terça-feira, 3 de maio de 2011

Felizes

Dora Brisa

Final de tarde. Avenida movimentada. Duas mulheres pela rua conversam descontraidamente. Parecem cansadas, mas mostram-se felizes - como cada uma concebe felicidade.
A mulher que vai um pouco à frente gesticula, fala alto, e em tom animado, olhando para trás, pergunta à outra:
- Quer ajuda?
- Preciso não, já estou habituada.
Às vezes, o barulho ensurdecedor dos motores, das buzinas, impede que a fala de Celina chegue à Maria, que, acompanhando a gesticulação da companheira, sorri da forma mais simples que a vida lhe dá.
É Celina quem insiste:
- Imagine, Maria, que ainda tenho de preparar a janta, lavar roupa e adiantar a limpeza da casa para amanhã.
Mas tudo isso não parece preocupá-la, que continua a caminhar animadamente.Celina tem marido, cinco filhos, sem contar a mãe doente que vive no mesmo barraco. Maria mora sozinha, nunca conheceu família. Quando nasceu, foi colocada numa caixa de sapato, naquela favela. Na época, todos queriam saber da "mãe desnaturada" de Maria, mas enquanto buscavam respostas, a menina crescia, de barraco em barraco, até conseguir aqueles pedaços de tábuas e telhas, onde ainda mora.
De volta para casa, é Maria, pensativa, que interrompe a amiga, dizendo:
- Por mais que dê trabalho, Celina, esta vida é abençoada por Deus. Todos os dias, agradeço poder levantar e continuar trabalhando.E agradeço a Deus também por contar com tua ajuda, no trabalho.
- Que nada, Maria, trabalhamos juntas. Sempre foi assim. Já perdi as contas há quantos anos saímos todos os dias, para trabalhar. Você ainda lembra?
- Sei não, Celina, até porque pouco estudei. O que sei é que sempre fomos vizinhas, e sempre nos demos bem - responde Maria, junto com um sorriso meio tímido.
Enquanto os veículos passam, Celina continua a falar sem parar, gesticulando sempre mais. Repentinamente, olha para trás, secando o suor que lhe escorre à testa, e grita com a amiga, em tom zombeteiro:
- Quase chegando, Maria. Só faltam umas trocentas quadras.
E ambas continuam o trajeto que, mecanicamente, fazem todos os dias. A volta para casa é sempre razão de alívio, sossego, ainda que o cansaço seja cada vez maior. Mas isso não parece afetá-las, ao menos enquanto percorrem a avenida movimentada, em mais um final de tarde ensolarada e cansativa.
Nunca Maria e Celina tiveram um relógio sequer, nem receberam de presente um daqueles "clocks" Made in China que os sacoleiros oferecem na praça central, depois de escaparem da Polícia Federal, na fronteira com o Paraguai. Mas relógio jamais fez falta a elas, que sabem que chegam em casa, todos os dias, com o pôr-do-sol. Quando chove, interrompem o trabalho, debaixo de uma marquise qualquer, à espera confiante de uma chuva mais fina.
São décadas de labuta diária, e todo final de tarde encenam o mesmo roteiro: percorrem a avenida animadamente, até enxergarem a favela onde moram. O asfalto ficou para trás, e Celina e Maria buscam desviar ao máximo do esgoto que corre a céu aberto, denunciando o descaso com aquelas centenas de famílias que teimam em sobreviver.
Quando já nem rua mais parece existir, Celina abandona o carrinho cheio de papelão, que até então empurrara, para ajudar Maria, que redobra esforço no equilíbrio na cadeira de rodas. O carrinho improvisado fica na entrada da viela, ironicamente estacionado, no aguardo de Celina, que agora empurra a cadeira de rodas, que Maria não consegue mais conduzir.
Hoje, ainda é dia de sol, elas continuam a conversar, em tom mais baixo, mas animadamente. Quando chove, a lama impede a rotina das duas, que buscam sempre, com olhar metódico, o caminho transitável. Por vezes, Celina escorrega na lama, e a cadeira de Maria desliza até chocar-se numa pedra qualquer, enquanto as duas sonham que ainda são crianças, e riem sem parar, uma olhando para o rosto enlameado da outra.
Só depois que Celina consegue colocar a cadeira de rodas dentro do barraco de Maria é que retorna para empurrar o carrinho de papelão, que ficará guardado até amanhecer, quando será levado ao comprador de sucatas. Todos os dias são assim: Maria e Celina percorrem a cidade catando papelão.
Amanhã, com certeza, estarão novamente transitando pelas mesmas ruas. E enquanto Celina gesticula, fala alto, empurrando o carrinho, Maria sorri timidamente, empurrando o próprio corpo. E isso parece bastar para ambas serem felizes.

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