sábado, 8 de maio de 2010

Almoço em família

Dora Brisa

Já passa das 14 horas, mas ninguém parece preocupado. Afinal, é domingo, almoço em família. Na extremidade da mesa quilométrica, a matriarca: pouco menos de um metro e meio, rugas na fisionomia hoje mais irônica, cabelos finos e brancos, os quais ela alisa mecanicamente, em silêncio, sem olhar a mesa farta.
Nem ousa levantar o olhar, pois sabe que só conseguiria enxergar os mais próximos. Por isso, repousa os olhos, quase fechados, voltados para o crochê da toalha, que já nem lembra mais em que época ela mesma confeccionou.
São cinco filhos. Isso ela ainda sabe. Mas já perdeu as contas dos tantos netos e bisnetos. No trajeto à mesa, ouviu chorinho de bebês em coro – serão tataranetos?... Nem pensa em abrir a boca e perguntar, até por que fala tão baixo, que ela mesma pouco tem se escutado.
Em meio ao ruído dos talheres nas travessas e nos pratos, ela escuta frases desconexas, paralelas, tudo confuso à audição agora aguçada.
- Soube que a filha do Martin casou pela oitava vez?
- Não coma com a mão, menino!
- Esta semana, a cotação do dólar surpreendeu mesmo!
- Tive de comprar o vestido daquele estilista nordestino...
- Não quero comer cenoura! Odeio cenoura!
- A tintura do teu cabelo combinou mesmo foi com a bolsa!
- Desculpem o arroto involuntário!
- Eu quero brincar com aquele colherão ali, mamãe!
- A velha está gagá, nem ouve mais nada...
- Estou pensando em ir a Paris, no final do ano.
- Ela fez lipo, eu soube no salão...
- Maria, depois você me dá a receita dessa galinhada?...
- Já emagreci dois quilos, agora faltam só catorze...
- Demiti o diretor financeiro. Eu mesmo vou cuidar do serviço.
- Sentada, eu não alcanço a mesa. Deixa eu ajoelhar, papai...
- Olho pra mamãe, e me dá uma pena...
- Ainda não sei se vou tentar vestibular este ano...
- Você acha mesmo que o verde limão do meu vestido caiu bem?...
- Pára de mamar a embalagem de vinagre, garoto!
- Ano que vem, vou ampliar as ações na Vale...
- Encontrei um site culinário de dar água na boca!...
- Não sei viver sem salto alto. Acho que já nasci de salto.
- Não quero comer! Deixa eu ir na cozinha provar a sobremesa, mamãe?
- Será que a faxineira tem vindo toda semana? Essa casa é tão grande, e mamãe parece uma autista...
- Essa torta de espinafre está uma delícia!
- Vá lá no escritório, para conversarmos mais a respeito...
- Deixa eu comer as azeitonas, papai, ninguém quer...
- O que a gente não faz, para manter as aparências?
- Você viu que a Justiça não está perdoando ninguém mesmo, né?
- Só falta um pouquinho de botox nos lábios, e me tornarei uma princesa...
- Dia dez, vou marcar a próxima missa...
- Na sua idade, eu já tinha esses três maiores aqui...
- Encomendei o carro, mas vai demorar um mês pra chegar...
- Oba! A sobremesa!
- Achei melhor demiti-la, mas continuamos nos vendo semanalmente... que secretária!...
- Você ainda acredita em Papai Noel? Pelo amor de Deus!
- Maria, traz um pano para limpar a toalha?
- Eu nem quis conversa com o gerente, fechei a conta imediatamente.
- A nossa bisa não gosta de sorvete de chocolate?...
- Você viu a foto dele, naquela revista? Que homem!
- Não tomo mais nem refrigerante light...
- Quem será que deu à ela aquela estatueta tão triste, desolada?...
- Depois do almoço, vamos ao shopping com a mamãe...
- Na mais recente, eu mandei gravar o nome do meu gato...
- Acho que, antes de sair, vou à cozinha preparar uma marmita para levar para o jantar...
- Imagina que ela me disse que, se eu não assinasse a carteira, ela sairia... e saiu...
- É enjôo... Desculpe...
- Tenho estudado demais pra esse concurso...
- Mamãe, o Júnior roubou o morango do meu prato!...
- Alguém pode me passar a calda de frutas?...
...
Aos poucos, vão retirando-se da mesa, enquanto enfileiram-se em torno da matriarca, beijando-lhe a cabeça, a testa, as faces, as mãos. Ela tudo vê, tudo sente, tudo silencia. Quando sai o último grupo, lentamente, ela toca uma mão na outra, sentindo-as grudarem. Depois, alisa o rosto, e também sente os resquícios da sobremesa há pouco servida.
Na outra extremidade da mesa, permanece Adelaide, a filha do meio, que mora sozinha, longe dali. Olha a filha com compaixão, a mesma que sente agora por si mesma. Suavemente, Adelaide levanta, vai ao encontro da mãe, no costumeiro mutismo tranquilizador, e a abraça com carinho.
O diálogo que estabelecem é o mesmo, há décadas:
- Mamãe, melhor a senhora repousar...
- Todos já foram?...
- Sim...
- Estão todos bem?...
- Cada qual com os problemas que enxerga, mamãe...
- Melhor assim... têm o que fazer na vida...
- É sim, mamãe...
...
Ambas seguem à sala de estar, onde Adelaide, um domingo por mês, acomoda a mãe em sua velha cadeira de balanço. A matriarca da grande família senta, e suspira profundamente, para depois dizer:
- Só preciso dormir um pouco, minha filha... talvez, esquecer...(vira o rosto para o lado)
Adelaide sai da sala, dirige-se à porta principal, e, vendo-se fora, vai procurar o homem responsável pela detonação da velha casa:
- Por favor, meus fantasmas acabaram a última refeição agora... Aguarde só alguns minutos, para que o último adormeça...

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