Dora Brisa
Esta é a minha (mais verdadeira) vida: sentada na escadaria de um albergue, uma mochila ao lado. Respiro a brisa da madrugada. E o que sinto é que não necessito mais que isso: um (qualquer) lugar para sentir a calmaria da noite. Noite que alumia minha alma sombria. Madrugada que chega mansamente, e depois devolve a luz escura de mais um dia sem sentido.
Eis aqui a minha vida. Eis-me aqui, inteira, mansa, tão pura que, se me rendesse, poderia diluir-me nesta madrugada emudecida. Na minha frente, uma rua deserta, silenciosa, como eu, que já nem guardo os passos dos que passam por mim.
O albergue está fechado. O policial militar com quem falei, procurando um lugar seguro até o amanhecer do dia, disse que era para eu bater na porta do albergue, que me acolheriam. Não quero perturbar o sono e os sonhos daqueles que adormecem e sonham. Não eu, que já não durmo há tanto tempo o sono de quem sonha.
Só queria um lugar seguro, para quem sabe não ter de encarar mais uma violência contra o meu corpo – dor que cala fundo na alma mutilada. Aqui estou, ladeada por espécies ornamentais de palmeiras. Só falta a minha rede. Não. Nem a minha rede. Tenho papel, caneta, e isso é tudo.
Quando me chegará o dia (ou a noite) de não ter nada? Quando estarei num lugar que não é meu, trabalhando em concretizar sonhos que não são meus, deitando numa cama que não é minha, e dormindo o sonho dos que ainda sonham?
Quisera eu nada ter (realmente), e continuar trabalhando tanto, para quem sabe merecer sonhar um sonho possível. Porque, para mim, impossível mesmo é viver.
Não quero acordar ninguém. Nem pretendo uma vaga no albergue. Não eu, que tenho o sono agitado pelas ventanias causadas pela ausência de sonhos. Para mim (hoje e sempre – agora sei), basta um degrau onde eu possa sentar e acomodar uma velha mochila que carrega música e poesia. Com certeza, voltarei às ruas, antes mesmo do primeiro raio de sol. Também aqui os pássaros devem cantar, e serão eles, meu chamado de alerta.
Não. Não quero pensar que mais um dia vai nascer. Quero sorver o ar silencioso e puro da madrugada, dessa madrugada inesquecível. Sinto-me tão íntegra, como se meu corpo não fosse feito de tantos ossos e órgãos. É minha alma que suspira em abandono.
Quem me dera ter sentido (e continuar sentindo) esse alívio de nada ter e nada ser. Como tudo teria sido (e seria sempre) diferente. Quem sabe até eu ainda sonhasse – não mais sonhos entrecortados, roubados. Sonhasse apenas os meus sonhos – sonhos pequenos, desnutridos. Quem sabe o corpo (a vida) não pesasse tanto. Quem sabe a alma se diluísse, qual neblina nas montanhas. Quem sabe assim eu descobrisse a verdadeira razão (ou insanidade, tanto faz) do existir humano.
Não adianta. Meu delírio se estilhaça, ao tentar transpor o portão de ferro à minha frente. Minha alma é tão insana, que, quando delira, ignora até a maçaneta de um portão.
Fixo agora meu olhar no portão. Não preciso levantar, tocá-lo. O portão tem uma existência definida e definitiva. Ele é simplesmente. Quem dera também eu ter corpo de ferro, que um dia fez-se brasa, tomando forma limitada, com direito a receber pinceladas hábeis de tinta branca.
O ferro desconhece a existência da madrugada, e ainda assim faz parte desse cenário. Não sonha, por isso é tão pesado. Ser portão é realidade incontestável, monstruosa. Se um dia deixar de ser portão, continuará carregando o peso de ser ferro. E outra coisa não existirá.
Quanto a mim, que não sou de ferro, permaneço sentada. Sem pressa. Sem compromisso. Antes de subir a escadaria, fechei o portão. Ele me protege de longe, silencioso. Eu, alma desprotegida, finjo sentir a proteção que as grades de ferro dão às pessoas que ainda dormem e sonham. Já não tenho mais sono, porque não há sonho meu acalentado e moldado em brasa. A realidade da vida que não é minha me consome. E outra realidade não há. Porque a realidade é tanto quanto, ou até mais pesada, que um portão de ferro. Pensando aquém, a existência do portão faz mais sentido que a realidade sempre nada definida, muito menos definitiva.
Melhor mesmo é não querer ser sequer o portão dessa realidade. O que quero é atingir o ápice da leveza existencial, para não deixar pegadas por onde ando sem rumo e sem descanso. Abro e percorro caminhos que não levam a lugar algum. Por que haveriam de seguir meus passos? Já não persigo sonhos, e por isso não páro para dormir. Continuarei caminhando – e nisso se resumirá toda a minha existência. Já não ando mais em círculos, porque minha alma já não é mais tonta. Só caminho sem parar, sem a pretensão de um dia tudo isso fazer sentido.
E a madrugada complacente acalma minha vida sem sentido. Por um só instante, deliro sonhos alheios – eu que desaprendi de sonhar. O portão de ferro permanece impassível diante de mim. Sei que não demora, e terei de abri-lo novamente, fingindo a força daqueles que dormiram, sonharam, e sabem aonde ir, o que fazer, dentro da vida forjada à brasa.
Penso agora: se eu não tivesse derretido (para nunca mais me condensar) às primeiras chamuscadas, teria me retorcido em brasa? Teria eu aceito o molde que impõem os ferreiros?
Não – esta é a resposta derradeira, porque outra não haveria. Isso é definitivo, e pesa.
Num momento resignado, aceito minha vida sem sentido. Porque jamais eu seria um portão, ou grade, ou até escadaria. Os degraus são laje fria, firme. Nunca houve em minha tamanha segurança. É verdade. Tanto é verdade, que vivo tropeçando nos meus próprios pés. Não sei caminhar em chão firme. Meu passo é leve, por que incerto, sem sentido.
Pela primeira vez, desde que sentei neste degrau, ouso olhar para o alto. Que bela madrugada! Guardarei na alma, a brisa, a calmaria, e não faltaram estrelas e lua à magia daqueles que ainda dormem e sonham. Olho o céu, por todas as criaturas que sonham. Velo o sono dos que sonham sem precisar olhar para o céu iluminado de silêncios. Olho eu, que não durmo, não sonho, mas ainda admiro a lua, as estrelas.Não sou ferro, mas peso tanto. A visão da lua e das estrelas não me pesa. Mas quem dorme acalenta sonhos breves e leves – tantos sonhos, que não haveria quantidade suficiente de estrelas para lhes fazer par. Contento-me em simplesmente olhar o céu. E isso é tudo... Nada.
Esta é a minha (mais verdadeira) vida: sentada na escadaria de um albergue, uma mochila ao lado. Respiro a brisa da madrugada. E o que sinto é que não necessito mais que isso: um (qualquer) lugar para sentir a calmaria da noite. Noite que alumia minha alma sombria. Madrugada que chega mansamente, e depois devolve a luz escura de mais um dia sem sentido.
Eis aqui a minha vida. Eis-me aqui, inteira, mansa, tão pura que, se me rendesse, poderia diluir-me nesta madrugada emudecida. Na minha frente, uma rua deserta, silenciosa, como eu, que já nem guardo os passos dos que passam por mim.
O albergue está fechado. O policial militar com quem falei, procurando um lugar seguro até o amanhecer do dia, disse que era para eu bater na porta do albergue, que me acolheriam. Não quero perturbar o sono e os sonhos daqueles que adormecem e sonham. Não eu, que já não durmo há tanto tempo o sono de quem sonha.
Só queria um lugar seguro, para quem sabe não ter de encarar mais uma violência contra o meu corpo – dor que cala fundo na alma mutilada. Aqui estou, ladeada por espécies ornamentais de palmeiras. Só falta a minha rede. Não. Nem a minha rede. Tenho papel, caneta, e isso é tudo.
Quando me chegará o dia (ou a noite) de não ter nada? Quando estarei num lugar que não é meu, trabalhando em concretizar sonhos que não são meus, deitando numa cama que não é minha, e dormindo o sonho dos que ainda sonham?
Quisera eu nada ter (realmente), e continuar trabalhando tanto, para quem sabe merecer sonhar um sonho possível. Porque, para mim, impossível mesmo é viver.
Não quero acordar ninguém. Nem pretendo uma vaga no albergue. Não eu, que tenho o sono agitado pelas ventanias causadas pela ausência de sonhos. Para mim (hoje e sempre – agora sei), basta um degrau onde eu possa sentar e acomodar uma velha mochila que carrega música e poesia. Com certeza, voltarei às ruas, antes mesmo do primeiro raio de sol. Também aqui os pássaros devem cantar, e serão eles, meu chamado de alerta.
Não. Não quero pensar que mais um dia vai nascer. Quero sorver o ar silencioso e puro da madrugada, dessa madrugada inesquecível. Sinto-me tão íntegra, como se meu corpo não fosse feito de tantos ossos e órgãos. É minha alma que suspira em abandono.
Quem me dera ter sentido (e continuar sentindo) esse alívio de nada ter e nada ser. Como tudo teria sido (e seria sempre) diferente. Quem sabe até eu ainda sonhasse – não mais sonhos entrecortados, roubados. Sonhasse apenas os meus sonhos – sonhos pequenos, desnutridos. Quem sabe o corpo (a vida) não pesasse tanto. Quem sabe a alma se diluísse, qual neblina nas montanhas. Quem sabe assim eu descobrisse a verdadeira razão (ou insanidade, tanto faz) do existir humano.
Não adianta. Meu delírio se estilhaça, ao tentar transpor o portão de ferro à minha frente. Minha alma é tão insana, que, quando delira, ignora até a maçaneta de um portão.
Fixo agora meu olhar no portão. Não preciso levantar, tocá-lo. O portão tem uma existência definida e definitiva. Ele é simplesmente. Quem dera também eu ter corpo de ferro, que um dia fez-se brasa, tomando forma limitada, com direito a receber pinceladas hábeis de tinta branca.
O ferro desconhece a existência da madrugada, e ainda assim faz parte desse cenário. Não sonha, por isso é tão pesado. Ser portão é realidade incontestável, monstruosa. Se um dia deixar de ser portão, continuará carregando o peso de ser ferro. E outra coisa não existirá.
Quanto a mim, que não sou de ferro, permaneço sentada. Sem pressa. Sem compromisso. Antes de subir a escadaria, fechei o portão. Ele me protege de longe, silencioso. Eu, alma desprotegida, finjo sentir a proteção que as grades de ferro dão às pessoas que ainda dormem e sonham. Já não tenho mais sono, porque não há sonho meu acalentado e moldado em brasa. A realidade da vida que não é minha me consome. E outra realidade não há. Porque a realidade é tanto quanto, ou até mais pesada, que um portão de ferro. Pensando aquém, a existência do portão faz mais sentido que a realidade sempre nada definida, muito menos definitiva.
Melhor mesmo é não querer ser sequer o portão dessa realidade. O que quero é atingir o ápice da leveza existencial, para não deixar pegadas por onde ando sem rumo e sem descanso. Abro e percorro caminhos que não levam a lugar algum. Por que haveriam de seguir meus passos? Já não persigo sonhos, e por isso não páro para dormir. Continuarei caminhando – e nisso se resumirá toda a minha existência. Já não ando mais em círculos, porque minha alma já não é mais tonta. Só caminho sem parar, sem a pretensão de um dia tudo isso fazer sentido.
E a madrugada complacente acalma minha vida sem sentido. Por um só instante, deliro sonhos alheios – eu que desaprendi de sonhar. O portão de ferro permanece impassível diante de mim. Sei que não demora, e terei de abri-lo novamente, fingindo a força daqueles que dormiram, sonharam, e sabem aonde ir, o que fazer, dentro da vida forjada à brasa.
Penso agora: se eu não tivesse derretido (para nunca mais me condensar) às primeiras chamuscadas, teria me retorcido em brasa? Teria eu aceito o molde que impõem os ferreiros?
Não – esta é a resposta derradeira, porque outra não haveria. Isso é definitivo, e pesa.
Num momento resignado, aceito minha vida sem sentido. Porque jamais eu seria um portão, ou grade, ou até escadaria. Os degraus são laje fria, firme. Nunca houve em minha tamanha segurança. É verdade. Tanto é verdade, que vivo tropeçando nos meus próprios pés. Não sei caminhar em chão firme. Meu passo é leve, por que incerto, sem sentido.
Pela primeira vez, desde que sentei neste degrau, ouso olhar para o alto. Que bela madrugada! Guardarei na alma, a brisa, a calmaria, e não faltaram estrelas e lua à magia daqueles que ainda dormem e sonham. Olho o céu, por todas as criaturas que sonham. Velo o sono dos que sonham sem precisar olhar para o céu iluminado de silêncios. Olho eu, que não durmo, não sonho, mas ainda admiro a lua, as estrelas.Não sou ferro, mas peso tanto. A visão da lua e das estrelas não me pesa. Mas quem dorme acalenta sonhos breves e leves – tantos sonhos, que não haveria quantidade suficiente de estrelas para lhes fazer par. Contento-me em simplesmente olhar o céu. E isso é tudo... Nada.
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