sexta-feira, 30 de julho de 2010

Pela janela

Dora Brisa
(Para Drummond, companhia a qualquer hora)

Todas as paredes do pequeno apartamento escutam Liszt, em Consolation in E Major. O mormaço insiste em tomar conta das frestas das poucas janelas entreabertas. É tarde de sábado.
Somente na sala, a janela exibe cortinas arregaçadas. Lá fora, o silêncio é tanto, que Liszt chega a pairar nos ouvidos sensíveis. Como se os demais sentidos estivessem adormecidos.
No canto mais próximo à janela, há anos repousa uma poltrona. Fiel ao seu dono, permanece ali, convidando-o ao repouso. É o que ele faz agora, com seus óculos cansados de enxergar a vida, e um livro aberto, suavemente depositado nas mãos.
Por um momento, chega a esquecer que hoje é sábado. O livro que lê - Kafka - o distancia da realidade que nunca foi dele. Nem hesita, rendendo-se à leitura, ao mormaço. No apartamento, Liszt e Kafka mantêm diálogo de convivência antiga.
Num único instante, toda a paisagem (incluindo o silêncio de Kafka e Liszt) é quebrada. Pior que uma tempestade, uma buzina, ou uma briga de casal lá fora, a campainha soa estridente, desesperada. Como despertando de um (longo e pesado) sono, lentamente ele fecha os olhos, num mínimo gesto de retomada de consciência. Com a insistência da campainha, em sinal de derrota, repousa Kafka na cadeira de balanço, enquanto procura em vão o par de chinelos.
Numa atitude quase involuntária, dirige-se à porta, surpreendendo o par de olhos desesperados que o aguarda. A fisionomia do homem é cansada, mas não o reconhece. Nem poderia. O homem vem de longe, fala da vida, da longa viagem que fez, há dezoito meses, para estar naquela cidade.
A circunstância, por mais inusitada que pareça, é assim mesmo que se desenrola. Porta aberta, um homem com a barba por fazer, quase maltrapilho, adentra subitamente no apartamento. Fala muito, gesticula mais ainda, enquanto os olhos escamoteiam rios de lágrimas.
Atônito, o já velho dono do apartamento, da poltrona, esquece Liszt, Kafka, e todos seus fiéis companheiros na estante. No olhar, ressurge o sentimento mais puro que tem em relação à humanidade: piedade. Aos poucos, resgata, mais uma vez, todos os sentidos, concentrando atenção no desconhecido.
Enquanto aponta-lhe a poltrona, o estranho repete que veio do interior, com a mulher com quem recém casara. Muitos sonhos, nenhum projeto de vida. "Enquanto eu buscava serviço decente, ela se arranjava numa casa de tolerância", desabafa o coitado. O confidente não esboça qualquer reação, permitindo que o homem continue a falar da miséria, da morte da mãe, da solidão.
Após esses minutos de relato de uma vida inteira, o pobre homem respira fundo, e se cala. Em gesto menos surpreendente do que havia feito na porta, confessa que tem um só pedido a fazer. O velho espectador, já sentindo-se cúmplice, apenas acena com a cabeça afirmativamente. Outro silêncio toma conta da sala, maior que o silêncio de Liszt e Kafka.
Com o olhar concentrado na janela, o homem pede para pular dali. "Não tenho para onde ir, nem quero ir ou ficar em lugar algum. Só preciso de uma passagem", quase implora. O confidente está impassível, diante da janela.
Em segundos, com os olhos vidrados na janela, o homem joga a vida, as lembranças, o desespero...
É final de tarde. Sábado. Como sempre acontece, o velho acorda na poltrona. Os óculos adormecem em cima do livro prestes a cair. Lá fora, buzinas ensurdecem Liszt, que ainda insiste em Consolation in E Major.
De repente, a consciência. Volta o olhar à janela, ainda escancarada, como a perguntar alguma coisa. Os sons lá de fora invadem o ambiente. Num ímpeto, fecha a janela, repousa Kafka na cadeira de balanço.
Anoitece. A campainha não toca. E todas as paredes continuam a escutar Liszt.

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