terça-feira, 29 de junho de 2010

Desencontro

Dora Brisa

Eu sinto vazio na alma,
Enquanto você me diz
Que a mesa está vazia...
Eu te peço calma,
Enquanto você reclama
Dos preços na padaria...
Eu observo as linhas da palma,
Enquanto você suja de
Feijão o papel com poesia.

Eu perco o sono na madrugada,
Enquanto você procura
Receita de massa de pastel.
Eu não quero saber de nada,
Enquanto você me cobra
O dinheiro do aluguel.
Eu choro pela vida desregrada,
Enquanto você sonha estar
Numa cama redonda de motel.

Eu chego pensar em morte,
Enquanto você remenda
Nossas roupas desbotadas.
Eu não sei como ser forte,
Enquanto você planeja para o
Natal, mais gostosas rabanadas.
Eu cambaleio sem suporte,
Enquanto você calcula tantas
Contas na vida somadas.

Eu não sei o que escrever,
Enquanto você acompanha
Novela na televisão.
Eu quero tudo esquecer,
Enquanto você diz sentir
Dor forte no coração.
Eu tento desabafar com você,
Enquanto você olha no relógio,
E vai pra fila do sopão.

Eu te falo de sonho acordado,
E você diz que tem dormido
Doloridamente e tão pouco.
Eu limpo o pijama vomitado,
Enquanto você ensaia um canto
De igreja, meio rouco.
Eu já nem te escrevo recado,
Enquanto você lê no jornal,
O suicídio de um louco.

Eu quero contigo gritar,
Enquanto você reclama que
Acabou o pó pro café.
Eu ainda tento a esperança salvar,
Enquanto você diz que a condução
Do trabalho quebrou: vai a pé.
Eu procuro, na esquina, o bar,
Enquanto você me aparece, na
Carteira vazia, numa foto qualquer.

Eu busco aquele vinil de Vivaldi,
Enquanto você varre a sala,
De cansaço, espana tudo.
Eu sei que agora é tarde,
Enquanto você abre a porta,
Diante do meu corpo mudo.
Eu quero uma só palavra que invade,
Enquanto você retira a toalha
Suja de cima do criado-mudo.

Eu te pergunto da comida,
Do pagamento do aluguel,
Do pó do café, da dor.
Você me responde que a vida
Virou um grande sarapatel:
Não falta mais comida, nem amor.
Só enxergo a porta da saída,
Atrás de uma cortina em véu:
Sem palavra, sem calor.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Meu plural

Dora Brisa

Pensando nos meus amigos, vejo que todos somos tão diferentes, e ao mesmo tempo tão iguais...
Tenho amigos que não me procuram, não me falam coisas – nem da própria vida, nem da vida dos outros. Outro amigos me procuram a todo momento, contando coisas da vida.
Tenho amigos que, quando me procuram, estão sempre chorando por alguma coisa. Outros amigos me procuram pra contar piadas, sorrir junto.
Tenho amigos que se aproximam em silêncio, e em silêncio se afastam. Outros amigos chegam fazendo alarde, e movimentam a minha vida.
Tenho amigos que sentem ciúmes de mim, e às vezes até 'emburram' por causa disso, e me punem com a ausência deles. Outros amigos me apresentam os amigos deles e fazem amizade com os meus amigos – e a família aumenta.
Tenho amigos que, quando me procuram, é para falar sobre economia, política, situação do País, profissões, mercado de trabalho. Outros amigos compartilham comigo a alma poética, e viajamos juntos por nuvens que eu (ainda) não conhecia.
Tenho amigos que me falam de futilidades, brincam com as vaidades, e acabamos rindo juntos. Outros amigos só me dizem coisas sérias, abismais até, e nos perdemos em questões existenciais.
Tenho amigos que estão sempre procurando um jeito pra falarem comigo, se preocupando como vão me tratar. Outros amigos me chegam de qualquer jeito, e rimos à toa, ou até choramos.
Tenho amigos que não me compreendem, ou talvez não me aceitem, mas nem por isso deixam de me buscar. Outros amigos, sem questionarem se me entendem ou não, permanecem comigo na caminhada atemporal.
Tenho amigos pretos, brancos, vermelhos, amarelos – coloridos de alma. Tenho amigos melancólicos, alegres, silenciosos, festeiros. São amigos queridos que sempre encontram no meu coração, o aconchego. Sei que todos os meus amigos são o meu plural – por que eu sou cadinho de cada um deles.
Arte: Enise - Voz: Rosany Costa:

sábado, 26 de junho de 2010

Poema ateu

Dora Brisa

Com mais de dois mil anos de atraso,
Li em algum lugar
Que um dia nasceu o
“Salvador do Mundo”.
Crucificaram-no
(isso já é outra história).
O livro contava que o
Salvador falava de Deus:
“Meu Pai que está no céu”.
Mas a notícia me chegou tarde –
Mais de dois mil anos
Tinham passado.
E eu não conheci o Salvador,
Nem Deus que Ele clamava.
Alguém um dia comentou que
Ele – o Salvador – morreu
Por nós, para nos salvar
Dos nossos pecados.
E eu ainda peco,
Mais de dois mil anos depois.
(Nem ouso ajoelhar-me
em pedido de perdão)
O Salvador nasceu, morreu,
Nem O conheci.
Quem me salvará do que
Ainda não sei?
Na madrugada, olho o céu,
E não enxergo mais
Que a lua e as estrelas.
Por vezes, ouso indagar:
- Onde repousa aquele olhar
Que um dia reconheceu o
Pai no céu?...
Que as minhas palavras
A ninguém magoe.
De resto,
Que Deus perdoe
(Não meus pecados)
Meu atraso de mais de dois mil anos.
Eu não sabia.
E ainda não sei – de mim.

Resposta

Dora Brisa

Tu me perguntas:
Quem sou?
Onde estou?
Sou qualquer coisa
que fica sempre
entre
a primeira árvore
e
o último fruto,
o mar
e
o rochedo,
a lágrima
e
a dor,
o papel branco
e
o silêncio,
a ponte
e
o nada,
o tropeço
e
a queda,
a música
e
o sangue,
o primeiro grito
e
a morte,
o frio
e
a escuridão.
Sou só isso
Onde estou.

na minha voz:

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Palavra

Dora Brisa

Sou a palavra
Que sangra
Que mata

Sou a palavra
Que outra palavra
Desata

Sou a palavra
Que morre
Antes de ser dita

Sou a palavra
Que socorre
A sina maldita

Sou a palavra
Que queima
Que arde

Sou a palavra
Que teima
Ainda que seja tarde

Sou a palavra
Que consome
Que apavora

Sou a palavra
Sem nome
Sem hora

Sou a palavra
Que não sai pela boca
Palavra jamais escrita

Sou a palavra
Sem sentido – oca
Sem linguagem descrita

Sou a palavra
Despida de letras
Essencialmente nua

Sou a palavra
Que não foi inventada
domesticada
Jogada na rua.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Anúncio trocado

Dora Brisa

Troca-se:

Um sol forte
por
Uma brisa morna

Uma coleção de cds
por
Um disco voador

Uma cama
por
Um amor

Uma prótese em desuso
por
Um sorriso banguela

Um livro
por
Um caderno em branco

Um quilo de chocolate
por
Um pingo de juízo

Um aquário
por
Um riacho

Uma verdade absoluta
por
Mil e uma indagações

Uma gravata
por
Um espelho

Uma gaiola
por
Uma nuvem

Uma rede
por
Um colo

Um sorriso amarelo
por
Um dia branco

Um uniforme
por
Uma pipa

Uma caneca sem asa
por
Dois pássaros voando

Uma janela
por
Um par de lentes de descanso

Jornais antigos
por
Folhas secas

Uma bengala
por
Uma bicicleta

Uma carona
por
Um ninho

Uma conta a pagar
por
Uma carta anônima

Um relógio-ponto
por
Uma Catedral

Quatro paredes
por
Um infinito

Uma pesquisa mercadológica
por
Um formigueiro

Um chuveiro
por
Um passeio à beira-mar

Recusa-se pedido
(nostálgico)
de devolução.

S.P.L.S.
(Sociedade dos
Poetas
Loucos
Sonhadores)

Voz - Helena Antoun:

segunda-feira, 14 de junho de 2010

O começo do fim

Dora Brisa

- Precisamos reformular nossas vidas, de modo que mamãe não fique sozinha - diz Francisco, o filho mais velho.
- Por mim, mamãe passa uns tempos com cada um de nós - propõe Augusto, o filho mais novo.
- Precisamos nos organizar. Agora que papai se foi, o importante é não deixarmos mamãe sozinha - pensa alto o filho do meio, Alberto.
Laura permanece silenciosa. Observa cada filho, e os olhos dela brilham. Depois de muito conversarem sobre "o que fazer com mamãe", os três a olham - também silenciosos. Em cada olhar, uma expectativa ansiosa, uma interrogação que salta cada vez mais longe, junto com o tempo que se esvai. Laura sabe que precisam dela - a palavra final. Mas, por não querer pensar nisso agora, nada diz.
- Como cresceram os nossos meninos, Rodolfo. - o pensar é vago, o sentir profundo, tanto que chega a suspirar diante dos três.
- E então, mamãe?... - pergunta o mais novo, olhando-a interrogativo.
- Guto, o nosso Guto, sempre o mais ansioso... - pensa Laura agora, esboçando-lhe um sorriso calmo, silencioso.
O filho mais velho reforça:
- Lá em casa, Sandra e eu preparamos um quarto para papai e mamãe. Mesmo depois que as crianças nasceram, o quarto continuou sendo deles. Pode passar o tempo que quiser conosco, mamãe...
- Este é o nosso Chico de sempre, meu querido Rodolfo. Nosso filho foi sempre apaziguador. - é o que Laura pensa, enquanto admira os fios prateados na cabeleira do filho. Instintivamente, olha para Alberto, que se manifesta agora:
- Mamãe, com o falecimento de papai, a senhora não pode ficar sozinha neste sítio. A senhora entende nossa preocupação?...
- Olha o nosso Beto, Rodolfo, sempre tão preocupado. - pensa Laura, enquanto mantém o silêncio e o olhar tranquilo para os três.
De repente, os filhos falam todos ao mesmo tempo, sem mais esperarem uma resposta da mãe. Os comentários tornam-se cada vez mais pueris. Chegam a fazer planos, incluindo passeios e viagens com a mãe. Laura, em seu mutismo, acha até graça do que ouve. O único gesto dela, enquanto o olhar brilha para os três, é o impulso lento que dá na cadeira de balanço onde está sentada.
Quando o vozerio em torno dela parece alterar-se, Laura finalmente ergue-se da cadeira, e fala com firmeza:
- Vamos à cozinha. Vou preparar um café pra nós.
Os filhos, trocando olhares interrogativos, a seguem. Enquanto a mãe prepara o café, eles cochicham.
- Talvez, seja melhor falarmos amanhã a respeito disso tudo. Ela deve estar cansada. - supõe Alberto.
- Coitada, sozinha agora... - lamenta Augusto.
- Vocês precisam ajudar-me a convencê-la ir pra casa comigo. Sandra e as crianças estão esperando por isso - reforça Francisco.
Laura sorri por dentro. Ela sabe sobre o que os filhos ainda conversam, mas finge ignorar.
- Rodolfo querido - ainda pensa -, nossos filhos cresceram, e continuam se preocupando à toa. Como você sempre disse, meu querido, é bom vê-los nos exercícios da vida, para que eles saibam o que fazer, quando os verdadeiros problemas chegarem...
- O café está pronto. - interrompe a mãe.
- A missa de sétimo dia do falecimento de papai estava tão linda, apesar da igreja vazia... - arrisca Francisco, enquanto toma o primeiro gole do café.
- Vazia, não, porque a família do Seu Rodolfo estava toda lá... - responde Augusto, mais à vontade.
Alberto fica cabisbaixo, silencioso, ainda com a colher na xícara. A mãe os observa, e nada diz. Só pensa:
- Rodolfo, meu querido, eles sofrem, cada qual do seu jeito...
Tomando seu café diante dos filhos silenciosos, Laura os analisa mentalmente, deixando prevalecer o brilho no olhar:
- Temos três filhos lindos, Rodolfo, filhos do nosso mais puro amor... Cada qual com sua vidinha...
O silêncio prevalece. Se os filhos ainda dizem alguma coisa, Laura agora está, além de emudecida, surda. Por um momento, sem fechar os olhos, a mãe se permite nada nem ninguém mais enxergar. Enquanto isso, o olhar de dentro submerge - límpido, altivo.
O que Laura revive agora nem parece uma cena guardada há mais de quinze anos. Nem um só fio de cabelo prateado na longa cabeleira de Francisco, que lhe diz timidamente:
- Mamãe, tenho um assunto importante para falar com a senhora...
- Claro, Chico... Sente aqui a meu lado, fale... O que anda passando nesta cabeça?...
- Eu e Sandra pretendemos nos casar...
- Que ótima notícia, meu filho. Por que a ruga na testa?...
- É um passo importante, mamãe, decisivo... A senhora entende?...
- Chico, meu querido, o casamento é um compromisso partilhado com familiares e amigos... Na vida de vocês, nada vai mudar... E vocês serão felizes, por que se amam...
- Isso quer dizer que temos a sua benção? Pensei que a senhora fosse achar muito cedo para casarmos...
- Cedo?... Nunca é cedo para o amor... Pena que alguns deixem o amor em segundo plano, para mais tarde, e este tarde nunca chega...
- E a benção, mamãe?...
- A benção? Claro que vocês têm a minha benção, e a do seu pai também...
- A senhora fala com papai?...
- Falo sim... Melhor ainda, esperamos seu pai voltar da cidade, e conversamos os três... O que acha?...
- Se a senhora acha melhor assim... - diz Francisco, beijando-lhe as mãos.
- Que este segredo fique entre nós, Chico querido: você é o meu filho preferido - confessa Laura baixinho.
O silêncio traz agora, do mais precioso baú da memória, outra cena. Desta vez, é Alberto, nos seus vinte anos:
- Mamãe, podemos conversar um pouco?...
- Sempre, Beto querido... Tenho visto você meio jururu pelos cantos... Alivia este seu coração lindo, meu filho...
- Sabe o que é, mamãe?... Bem... É que eu sou diferente do Guto e do Chico...
- Todos somos, Beto... Mas fale...
- Melhor eu ser direto... Pensei tanto, antes de confessar à senhora que eu... eu... eu sou homossexual, mamãe... Quer dizer, não me interesso por mulheres, mas por homens... Será que a senhora entende isso?...
- Confesso que, de alguma forma, meu coração já sabia disso, meu filho...
- Sabia?... Como, mamãe?... Nunca dei bandeira...
- Eu sentia, Beto querido... Posso nunca ter racionalizado a respeito, mas já sabia... - fala a mãe, alisando os cabelos do filho agachado junto à sua cadeira de balanço.
- A senhora não vai me condenar?... Não vai dizer que acabo de apunhalá-la pelas costas, mamãe?...
- Acha mesmo que eu reagiria assim, Beto?... Você continua sendo meu filho querido...
- Mamãe, a senhora é um anjo... - fala Alberto, deixando escorrerem lágrima no beijo que deposita na testa da mãe.
- Que este segredo fique entre nós, Beto querido: você é o meu filho preferido - confessa Laura baixinho.
A memória do coração devolve agora à Laura, a cena da formatura de Augusto, piloto. Ao receber o brevê, o filho mais novo falou ao microfone, agradecendo a todos. Com a voz embargada, ainda diz:
- No dia mais importante da minha vida, dedico toda minha gratidão à minha mãe e ao meu pai... Foram eles que, depois de me ensinarem a caminhar, me mostraram que eu também podia voar atrás dos meus sonhos...
Augusto desce do palco, abraça os pais, entre lágrimas e aplausos. O filho mais novo ainda consegue falar-lhes:
- Logo depois da cerimônia, terei meu primeiro vôo como piloto profissional. Vocês dois são meus convidados de honra.
- Que este segredo fique entre nós, Guto querido: você é o meu filho preferido - confessa Laura baixinho.
Num suspiro profundo, Laura levanta a cabeça, abre os olhos finalmente.
- A senhora está bem, mamãe? - pergunta Alberto preocupado.
- Estou sim... - responde Laura, afastando-se da mesa, e dirigindo-se à varanda. Os três a seguem, silenciosos. Quando vêem a mãe sentar-se na cadeira de balanço, acomodam-se no chão, ao redor dela, como sempre fizeram.
Laura sente necessidade de falar, e sabe o quanto os filhos precisam ouvi-la. Calmamente, ela começa:
- Compreendo a preocupação de vocês, filhos tão queridos... Mas nada muda, acreditem... Eu e o pai de vocês vivemos quarenta e nove anos juntos, unidos por um sentimento único... Depois de tanto tempo, nada muda... E, por isso, não existe solidão...
Ao longe, o crepúsculo. Na varanda, é Augusto quem fala:
- Mamãe, a senhora está com sessenta e sete anos... Precisa de companhia...
- Lá em casa, a senhora tem seu espaço respeitado. - aproveita Francisco.
- Só queremos ter certeza de que a senhora vai estar bem, mamãe. - explica Alberto.
- Meus queridos, minha vida está neste sítio que construí com Rodolfo... Aqui, vocês nasceram e cresceram, junto com esta natureza linda...
Laura silencia por um momento. Suspira, e depois continua:
- Cada um de vocês tem a sua vidinha. Vejam, meus queridos: Chico já está com quarenta e um anos, tem a Sandra, os três filhos lindos e a agência de turismo pra cuidar...
Olhando para Alberto, a mãe diz:
- Beto mora na Itália, já está com trinta e oito anos, e tem Armando e a agência de publicidade pra cuidar...
Encarando Augusto, Laura ainda fala:
- Guto vive voando por aí, já está com trinta e cinco anos, e ainda bem que tem Alice, pra um cuidar do outro...
Dividindo o olhar para os três, a mãe insiste:
- Enquanto cuidavam da vidinha de vocês, eu e seu pai também cuidamos da nossa... E já havíamos combinado que, quando um partisse, o outro permaneceria aqui, alimentando a mesma vida, o mesmo sentimento... E é isso que vou fazer...
- Mas, mamãe, se a senhora passar mal e... - engasga Augusto.
- E morrer? - completa Laura - Somos tão unidos, que vocês saberão, com certeza... Permanecerei aqui, fazendo o de sempre... Vocês me ligam... Ligo pra vocês também... Até porque estou muito bem de saúde, vocês viram os resultados de todos aqueles exames que fiz há pouco...
- Compreendemos o que a senhora nos diz, mamãe... Mas nos preocupamos... - justifica Alberto.
- Eu sei, meu filho... - responde Laura - Mas vocês precisam acreditar que nada vai mudar, que eu não vou ficar por aí chorando pelos cantos...
- Sandra e as crianças estão esperando a senhora lá em casa. - insiste Francisco.
- Não faltarão oportunidades para que nos visitemos... Somos uma família unida, e assim sempre seremos. - sorri a mãe. Ela sabe que o silêncio dos filhos significa concordância. Por isso, prossegue:
- Ainda bem que vocês compreendem e aceitam... Eu e o pai de vocês agradecemos por isso...
Augusto interrompe:
- Pois, dona Laura, a senhora se prepare, porque, a partir de agora, vamos pegar no seu pé...
- Boa idéia, Guto. - sorri Francisco.
- É isso mesmo. - declara Alberto.
- Sei que vocês, mesmo que quisessem, não conseguiriam pegar no meu pé. - sorri Laura - O que mais quero é que continuem no caminho digno, sem se preocuparem comigo por obrigação.
- Obrigação, mamãe? - intervém Francisco - Nada disso. Só nos preocupamos com a senhora, por amor mesmo.
- A senhora não precisa se preocupar, mamãe, porque vamos nos revezar pra pegar no seu pé. - diz Alberto.
- É isso que o Beto falou, mamãe. - confirma Augusto - A cada dia, a senhora ouvirá a voz de um filho ao telefone.
- Mas sempre recebo os telefonemas de vocês com tanta alegria... Isso não é pegar no pé. - ironiza Laura.
- O mais importante é que a senhora aceitou. - fala Francisco aliviado - Quando a senhora quiser passar uns tempos lá em casa, é só nos chamar, que viemos buscá-la...
- Eu sei, meus queridos, o quanto vocês sempre se preocuparam comigo e o seu pai... Também nós nos preocupamos sempre com vocês... Agora, um abraço, e vamos preparar nosso jantar...
Os quatro se abraçam com força, como sempre fizeram. Quando se olham, lágrimas escorrem nas fisionomias agora caladas. Laura (sabe) precisa falar:
- Continuamos sendo cinco... Não há falta... Se sentimos saudade, é porque tivemos convivência.. Por isso, estaremos sempre juntos...
Se abraçam novamente, e choram. Depois, como sempre fizeram, cada um seca as lágrimas dos outros, e acabam sorrindo. A mãe os chama à realidade:
- E então, quem prepara o jantar?...
- O Beto faz aquele spaghetti al pesto espetacular. - Augusto é o primeiro a responder.
- Isso mesmo, mamãe, coloca o Beto no fogão. - aprova Francisco.
- Tudo bem, já entendi, mas só aceito o encargo, se mamãe preparar aquela salada de legumes, e o Guto e o Chico lavarem e secarem todas as louças.
Os quatro se olham em silêncio, e cada qual já sabe o que fazer na cozinha.
Agora, jantam silenciosamente. Vez por outra, um dos filhos olha a cadeira vazia, na enorme mesa redonda. Laura quebra o silêncio:
- A cadeira vazia vai permanecer aqui, não como uma ausência, mas como presença do pai de vocês conosco... Não sintam dor por isso, meus queridos, porque, como podem ver, não há cadeira marcada para nem um de nós... Sempre fomos cinco, e assim continuaremos... Claro, nas reuniões de família, vêm meus três netos queridos, mais Armando, Alice e Sandra... Assim, completamos a família do Seu Rodolfo...
Os três levantam, quase ao mesmo tempo, olham-se por um instante só, e abraçam a mãe com ternura. Nada precisa ser dito.
Cozinha limpa, todos vão deitar. O quarto dos "meninos" é mantido sempre em ordem por Laura. Cada qual dirige-se à sua cama de adolescência, enquanto a mãe fica a admirá-los na porta. Depois do beijo de boa noite, Laura ainda diz:
- Vocês são nosso maior tesouro... Durmam bem, queridos... Também estou precisando repousar... - fecha a porta do quarto, e vai para o quarto dela e de Rodolfo.
Laura desperta com os primeiros assovios da passarinhada do sítio. Levanta devagar, prepara e toma um café. Por um momento, sorri, e chega a cochichar:
- Será que tudo está no mesmo lugar, meu querido?...
Corre à janela da área de serviço e fala baixinho:
- A escada está aqui... Será que a nossa bicicleta está lá, Rodolfo?...
Os três filhos nem sonham que, pouco depois da cinco horas da manhã, a mãe deles pula a pequena e baixa janela da área de serviço, descendo em seguida pela escada ali providencialmente instalada por ela e o marido. Em passos lépidos, Laura segue a estradinha de cascalho que leva direto ao antigo alpendre.
Quando abre a porta, suspira profundamente. O olhar procura a bicicleta.
- Tem de estar por aqui... Isso... Aqui está a nossa bicicleta, meu querido... Lembro o dia em que você trouxe da cidade as duas bicicletas, na carroceria do caminhão... Ainda não tínhamos os meninos...
Diante da lembrança, tirando a poeira da bicicleta, Laura sorri:
- Nem imaginava que você iria desmontá-las, Rodolfo... E você mexeu, remexeu, soldou aqui e ali, e fez uma só bicicleta para nós dois... Vamos dar uma volta, querido?... - pergunta em voz alta, enquanto leva a bicicleta dupla para fora.
Entre as árvores, Laura monta na bicicleta, ainda falando com o marido:
- Hoje, você vai precisar sentar aí atrás, Rodolfo, no meu lugar... Quem vai nos levar para o nascer do sol sou eu... - e sai pedalando pela estradinha cuidada por ela e Rodolfo. Passando pelo açude, pelo catavento, acelerando as pedaladas em direção da colina, no horizonte, Laura sorri mais ainda:
- Nossos filhos imaginam que seja o fim, Rodolfo querido... E a nossa vida está apenas no começo...

Impossivelmente real

Dora Brisa

A realidade não me compreende,
E o que existe de real em mim
É essa incompreensão pura.
Nada me falta, nada me sobra,
Por que a realidade não me suporta,
Nem me sustenta, ou me acredita.
Fui feita e nascida
À revelia da realidade,
Que me desconhece, ou me ignora.
Assim vivo - à margem da realidade
Que não me enxerga, não me sabe.
O mais real que há em mim
É essa realidade torturante,
Que não chega se fazer presente,
Por que, antes e acima de tudo,
Prevalece o meu existir ignóbil,
Breve, ainda que pesado,
Forjado a ferro e fogo pelas
Chamuscadas farpas de uma
Realidade tão sem sentido
Quão a própria existência humana.

Voz - Gília:

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Oferta

Dora Brisa

Não me leve a mal,
Se te ofereço copo vazio,
Por que também
Minha vida está vazia,
Meus sonhos esvaziaram
Meu olhar,
Meu coração,
E até minha alma.

Não me leve a mal,
Se já não me acho mais,
De tão vazia que estou,
No vazio do mundo
Que esvazia a minha cabeça,
Vazia de tantos vazios
Que esvaziaram
Meus ideais.

Não me leve a mal,
Se o copo está cheio,
Tão cheio de vazio,
Que transborda no
Vazio do meu silêncio,
Que esvazia qualquer possibilidade
De uma reação vazia,
No vazio de mais esta noite vazia.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Minha canção

Dora Brisa

Ouça, presta atenção:
Esta não é a tua vida.
É apenas a minha canção.
Sou uma criatura perdida,
E não tenho a pretensão
De cantar frase florida,
Emocionar teu coração.

Meu grito é de dor,
E o que você procura
É música que canta o amor.
Nada mais me segura,
Canto sozinha, sem favor,
Jogo a minha máscara pura:
Veja minha cara sem cor.

Mas se você ainda quiser
Ouvir a canção que eu vou cantar,
Não me interrompa, se eu fizer
Um gesto bruto, e chorar.
As palavras que eu disser
Não são pra você imaginar
Cenas de uma vida qualquer.
É só minha a canção que vou cantar.

Voz - Rosany Costa:

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O despertar da Esfinge

Dora Brisa
...
Vira para o lado, em vão as mãos dela buscam a maciez das cobertas. O corpo todo estremece com o frio úmido que sente. Abruptamente, arregala os olhos, e o que enxerga é o nada no meio da mais densa escuridão. Um mal súbito a imobiliza. As pupilas se dilatam. Estupefata, articula uma fala rouca, quase sussurro, gaguejante:
- Onde... Onde estou?... Como vim parar aqui?...
Ao esticar o braço, sente o chão rochoso, úmido. Instintivamente, levanta quase num salto. Cuidadosamente, esgueira-se pelas paredes rochosas, sentindo a textura intangível. Em pé, encostada na rocha, ela se esforça em rememorar a noite passada. Lembra-se então que saíra, quase madrugada, entrando num bar, onde tomara duas doses de uísque. Depois, ao voltar para casa, fora seguida por dois homens, que ficaram a espreitá-la, junto ao poste do outro lado da rua, enquanto ela abria a porta de casa. Só não consegue lembrar se trancara a porta depois, tal o assombro imprevisto. Após o banho rápido, sem condição de conciliar o sono, tomara um barbitúrico qualquer, voltando à cama. Nada mais precisa recordar, para adivinhar o que lhe acontecera. “Eles me sequestraram” – pensa num susto.
Em vez de “por que logo eu”, o que lhe vem à cabeça é que não tem ninguém para resgatá-la. Até o cheque especial dela está no vermelho, há quase um mês. Se o sequestro tivesse acontecido há duas semanas, ainda teria o (rico) amante para pagar-lhe o resgate. Proprietário de uma grande empresa de exportação, por certo ele, se não tivesse acabado o relacionamento, pagaria o preço que fosse para tê-la de volta. Mas quanto valeria ela (a vida dela) – em real, dólar, yen, franco ou euro?... Ela não sabe. Mas o que importa isso também, se já não tem mais o amante rico?...
Sem saber por que, lembra agora, quase visivelmente, a noite em que ele – o amante – adentrou à casa dela, que já estava dormindo. Acordara com os gritos dele – o amante – na sala. Levantara assustada, enquanto ele bradava:
- Precisamos conversar...
Silenciosa, ela sentara na poltrona. O amante caminhava, abrupto, de um lado para o outro, sem o olhar fixo. Às vezes, ele tinha rompantes de cólera. Ela sabia.
- Estava em casa... Não conseguia dormir... Precisamos acabar tudo agora, já... – ele falava com empáfia. (Ela silenciosa.)
- Cansei de tentar fazer de você, uma mulher de verdade... Mas tudo em você, inclusive essa sua silenciosa apatia, me enerva...
“Mas eu sou uma mulher de verdade. Não sou?...” – respondera ela emudecida, enquanto o amante prosseguia irascível:
- Fiz tudo para mudar este seu jeito... Nada adiantou...
“Mudar como, se nem eu sei quem sou?” – questionara ela calada, enquanto ele acusava:
- Lembra aquela viagem que tive de fazer com ela (a esposa) a Paris? O que trouxe de presente para você? Lembra? (Ela cabisbaixa.) Pois é, aquele belíssimo estojo de maquiagem... E o que você fez – lembra?... Pendurou uma alça, e achou ter feito a bolsa mais linda do mundo... Ridículo... (Os passos dele, acompanhados pelo tom de voz, também eram bruscos.)
“Quando mostrei a bolsa, você, furioso, destruiu-a, jogando todos os meus guardados na calçada...” – recordara tristonha e muda, enquanto o amante vociferava:
- E aquela vez que trouxe sushi para jantarmos juntos... Você lembra o que fez?... Não sei como, foi à cozinha e preparou moqueca de peixe, com um sorriso de satisfação ainda por cima... Uma vergonha...
“Ainda bem que você saiu sem jantar, porque o peixe que trouxe era pouco, cozido, então...” – respondera ela emudecida, enquanto ele ainda hostilizava:
- Definitivamente, você não é mulher de verdade... Nem pra amante você serve... Quanto mais te presenteava com perfumes, jóias e roupas caras, mais mal-arrumada você me esperava... Você parece retardada, Alice, ou então acha mesmo que vive no País das Maravilhas...
“Por que eu perderia horas, criando uma imagem que não sou eu, pra você desarrumar tudo em poucos minutos, com teus desejos insaciáveis?...” – perguntara em silêncio. Abrindo a porta, o amante arrematara:
- Não perco mais meu precioso tempo com você, porque o meu tempo vale ouro, dólares, euros, francos... Pra mim, chega!... – e o que ela ouviu foi só uma estrondosa batida da porta sendo fechada.
- Preciso te contar uma coisa... – ainda dissera ela emudecida. “Com certeza, ele me mandaria fazer aborto...” – pensara, enquanto revia o resultado comprovado da gravidez.
A escuridão da gruta clareia-lhe cada vez mais a memória. Agora, lembra que, naquela mesma madrugada em que o amante partiu, ela assumiu o ímpeto de colocar todas as coisas dele num saco de lixo, depositado em seguida na lixeira defronte à casa. Depois, movida pelo mesmo ímpeto, juntou todos os perfumes e produtos de maquiagem – inclusive, aqueles de Paris -, as jóias e roupas caras, colocando tudo num segundo saco de lixo, abandonado junto ao outro.
Quando voltou à sala – recorda agora, com os pés descalços na umidade escura -, pegou a colônia pós-barba, que, propositadamente, deixara sobre o sofá. Lentamente, despiu-se, na sala mesmo, e banhou-se com a colônia, esvaziando o pequeno frasco. Como num ritual, pegara uma taça, e começara destampar as garrafas de todas as bebidas que os amantes compartilharam. Suavemente, degustara todos os sabores alcoólicos, embriagando-se com as doses do esquecimento.
- Ele poderia ter mandado aqueles homens me sequestrarem... - arrisca verbalizar, pensando em seguida: “Não, ele disse que não perderia mais tempo e dinheiro comigo... Um sequestro deve custar caro...” (Desiste de buscar resposta.)
Não sabe o que (mais) pensar. Aliás, nunca soube. Durante toda a vida – quantos anos?... Quase trinta (sempre suprimiu a exatidão: tudo é quase, ou nada) -, o pensar de Alice foi pequeno, insignificante até para ela. É bem verdade que tinha pouco a lembrar, e menos ainda planejar ou sonhar. Alguma colega da fábrica de parafusos questionara, uma vez:
- Você não pensa, Alice?
- Pensar – em quê?...
- Alguma coisa... Pensar por pensar...
- Como se pensa por pensar?... - indagara, enquanto ouvia risos à volta.
O que ela gostava mesmo de fazer era sentir. Mas nem isso o pensar de Alice sabia.
Passava dez a doze horas por dia na fábrica, sem nunca ter reclamado hora-extra. Ficava sentindo os parafusos nas mãos – um por um, centenas, milhares deles -, e isso era tudo para ela. Era assim que Alice vivia: sentindo. O pensar fora sempre escravo do sentir. Não tocava o raio do sol, mas, desde pequena, espalmava as mãos e sentia o calor mais profundo, fechando-as logo depois. As mesmas mãos eram expostas à chuva, enquanto, pela janela, Alice então pensava: chove. Nada mais racionalizava. Assim crescera: sentindo, pensando (raras vezes) o que sentia, sem questionar, ou ir além. O pensar se entregava e se integrava ao sentir de Alice.
Lembra agora que, uma única vez, ao sair do trabalho, a noite já estava alta, enchendo o céu de escuridão. Foi ao atravessar a rua, que Alice (sempre cabisbaixa) enxergara a lua numa poça de chuva. Instintivamente, agachou, e primeiro tocou o reflexo da lua com a ponta dos dedos. Depois, imergiu a mão esquerda, mantendo a palma aberta na superfície. Fechou os olhos e a mão, para depois retirá-la, ainda molhada e fechada, guardando-a em segredo no bolso do velho casaco. Prazer maior não haveria para ela, que sentia na palma da mão fechada, a lua ainda tremeluzindo – não mais desamparada na poça d'água. Não havia o que pensar. Os olhos – brilhantes como a lua – sabiam disso.
Por diversas vezes, a mãe de Alice dissera que ela não valia nada. Na primeira vez que a ouviu falar assim, Alice ainda pensara: “Minha mãe descobriu o único segredo da minha existência”. Desde pequena, Alice sentia que carregava dentro dela, algo muito forte, que não valia nada. Mais forte que ela? Não sabia. O que tivera certeza, nas palavras da mãe, era que esse 'algo' fazia com que ela – Alice – não valesse nada. Nunca mais pensara, ou sequer recordara, isso. Agora, na gruta escura, sente a proporção do nada que ela vale. Em total desamparo, sem sequer pensar a respeito, Alice nada faz, rendendo-se ao sem-sentido.
No tempo de escola, Alice era sempre a última a sair. Olhava a sala vazia, e se despedia. Mas nada pensava, enquanto tocava a mesa, o quadro retangular na parede. Num desses dias, deparou-se logo adiante, no corredor, com uma das professoras.
- Você está chorando... - murmurou o sentir de Alice.
A professora, diante do olhar grave e inquiridor, limitou-se a enxugar as lágrimas, dizendo:
- Desculpe... Eu só estava pensando...
Alice, acompanhando os passos céleres, fugidios, ainda disse, sem ser ouvida:
- Não quero pensar... Quem pensa, chora...
Também saiu, seguindo os passos que já ecoavam pela escadaria. Sem pensar. Sem chorar. Só sentia – o quê?... Ela nunca soube, nem agora, quando se vê presa nesse breu.
Na gruta solitária, Alice dá passos em círculo, gestos desarticulados, grita:
- Socorro!... Alguém me ajude!... Socorro!...
O que ela ouve é o próprio eco – meio oco – de suas palavras em desespero. Nunca havia reparado na própria voz, enfraquecida pela desolação. Não demora muito, vencida pelo medo, senta no chão úmido, baixa a cabeça, apertando-a com as mãos. Levemente, toca os joelhos com a testa. E também suavemente as lágrimas brotam-lhe dos olhos cerrados. Alice chora a amarga escuridão que, vagarosamente, escorre-lhe no vazio da alma – essa incógnita por ela intocada.
Sentada na gruta escura, ela sente, pela primeira vez, necessidade de pensar concatenadamente. Pensar o quê?... Lembra agora a brincadeira da infância, quando, sozinha no quarto, misturava, com os olhos bem apertados, pequenos objetos que catava na rua da casa onde morava com o pai, depois que a mãe fugiu com um desconhecido. Deliciava-se por horas, só sentindo os objetos nas mãos, dando-lhes o nome exato – um a um. Depois, quando mudou de endereço com a solidão, Alice misturava diversos tipos de frutas – sempre de olhos fechados -, e também ficava nomeando-as. Nem imaginava que, assim, aquecia o sentir desamparado. Também, jamais usara relógio. O tempo era pouco, ou muito. E bastava saber (sentir) isso.
Lá pelos vinte e cinco anos (ou teria sido antes?), Alice descobriu a música (!). Durante meses, economizou o pouco que lhe sobrava do mísero salário na fábrica de parafusos. Comprou, finalmente, um aparelho de som usado. Até hoje, quando não está trabalhando ou dormindo, Alice senta na poltrona gasta, estica as pernas à mesinha de centro, fecha os olhos, e fica abraçada ao aparelho de som, enquanto as canções lhe trazem alento à alma – e ela nem sabe disso. Só sente.
Por um momento, com os olhos permanentemente cerrados, Alice ouve um som. “Que canção será esta que vem de tão longe – do mais perto de mim?...” - pensa extasiada. A melodia parece uma canção de ninar, mas ela não pensa, deixando-se simplesmente levar – elevar – pelo sentir: um bem súbito a imobiliza. Acalanto.
Aos poucos, timidamente, ainda sentada na rocha úmida, balança o tronco devagar: de trás para frente, de trás para frente de novo. Fecha a mão direita – olhos fechados e lacrimosos – e balbucia:
- Caco de vidro... Maçã... Parafuso...
Lentamente, abre a mão, os olhos, e seca uma lágrima fria e escura. Depois, para disfarçar de si mesma, toca o chão úmido. Ainda sem pensar, ajoelha, enquanto as mãos tateiam as pedras salientes do solo. De repente – surpresa! -, sente, com as pontas dos dedos, uma pedra diferente, que mais parece uma mão repousando. Num ato de ternura, acaricia a pedra, recordando o pai no C.T.I.: “Sei que o senhor não pode falar, mas quero que tenha a certeza de que estarei ao seu lado, segurando sempre a sua mão, para que não sinta frio”. E assim permanecera a mão de Alice, junto à mão do pai, até o caixão, antes do enterro do corpo dele.
A lembrança traz lágrimas envelhecidas, cansadas, contidas por uma dor que ela não pensa que existe. Amparando-se nas próprias mãos, Alice encosta a cabeça na pedra fria, e, em posição fetal, chora, chora até soluçar. Aos poucos, as lágrimas vão espaçando, e ela – sem pensar – adormece.
...
Quando desperta, mais uma vez o sobressalto. Já estava habituada a acordar com os raios do sol, ou a chuva escorrendo pela janela do quarto. Onde a mornidão das cobertas?... Não há coisa alguma que as pupilas dilatadas de Alice possam desvendar na silenciosa e escura gruta. Sentindo dores no corpo, causadas pelo mau jeito, levanta tateando a parede rochosa. Afasta-se um pouco (a gruta é pequena, como ela), agacha para urinar. Depois, arrastando os pés vacilantes, retorna para perto da pedra – a mão que repousa. Senta e sente fome. Não é tão-somente o estômago que se lhe apresenta cheio de vazio, mas a alma – a mais intrínseca imagem diluída do ser.
Sem qualquer resistência, Alice aguça os instintos. Nada contemporiza. Mais uma vez, se esgueira pelas paredes da gruta. Desta vez, um só objetivo: saciar a fome. Não sabe – nem quer saber – há quanto (pouco, muito?) tempo está sem comer. As mãos – vagas, desnorteadas – parecem lobos famintos à procura de – de quê?...
Arranha as pedras, de onde sente retirar um pouco de terra, que leva à boca animal. Come com voracidade. E retira mais terra dos espaços entre uma pedra e outra. E mais outra. Não pensa. Devora a terra, que enche a boca obstinada. Enquanto tateia as rochas, sente filamentos de raízes, os quais puxa com força instintiva, mastigando-os instantaneamente. O sabor parece-lhe forte – raízes profundas. Nem isso ela pensa.
Saciada a fome, Alice senta novamente ao lado da pedra que repousa em forma de mão abandonada. Lembra que, até agora, só conhecera a liberdade segura de repetir gestos e frases caricaturados pelos que passam sem deixar rastros. “Um existir descuidado” - é o que pensa, enquanto retira resquícios de terra dos dentes. Ela própria – nunca soubera – é um projeto incerto, por isso obscuro, ignorado.
Fazer o quê?... Não sabe, não consegue pensar além do que sente. Sempre vagou entre o finito e o infinito, como se a convergência deles fosse mero ponto de interrogação. E agora também não sabe se sobreviverá. E se sobreviver?...
Uma vez, escutara uma colega de trabalho reclamar de 'claustrofobia'. Alice ainda não tem certeza, mas supõe que seja a sensação de falta de ar, mesmo quando e onde existe ar. “Isso só deve acontecer com quem pensa.” - justifica-se resoluta.
Quanto tempo passara? (Qualquer pessoa pensaria isso no lugar dela – que lugar?...) Não tem a menor idéia. Que madrugada era aquela que tomou duas doses de uísque no bar estranho? Sábado – ela lembra, quase sem pensar.
“Estranho mesmo é os sequestradores não terem retornado”, pensa aleatoriamente. Ainda exercita: “Já deveriam ter vindo, pelo menos pra me pedirem a quem devem comunicar o sequestro”. Alice sabe, não há um só alguém no mundo que possa (queira) resgatá-la, ou que simplesmente sinta a ausência dela. No ambiente de trabalho, basta um dia de falta, para ser incluída na lista de 'abandono de emprego'. Ninguém irá procurá-la – nem para dar-lhe má notícia, nem convidá-la para sair. Isso, ela não precisa pensar. Pela primeira vez, sente um peso terrível na alma (“Se não é no corpo, só pode ser na alma, que dizem existir”). Solidão.
Uma contração forte e dolorida faz Alice apertar a barriga com os braços cruzados. Em seguida, sente líquido espesso escorrer-lhe pelas pernas trançadas no chão.
- Hemorragia?... - grita, lembrando a gravidez (ainda) impensada.
O instinto de Alice geme de dor, enquanto o sangue escorre – impassível – na escuridão da gruta. Contorcendo a barriga, ela ainda diz:
- Esse sangue é um sinal de que não estou só?... Mas sangue, acho que sempre tive... Filho, nunca pensei, nem tive...
Instintivamente, estica e abre as pernas, escorando o tronco com os braços apoiados no chão úmido. Grunhindo, treina o pensar:
- É assim que você quer vir ao mundo: líquido?... Como poderei te embalar, te proteger?...
Num só esforço, soergue as mãos, e, em forma de concha, recolhe um pouco do sangue que – sente – sai do útero em dor. Num só instinto de salvação, lambe as mãos, com os olhos sempre fechados. Repete o ritual. O choro se refugia em algum canto da alma rendida ao silêncio: espanto.
...
Calmamente, Alice sente a leve fragrância da alvura das cobertas. Devagar, abre os olhos, e se depara com o relógio digital à sua frente: dez para às cinco. Com ternura, desliga o despertador. Vira para o lado, fecha os olhos, esboçando sorriso despreocupado e leve (só os que nada pensam, conhecem). Enquanto a alma da Esfinge continua decifrando e devorando lá dentro...

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Frio

Dora Brisa

Você chega
No vazio do dia
Digo: Sinto frio
Você abre a janela
Aproxima o sol
Prepara um chá
Uma sopa
Cobre meu corpo
Ainda mais
Repito: Sinto frio
Você já não sabe
O que fazer
Sai
Fecha a porta
E vai fazer
Companhia à rua
Dentro de mim
Ainda digo: Sinto frio
Enquanto minha mão
Cada vez mais fria
Continua à espera da sua...

Voz - Helena Antoun: