segunda-feira, 14 de junho de 2010

O começo do fim

Dora Brisa

- Precisamos reformular nossas vidas, de modo que mamãe não fique sozinha - diz Francisco, o filho mais velho.
- Por mim, mamãe passa uns tempos com cada um de nós - propõe Augusto, o filho mais novo.
- Precisamos nos organizar. Agora que papai se foi, o importante é não deixarmos mamãe sozinha - pensa alto o filho do meio, Alberto.
Laura permanece silenciosa. Observa cada filho, e os olhos dela brilham. Depois de muito conversarem sobre "o que fazer com mamãe", os três a olham - também silenciosos. Em cada olhar, uma expectativa ansiosa, uma interrogação que salta cada vez mais longe, junto com o tempo que se esvai. Laura sabe que precisam dela - a palavra final. Mas, por não querer pensar nisso agora, nada diz.
- Como cresceram os nossos meninos, Rodolfo. - o pensar é vago, o sentir profundo, tanto que chega a suspirar diante dos três.
- E então, mamãe?... - pergunta o mais novo, olhando-a interrogativo.
- Guto, o nosso Guto, sempre o mais ansioso... - pensa Laura agora, esboçando-lhe um sorriso calmo, silencioso.
O filho mais velho reforça:
- Lá em casa, Sandra e eu preparamos um quarto para papai e mamãe. Mesmo depois que as crianças nasceram, o quarto continuou sendo deles. Pode passar o tempo que quiser conosco, mamãe...
- Este é o nosso Chico de sempre, meu querido Rodolfo. Nosso filho foi sempre apaziguador. - é o que Laura pensa, enquanto admira os fios prateados na cabeleira do filho. Instintivamente, olha para Alberto, que se manifesta agora:
- Mamãe, com o falecimento de papai, a senhora não pode ficar sozinha neste sítio. A senhora entende nossa preocupação?...
- Olha o nosso Beto, Rodolfo, sempre tão preocupado. - pensa Laura, enquanto mantém o silêncio e o olhar tranquilo para os três.
De repente, os filhos falam todos ao mesmo tempo, sem mais esperarem uma resposta da mãe. Os comentários tornam-se cada vez mais pueris. Chegam a fazer planos, incluindo passeios e viagens com a mãe. Laura, em seu mutismo, acha até graça do que ouve. O único gesto dela, enquanto o olhar brilha para os três, é o impulso lento que dá na cadeira de balanço onde está sentada.
Quando o vozerio em torno dela parece alterar-se, Laura finalmente ergue-se da cadeira, e fala com firmeza:
- Vamos à cozinha. Vou preparar um café pra nós.
Os filhos, trocando olhares interrogativos, a seguem. Enquanto a mãe prepara o café, eles cochicham.
- Talvez, seja melhor falarmos amanhã a respeito disso tudo. Ela deve estar cansada. - supõe Alberto.
- Coitada, sozinha agora... - lamenta Augusto.
- Vocês precisam ajudar-me a convencê-la ir pra casa comigo. Sandra e as crianças estão esperando por isso - reforça Francisco.
Laura sorri por dentro. Ela sabe sobre o que os filhos ainda conversam, mas finge ignorar.
- Rodolfo querido - ainda pensa -, nossos filhos cresceram, e continuam se preocupando à toa. Como você sempre disse, meu querido, é bom vê-los nos exercícios da vida, para que eles saibam o que fazer, quando os verdadeiros problemas chegarem...
- O café está pronto. - interrompe a mãe.
- A missa de sétimo dia do falecimento de papai estava tão linda, apesar da igreja vazia... - arrisca Francisco, enquanto toma o primeiro gole do café.
- Vazia, não, porque a família do Seu Rodolfo estava toda lá... - responde Augusto, mais à vontade.
Alberto fica cabisbaixo, silencioso, ainda com a colher na xícara. A mãe os observa, e nada diz. Só pensa:
- Rodolfo, meu querido, eles sofrem, cada qual do seu jeito...
Tomando seu café diante dos filhos silenciosos, Laura os analisa mentalmente, deixando prevalecer o brilho no olhar:
- Temos três filhos lindos, Rodolfo, filhos do nosso mais puro amor... Cada qual com sua vidinha...
O silêncio prevalece. Se os filhos ainda dizem alguma coisa, Laura agora está, além de emudecida, surda. Por um momento, sem fechar os olhos, a mãe se permite nada nem ninguém mais enxergar. Enquanto isso, o olhar de dentro submerge - límpido, altivo.
O que Laura revive agora nem parece uma cena guardada há mais de quinze anos. Nem um só fio de cabelo prateado na longa cabeleira de Francisco, que lhe diz timidamente:
- Mamãe, tenho um assunto importante para falar com a senhora...
- Claro, Chico... Sente aqui a meu lado, fale... O que anda passando nesta cabeça?...
- Eu e Sandra pretendemos nos casar...
- Que ótima notícia, meu filho. Por que a ruga na testa?...
- É um passo importante, mamãe, decisivo... A senhora entende?...
- Chico, meu querido, o casamento é um compromisso partilhado com familiares e amigos... Na vida de vocês, nada vai mudar... E vocês serão felizes, por que se amam...
- Isso quer dizer que temos a sua benção? Pensei que a senhora fosse achar muito cedo para casarmos...
- Cedo?... Nunca é cedo para o amor... Pena que alguns deixem o amor em segundo plano, para mais tarde, e este tarde nunca chega...
- E a benção, mamãe?...
- A benção? Claro que vocês têm a minha benção, e a do seu pai também...
- A senhora fala com papai?...
- Falo sim... Melhor ainda, esperamos seu pai voltar da cidade, e conversamos os três... O que acha?...
- Se a senhora acha melhor assim... - diz Francisco, beijando-lhe as mãos.
- Que este segredo fique entre nós, Chico querido: você é o meu filho preferido - confessa Laura baixinho.
O silêncio traz agora, do mais precioso baú da memória, outra cena. Desta vez, é Alberto, nos seus vinte anos:
- Mamãe, podemos conversar um pouco?...
- Sempre, Beto querido... Tenho visto você meio jururu pelos cantos... Alivia este seu coração lindo, meu filho...
- Sabe o que é, mamãe?... Bem... É que eu sou diferente do Guto e do Chico...
- Todos somos, Beto... Mas fale...
- Melhor eu ser direto... Pensei tanto, antes de confessar à senhora que eu... eu... eu sou homossexual, mamãe... Quer dizer, não me interesso por mulheres, mas por homens... Será que a senhora entende isso?...
- Confesso que, de alguma forma, meu coração já sabia disso, meu filho...
- Sabia?... Como, mamãe?... Nunca dei bandeira...
- Eu sentia, Beto querido... Posso nunca ter racionalizado a respeito, mas já sabia... - fala a mãe, alisando os cabelos do filho agachado junto à sua cadeira de balanço.
- A senhora não vai me condenar?... Não vai dizer que acabo de apunhalá-la pelas costas, mamãe?...
- Acha mesmo que eu reagiria assim, Beto?... Você continua sendo meu filho querido...
- Mamãe, a senhora é um anjo... - fala Alberto, deixando escorrerem lágrima no beijo que deposita na testa da mãe.
- Que este segredo fique entre nós, Beto querido: você é o meu filho preferido - confessa Laura baixinho.
A memória do coração devolve agora à Laura, a cena da formatura de Augusto, piloto. Ao receber o brevê, o filho mais novo falou ao microfone, agradecendo a todos. Com a voz embargada, ainda diz:
- No dia mais importante da minha vida, dedico toda minha gratidão à minha mãe e ao meu pai... Foram eles que, depois de me ensinarem a caminhar, me mostraram que eu também podia voar atrás dos meus sonhos...
Augusto desce do palco, abraça os pais, entre lágrimas e aplausos. O filho mais novo ainda consegue falar-lhes:
- Logo depois da cerimônia, terei meu primeiro vôo como piloto profissional. Vocês dois são meus convidados de honra.
- Que este segredo fique entre nós, Guto querido: você é o meu filho preferido - confessa Laura baixinho.
Num suspiro profundo, Laura levanta a cabeça, abre os olhos finalmente.
- A senhora está bem, mamãe? - pergunta Alberto preocupado.
- Estou sim... - responde Laura, afastando-se da mesa, e dirigindo-se à varanda. Os três a seguem, silenciosos. Quando vêem a mãe sentar-se na cadeira de balanço, acomodam-se no chão, ao redor dela, como sempre fizeram.
Laura sente necessidade de falar, e sabe o quanto os filhos precisam ouvi-la. Calmamente, ela começa:
- Compreendo a preocupação de vocês, filhos tão queridos... Mas nada muda, acreditem... Eu e o pai de vocês vivemos quarenta e nove anos juntos, unidos por um sentimento único... Depois de tanto tempo, nada muda... E, por isso, não existe solidão...
Ao longe, o crepúsculo. Na varanda, é Augusto quem fala:
- Mamãe, a senhora está com sessenta e sete anos... Precisa de companhia...
- Lá em casa, a senhora tem seu espaço respeitado. - aproveita Francisco.
- Só queremos ter certeza de que a senhora vai estar bem, mamãe. - explica Alberto.
- Meus queridos, minha vida está neste sítio que construí com Rodolfo... Aqui, vocês nasceram e cresceram, junto com esta natureza linda...
Laura silencia por um momento. Suspira, e depois continua:
- Cada um de vocês tem a sua vidinha. Vejam, meus queridos: Chico já está com quarenta e um anos, tem a Sandra, os três filhos lindos e a agência de turismo pra cuidar...
Olhando para Alberto, a mãe diz:
- Beto mora na Itália, já está com trinta e oito anos, e tem Armando e a agência de publicidade pra cuidar...
Encarando Augusto, Laura ainda fala:
- Guto vive voando por aí, já está com trinta e cinco anos, e ainda bem que tem Alice, pra um cuidar do outro...
Dividindo o olhar para os três, a mãe insiste:
- Enquanto cuidavam da vidinha de vocês, eu e seu pai também cuidamos da nossa... E já havíamos combinado que, quando um partisse, o outro permaneceria aqui, alimentando a mesma vida, o mesmo sentimento... E é isso que vou fazer...
- Mas, mamãe, se a senhora passar mal e... - engasga Augusto.
- E morrer? - completa Laura - Somos tão unidos, que vocês saberão, com certeza... Permanecerei aqui, fazendo o de sempre... Vocês me ligam... Ligo pra vocês também... Até porque estou muito bem de saúde, vocês viram os resultados de todos aqueles exames que fiz há pouco...
- Compreendemos o que a senhora nos diz, mamãe... Mas nos preocupamos... - justifica Alberto.
- Eu sei, meu filho... - responde Laura - Mas vocês precisam acreditar que nada vai mudar, que eu não vou ficar por aí chorando pelos cantos...
- Sandra e as crianças estão esperando a senhora lá em casa. - insiste Francisco.
- Não faltarão oportunidades para que nos visitemos... Somos uma família unida, e assim sempre seremos. - sorri a mãe. Ela sabe que o silêncio dos filhos significa concordância. Por isso, prossegue:
- Ainda bem que vocês compreendem e aceitam... Eu e o pai de vocês agradecemos por isso...
Augusto interrompe:
- Pois, dona Laura, a senhora se prepare, porque, a partir de agora, vamos pegar no seu pé...
- Boa idéia, Guto. - sorri Francisco.
- É isso mesmo. - declara Alberto.
- Sei que vocês, mesmo que quisessem, não conseguiriam pegar no meu pé. - sorri Laura - O que mais quero é que continuem no caminho digno, sem se preocuparem comigo por obrigação.
- Obrigação, mamãe? - intervém Francisco - Nada disso. Só nos preocupamos com a senhora, por amor mesmo.
- A senhora não precisa se preocupar, mamãe, porque vamos nos revezar pra pegar no seu pé. - diz Alberto.
- É isso que o Beto falou, mamãe. - confirma Augusto - A cada dia, a senhora ouvirá a voz de um filho ao telefone.
- Mas sempre recebo os telefonemas de vocês com tanta alegria... Isso não é pegar no pé. - ironiza Laura.
- O mais importante é que a senhora aceitou. - fala Francisco aliviado - Quando a senhora quiser passar uns tempos lá em casa, é só nos chamar, que viemos buscá-la...
- Eu sei, meus queridos, o quanto vocês sempre se preocuparam comigo e o seu pai... Também nós nos preocupamos sempre com vocês... Agora, um abraço, e vamos preparar nosso jantar...
Os quatro se abraçam com força, como sempre fizeram. Quando se olham, lágrimas escorrem nas fisionomias agora caladas. Laura (sabe) precisa falar:
- Continuamos sendo cinco... Não há falta... Se sentimos saudade, é porque tivemos convivência.. Por isso, estaremos sempre juntos...
Se abraçam novamente, e choram. Depois, como sempre fizeram, cada um seca as lágrimas dos outros, e acabam sorrindo. A mãe os chama à realidade:
- E então, quem prepara o jantar?...
- O Beto faz aquele spaghetti al pesto espetacular. - Augusto é o primeiro a responder.
- Isso mesmo, mamãe, coloca o Beto no fogão. - aprova Francisco.
- Tudo bem, já entendi, mas só aceito o encargo, se mamãe preparar aquela salada de legumes, e o Guto e o Chico lavarem e secarem todas as louças.
Os quatro se olham em silêncio, e cada qual já sabe o que fazer na cozinha.
Agora, jantam silenciosamente. Vez por outra, um dos filhos olha a cadeira vazia, na enorme mesa redonda. Laura quebra o silêncio:
- A cadeira vazia vai permanecer aqui, não como uma ausência, mas como presença do pai de vocês conosco... Não sintam dor por isso, meus queridos, porque, como podem ver, não há cadeira marcada para nem um de nós... Sempre fomos cinco, e assim continuaremos... Claro, nas reuniões de família, vêm meus três netos queridos, mais Armando, Alice e Sandra... Assim, completamos a família do Seu Rodolfo...
Os três levantam, quase ao mesmo tempo, olham-se por um instante só, e abraçam a mãe com ternura. Nada precisa ser dito.
Cozinha limpa, todos vão deitar. O quarto dos "meninos" é mantido sempre em ordem por Laura. Cada qual dirige-se à sua cama de adolescência, enquanto a mãe fica a admirá-los na porta. Depois do beijo de boa noite, Laura ainda diz:
- Vocês são nosso maior tesouro... Durmam bem, queridos... Também estou precisando repousar... - fecha a porta do quarto, e vai para o quarto dela e de Rodolfo.
Laura desperta com os primeiros assovios da passarinhada do sítio. Levanta devagar, prepara e toma um café. Por um momento, sorri, e chega a cochichar:
- Será que tudo está no mesmo lugar, meu querido?...
Corre à janela da área de serviço e fala baixinho:
- A escada está aqui... Será que a nossa bicicleta está lá, Rodolfo?...
Os três filhos nem sonham que, pouco depois da cinco horas da manhã, a mãe deles pula a pequena e baixa janela da área de serviço, descendo em seguida pela escada ali providencialmente instalada por ela e o marido. Em passos lépidos, Laura segue a estradinha de cascalho que leva direto ao antigo alpendre.
Quando abre a porta, suspira profundamente. O olhar procura a bicicleta.
- Tem de estar por aqui... Isso... Aqui está a nossa bicicleta, meu querido... Lembro o dia em que você trouxe da cidade as duas bicicletas, na carroceria do caminhão... Ainda não tínhamos os meninos...
Diante da lembrança, tirando a poeira da bicicleta, Laura sorri:
- Nem imaginava que você iria desmontá-las, Rodolfo... E você mexeu, remexeu, soldou aqui e ali, e fez uma só bicicleta para nós dois... Vamos dar uma volta, querido?... - pergunta em voz alta, enquanto leva a bicicleta dupla para fora.
Entre as árvores, Laura monta na bicicleta, ainda falando com o marido:
- Hoje, você vai precisar sentar aí atrás, Rodolfo, no meu lugar... Quem vai nos levar para o nascer do sol sou eu... - e sai pedalando pela estradinha cuidada por ela e Rodolfo. Passando pelo açude, pelo catavento, acelerando as pedaladas em direção da colina, no horizonte, Laura sorri mais ainda:
- Nossos filhos imaginam que seja o fim, Rodolfo querido... E a nossa vida está apenas no começo...

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