- Socorro!... Alguém me ajude!... Socorro!...
O que ela ouve é o próprio eco – meio oco – de suas palavras em desespero. Nunca havia reparado na própria voz, enfraquecida pela desolação. Não demora muito, vencida pelo medo, senta no chão úmido, baixa a cabeça, apertando-a com as mãos. Levemente, toca os joelhos com a testa. E também suavemente as lágrimas brotam-lhe dos olhos cerrados. Alice chora a amarga escuridão que, vagarosamente, escorre-lhe no vazio da alma – essa incógnita por ela intocada.
Sentada na gruta escura, ela sente, pela primeira vez, necessidade de pensar concatenadamente. Pensar o quê?... Lembra agora a brincadeira da infância, quando, sozinha no quarto, misturava, com os olhos bem apertados, pequenos objetos que catava na rua da casa onde morava com o pai, depois que a mãe fugiu com um desconhecido. Deliciava-se por horas, só sentindo os objetos nas mãos, dando-lhes o nome exato – um a um. Depois, quando mudou de endereço com a solidão, Alice misturava diversos tipos de frutas – sempre de olhos fechados -, e também ficava nomeando-as. Nem imaginava que, assim, aquecia o sentir desamparado. Também, jamais usara relógio. O tempo era pouco, ou muito. E bastava saber (sentir) isso.
Lá pelos vinte e cinco anos (ou teria sido antes?), Alice descobriu a música (!). Durante meses, economizou o pouco que lhe sobrava do mísero salário na fábrica de parafusos. Comprou, finalmente, um aparelho de som usado. Até hoje, quando não está trabalhando ou dormindo, Alice senta na poltrona gasta, estica as pernas à mesinha de centro, fecha os olhos, e fica abraçada ao aparelho de som, enquanto as canções lhe trazem alento à alma – e ela nem sabe disso. Só sente.
Por um momento, com os olhos permanentemente cerrados, Alice ouve um som. “Que canção será esta que vem de tão longe – do mais perto de mim?...” - pensa extasiada. A melodia parece uma canção de ninar, mas ela não pensa, deixando-se simplesmente levar – elevar – pelo sentir: um bem súbito a imobiliza. Acalanto.
Aos poucos, timidamente, ainda sentada na rocha úmida, balança o tronco devagar: de trás para frente, de trás para frente de novo. Fecha a mão direita – olhos fechados e lacrimosos – e balbucia:
- Caco de vidro... Maçã... Parafuso...
Lentamente, abre a mão, os olhos, e seca uma lágrima fria e escura. Depois, para disfarçar de si mesma, toca o chão úmido. Ainda sem pensar, ajoelha, enquanto as mãos tateiam as pedras salientes do solo. De repente – surpresa! -, sente, com as pontas dos dedos, uma pedra diferente, que mais parece uma mão repousando. Num ato de ternura, acaricia a pedra, recordando o pai no C.T.I.: “Sei que o senhor não pode falar, mas quero que tenha a certeza de que estarei ao seu lado, segurando sempre a sua mão, para que não sinta frio”. E assim permanecera a mão de Alice, junto à mão do pai, até o caixão, antes do enterro do corpo dele.
A lembrança traz lágrimas envelhecidas, cansadas, contidas por uma dor que ela não pensa que existe. Amparando-se nas próprias mãos, Alice encosta a cabeça na pedra fria, e, em posição fetal, chora, chora até soluçar. Aos poucos, as lágrimas vão espaçando, e ela – sem pensar – adormece.
...
Quando desperta, mais uma vez o sobressalto. Já estava habituada a acordar com os raios do sol, ou a chuva escorrendo pela janela do quarto. Onde a mornidão das cobertas?... Não há coisa alguma que as pupilas dilatadas de Alice possam desvendar na silenciosa e escura gruta. Sentindo dores no corpo, causadas pelo mau jeito, levanta tateando a parede rochosa. Afasta-se um pouco (a gruta é pequena, como ela), agacha para urinar. Depois, arrastando os pés vacilantes, retorna para perto da pedra – a mão que repousa. Senta e sente fome. Não é tão-somente o estômago que se lhe apresenta cheio de vazio, mas a alma – a mais intrínseca imagem diluída do ser.
Sem qualquer resistência, Alice aguça os instintos. Nada contemporiza. Mais uma vez, se esgueira pelas paredes da gruta. Desta vez, um só objetivo: saciar a fome. Não sabe – nem quer saber – há quanto (pouco, muito?) tempo está sem comer. As mãos – vagas, desnorteadas – parecem lobos famintos à procura de – de quê?...
Arranha as pedras, de onde sente retirar um pouco de terra, que leva à boca animal. Come com voracidade. E retira mais terra dos espaços entre uma pedra e outra. E mais outra. Não pensa. Devora a terra, que enche a boca obstinada. Enquanto tateia as rochas, sente filamentos de raízes, os quais puxa com força instintiva, mastigando-os instantaneamente. O sabor parece-lhe forte – raízes profundas. Nem isso ela pensa.
Saciada a fome, Alice senta novamente ao lado da pedra que repousa em forma de mão abandonada. Lembra que, até agora, só conhecera a liberdade segura de repetir gestos e frases caricaturados pelos que passam sem deixar rastros. “Um existir descuidado” - é o que pensa, enquanto retira resquícios de terra dos dentes. Ela própria – nunca soubera – é um projeto incerto, por isso obscuro, ignorado.
Fazer o quê?... Não sabe, não consegue pensar além do que sente. Sempre vagou entre o finito e o infinito, como se a convergência deles fosse mero ponto de interrogação. E agora também não sabe se sobreviverá. E se sobreviver?...
Uma vez, escutara uma colega de trabalho reclamar de 'claustrofobia'. Alice ainda não tem certeza, mas supõe que seja a sensação de falta de ar, mesmo quando e onde existe ar. “Isso só deve acontecer com quem pensa.” - justifica-se resoluta.
Quanto tempo passara? (Qualquer pessoa pensaria isso no lugar dela – que lugar?...) Não tem a menor idéia. Que madrugada era aquela que tomou duas doses de uísque no bar estranho? Sábado – ela lembra, quase sem pensar.
“Estranho mesmo é os sequestradores não terem retornado”, pensa aleatoriamente. Ainda exercita: “Já deveriam ter vindo, pelo menos pra me pedirem a quem devem comunicar o sequestro”. Alice sabe, não há um só alguém no mundo que possa (queira) resgatá-la, ou que simplesmente sinta a ausência dela. No ambiente de trabalho, basta um dia de falta, para ser incluída na lista de 'abandono de emprego'. Ninguém irá procurá-la – nem para dar-lhe má notícia, nem convidá-la para sair. Isso, ela não precisa pensar. Pela primeira vez, sente um peso terrível na alma (“Se não é no corpo, só pode ser na alma, que dizem existir”). Solidão.
Uma contração forte e dolorida faz Alice apertar a barriga com os braços cruzados. Em seguida, sente líquido espesso escorrer-lhe pelas pernas trançadas no chão.
- Hemorragia?... - grita, lembrando a gravidez (ainda) impensada.
O instinto de Alice geme de dor, enquanto o sangue escorre – impassível – na escuridão da gruta. Contorcendo a barriga, ela ainda diz:
- Esse sangue é um sinal de que não estou só?... Mas sangue, acho que sempre tive... Filho, nunca pensei, nem tive...
Instintivamente, estica e abre as pernas, escorando o tronco com os braços apoiados no chão úmido. Grunhindo, treina o pensar:
- É assim que você quer vir ao mundo: líquido?... Como poderei te embalar, te proteger?...
Num só esforço, soergue as mãos, e, em forma de concha, recolhe um pouco do sangue que – sente – sai do útero em dor. Num só instinto de salvação, lambe as mãos, com os olhos sempre fechados. Repete o ritual. O choro se refugia em algum canto da alma rendida ao silêncio: espanto.
...
Calmamente, Alice sente a leve fragrância da alvura das cobertas. Devagar, abre os olhos, e se depara com o relógio digital à sua frente: dez para às cinco. Com ternura, desliga o despertador. Vira para o lado, fecha os olhos, esboçando sorriso despreocupado e leve (só os que nada pensam, conhecem). Enquanto a alma da Esfinge continua decifrando e devorando lá dentro...

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