quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Poeta no morro

Dora Brisa

O poeta sobe o morro,
Com os passos de
Algum profeta esclerosado.

O poeta sobe o morro,
Como dona-de-casa na feira,
Em dia de céu nublado.

O poeta sobe o morro,
Com o olhar de quem
Vai aplacar o tiroteio.

O poeta sobe o morro,
Enquanto os tiros descem
Pela rua do meio.

O poeta sobe o morro,
Com lápis e papel,
Mão no bolso, distraído.

O poeta sobe o morro,
Nem escuta o morador
Que implora socorro, num gemido.

O poeta sobe o morro,
Feito homem-bomba,
Que morre pelo que acredita viver.

O poeta sobe o morro,
Cabisbaixo, em descuido,
Nunca pensou se proteger.

O poeta sobe o morro,
Como vai à biblioteca
Outros poetas encontrar.

O poeta sobe o morro,
Por que não sabe onde ir,
Nem se tem algum lugar.

O poeta sobe o morro,
Do mesmo jeito que vive:
Folha seca ao vento.

O poeta sobe o morro,
Nem repara os olheiros,
Tampouco o armamento.

O poeta já não mais sobe o morro:
Tropeça, cai
Em silenciosa dor.

O poeta morre no morro,
Sem saber onde ia,
Sem grito de pavor.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Ah, criança...

Dora Brisa

Ah, criança...
Como eu gostaria de colorir
Teus dias,
Iluminar tuas noites,
E dissipar todas as tempestades...
Ah, criança...
Como eu queria te fazer
Esquecer o que não era para ter sido,
Lembrar o que não foi,
E te embalar num abraço...
Ah, criança...
Como eu queria que você acreditasse
Que o amor continua acima de tudo,
E a solidão só existe no dicionário...
Ah, criança...
Deixa eu te contar dos meus medos,
Das minhas noites escuras de tempestades,
Da minha solidão combalida,
Das minhas mãos vazias, e frias...
Ah, criança...
Como eu queria voltar a ser criança,
E ainda sonhar,
Sem querer dormir,
E, assim, te proteger...

Voz - Sereníssima:

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Preambulo

A primeira vez que ela o enxergou era um dia qualquer, sem previsão de “grande amor”, no horóscopo que leu no jornal do dia. Como todos os encontros, também esse foi casual. O olhar dele era fixo – o olhar dela sabia que ele a seguia. Ela fingiu não perceber, e seguiu em frente, sem saber mais aonde ia. Ele ficou lá – estatico, com o olhar ainda fixo.
Depois que dobrou a esquina, cambaleando, ela entrou numa lanchonete qualquer, pediu água com gás, e parou para pensar, enquanto retinha na boca cada gole da água gelada, até sentir todas as bolhas de gás deslizarem pela garganta seca. Aquele olhar fixo, no semblante de serenidade dele, permaneceu com ela, até que desistiu de tentar lembrar aonde teria de ir, e voltou para casa.
O apartamento quase vazio tinha as marcas do final do casamento dela. O ex-marido levara quase todos os móveis, os livros, as louças, os dvds, os eletrodomésticos, os cds, e até a coleção de discos de vinil dela, que não se importara. Só não levou o filho que ela tanto sonhara, e ele evitara – até o fim. Pela primeira vez, ela lembra a separação, e isso não chega causar-lhe mal, nem perda. Quanto tempo faz?... Ela não sabe, não quer saber, nem pensar.
Involuntariamente, ela recorda o olhar fixo do homem que encontrou na calçada qualquer. Não era atração física – ela sabia, por que, depois da separação, aventurou-se em alguns relacionamentos, por atração física. Viveu bons momentos – momentos que não passaram de momentos mesmo. Em cada caso que teve (foram poucos), buscou o olhar do homem que tomava-lhe nos braços, mas nada enxergava, além da superfície. Nunca tinha visto um olhar tão fixo, quanto daquele desconhecido, que ela nem chegou reparar nas roupas dele.
Chegou pensar em voltar àquela rua, àquela calçada. Não. Seria esforço perdido. O mais certo era que também ele estivesse de passagem por ali. Mas ele não era estranho a ela, mesmo sem saber quem ele era.
O tempo continuou passando. A vida continuou sendo vivida – ou não. Num outro dia qualquer, ela volta àquela calçada, aonde enxergara, pela primeira vez, aquele olhar tão fixo. E lá está ele, sentado, olhando à rua. Mais uma vez, ela sente aquele olhar fixar-se na presença dela, que, por um instante, pára na calçada, esboça um sorriso, que não chega ser correspondido. Mais uma vez, ela desiste – o olhar fixo a intimida. Tropeçando na calçada, ela sabe que o olhar dele a segue – fixo.
Com férias do trabalho, ela resolve reorganizar o apartamento – um jeito útil de ocupar-se, movimentando a nova vida. Com as economias que fez, comprou cortinas coloridas – e leves, e soltas nas janelas. Fez doação do sofá aonde estava dormindo, desde a separação (o ex-marido levara os móveis do quarto do casal). Comprou estofados novos, coloridos, e televisão nova, novos dvds, novos cds, cozinha nova. Ainda falta-lhe uma estante, para comprar novos livros, nos velhos sebos da cidade.
Almoça, e resolve procurar uma estante – pequena, funcional. Sai de casa a pé, desce a avenida principal, dobra à esquerda, atravessa a rua, e se depára na mesma calçada da loja aonde (ela intui) o olhar fixo trabalha. Lá está ele. Pela primeira vez, ela o enxerga, além do olhar: ele é alto, elegante, charmoso, mas o que mais a instiga é aquele olhar fixo que a penetra, no mais fundo da alma.
Ela o cumprimenta, brevemente: Olá! Acelera os passos, imaginando que ele tenha retribuído o cumprimento, mantendo o olhar fixo, que a acompanha agora, ao dobrar a esquina. O coração dela acelera. Ela transpira ansiedade.
É noite. Ela organiza alguns poucos livros que conseguiu no sebo mais próximo, depois de comprar a pequena estante, instalada na sala. Aquele olhar fixo tira-lhe qualquer pensamento. Ela esboça sorriso maroto, e planeja voltar àquela calçada, quem sabe até entrar na loja onde ele trabalha, no dia seguinte.
Quando acorda, já passa do meio-dia. Não se importa. Está em férias. Resolve almoçar no restaurante que viu, próximo à loja em que ele trabalha. “O destino pode nos aproximar, num almoço” – pensa, confiante. Depois do banho, ela fica escolhendo a roupa que vai vestir – há tanto tempo não fazia mais isso. Resolveu sair com o vestido vermelho, que comprou na liquidação de uma loja do shopping da zona sul. Salto alto, lá vai ela, chamando a atenção de todos, pela calçada. Quando se aproxima do que chama “destino”, o olhar fixo não está lá, próximo ao balcão da loja. Nem sinal dele. Ela finge olhar a vitrine, perscrutando todo o interior da pequena loja. Nada. Desiste de ir ao restaurante – não quer mais almoçar. Volta para casa, desolada. Nem sabe onde ele mora, para procurá-lo. Nem sequer o nome dele.
Os dias dela seguem vazios, ansiosos, sem a presença dele, naquela redoma de vidro. Ansiosa, ela segue o ritual, diariamente, às vezes até, pela manhã e à tarde – pára diante da loja, fazendo de conta que está interessada em alguma roupa exposta na vitrine, e se afasta. Não chega chamar a atenção das funcionárias, por que a loja tem bastante movimento, e todas estão ocupadas em bem atender os clientes que adentram.
Dias depois (para ela, anos de ansiedade), quando passa pela porta da loja, o vê – o mesmo olhar fixo, dessa vez, não para ela. Ele está sentado, com os braços relaxados nos ombros de uma mulher, que ajeita-lhe a gravata ao colarinho salmão. O corpo da mulher está entre as pernas dele, que, sentado, fixa todo o olhar à mulher que sorri. Ela observa, minuciosamente, a cena inteira, estarrecida. Vai embora.
Em casa, desaba em choro, no sofá novo que comprara na liquidação. “Boba! Boba! Mil vezes, boba!” – grita para si mesma, e chora mais ainda, até adormecer.
O tempo passando, e ela sem passar na frente daquela loja. Num dia qualquer, como aquele em que, pela primeira vez, os olhares de ambos se cruzaram, ela se vê diante da loja, onde o olhar fixo permanece, solitário. Sem pensar, impetuosamente, ela resolve transpor a redoma de vidro. Entra na loja. Caminha, com segurança, em direção daquele olhar, que, a cada passo dela, torna-se cada vez mais fixo. Quando fica diante dele, ela fala alto, gesticula, grita mesmo – o olhar, cada vez mais fixo, silencioso. Repentinamente, ela começa quebrar os objetos da vitrine. Segura, com toda força, uma caixa enorme de estecas, e arremessa contra o vidro da vitrine, que estilhaça, chamando a atenção dos transeuntes. Alguns correm, outros chamam a polícia.
No dia seguinte, ela não quer acordar, nem levantar. Os vizinhos do apartamento não a vêem mais sair, nem voltar. Numa loja qualquer, a vitrine exibe o mesmo manequim, de olhar fixo, feito de argila, abraçando o corpo de uma mulher, também feita de argila, sem cabeça.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Ser humano

Dora Brisa

Você que me vê
Passar pela rua
Com seu carro importado
Suas roupas de marca
Seu perfume francês
Seu estômago recheado
Não sabe
Nem imagina
Que para mim
Que não conheço
Comida feita na hora
Roupa nova ou limpa
Cama com cobertas
Achocolatado junto à lareira
A maior vergonha
Continua sendo
A que sempre foi:
Ser tão humano quanto você.

Voz - Helena Antoun:

Mascara

Dora Brisa

Antes mesmo de o sol nascer,
Busco no armario, a mascara
Que é só minha.
Retiro a poeira das vestes,
Retoco a maquiagem pobre...
E lá vou eu, no dia que
Ainda não nasceu pra mim.
Deixo café pronto no fogão,
Para o meu homem, que ainda dorme.
Saio para disputar lugar no metrô.
Duas horas mais tarde,
Já estou faxinando a casa da patroa.
Lavo, passo roupa, cozinho,
Cuido dos filhos e dos cães
Que nunca foram – como se fossem – meus.
Só depois do almoço,
Tudo limpo, arrumado,
Corro atrás do meu homem,
Que trabalha na construção.
Levo marmita, todo dia, para ele,
Que me agradece com um beijo suado.
Enquanto o crepusculo cai
Sobre o dia, e sobre mim,
Trago minha mascara para casa.
Espero o meu homem, que chega
Cansado, bem mais tarde.
Um banho, um jantarzinho simples
E uma cama para fazermos amor.
Meu homem dorme logo, mais exausto
Que a vida que não vivi.
Antes de devolver minha mascara ao armario,
Páro a olhá-la, como a uma filha.
Com ela no colo, repouso na rede,
Enquanto de longe chega
Um doce acalanto, que me faz
Recordar a vida que nunca tive,
A mascara que jamais usei.
Aqui dentro, chora alguma coisa
Parecida com saudade, que me cala.
A minha solidão é silenciosa.
Não há luz lá fora, nem na sala.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Estátua de sal

Dora Brisa

É noite escura...
É madrugada fria...
Busco o mar,
Tão novo,
Tão antigo...
Quero afogar-me
Com tanta vida à beira.
Sorvo, lentamente,
Na concha das minhas mãos,
Toda vida que
O mar regurgita,
Entre fúria e desespero.
O mar, sedutor como a vida,
Leva-me com ele,
Num balanço encantado
De ondas invisíveis.
Doloridamente, o mar
Abre-me, num soluço,
Todas as feridas d'alma,
Esculpindo-me estátua de sal.
Os meus pés presos à areia,
A minha alma solta no mar...
Ainda assim, quero a vida,
A vida que escapou-me
Nas águas de um mar
Talvez mais profundo,
Talvez mais escuro,
Talvez mais amedrontador...
O mar parece compreender-me
Os pensamentos d'alma,
E liberta meus passos,
Que nunca tiveram chão...
Na superfície, adormece o mar...
Do fundo das águas,
Desperta a vida sufocada...
O mar arremessa-me o corpo,
Arranca-me o medo...
Também ele sabe que
Vivo só em desequilíbrio...
Eis que ressuscito das águas,
Estátua de sal que sou,
Fruto agora do mar,
Concha vazia, oca,
Sem pérola, sem voz...
O mar penteia-me os cabelos
De estátua, como escultor
A cuidar da obra inacabada...
Águas salgadas escorrem
Pelo meu corpo que se liquefaz,
A cada onda latejante do mar...
O sal encharca e cobre
As feridas da estátua,
Onde, no fundo escuro, a alma
Se contorce em dor...
No horizonte, o dia
Faz o mar despertar,
E já não há mais sonho,
Nem vontade de dormir...
A janela entreaberta
Traz o mar para dentro
Do quarto da estátua de sal,
Que ainda se contorce, se desfaz
Em lágrimas e sangue salgados,
Encharcados pelo mar,
Que tudo leva, pouco refaz...

Voz - Elisa:

Incógnita

Dora Brisa

Não te peço que me compreendas,
Nem que traduzas meus sonhos,
Meus pesadelos...
Não quero que definas
O que penso,
O que sinto...
Nada te imploro,
Porque também eu não me compreendo,
E meus sonhos confundem-se com pesadelos...
Não sei onde começa meu pensar,
Nem aonde termina meu sentir...
Na minha tentativa
De simplesmente existir,
Tornei-me uma incógnita para mim mesma:
Nem isso entendo...
Caminha comigo,
Aceita esta companhia incógnita,
Ilumina a sombra que denuncia
Meus passos inseguros...
Escuta comigo
O eco do meu silêncio,
E limpa minhas vistas embaçadas
Pelas imagens repetitivas...
Clareia comigo todos os cantos
Deste grande labirinto,
Que, para justificarmos a própria morte,
Chamamos vida...

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Aceita

Dora Brisa

Aceita esta minha alma vadia
Torta
Vazia
Que persiste em endireitar a vida...

Aceita este meu silêncio profundo
Mendigo
Imundo
Que carrego na estrada perdida...

Aceita estes meus cantos sombrios
Úmidos
Vazios
Que surgem diante da tua luminosidade...

Aceita esta minha esperança escondida
Triste
Rendida
Que fica sempre na fresta da possibilidade...

Aceita estes meus vazios,
Que preenchem o nada que sou...

Aceita este meu cansaço de alma,
Que em ti descanso – e não me vou...

Aceita estes meus descaminhos,
Todos seguidos por alguma razão que não descobri...

Aceita, enfim, esta alma desalmada
Lavada
Desarmada
Nua diante de ti...
Aceita...

Voz - Rosany Costa:

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A música da vida

Dora Brisa

Desde sempre, tenho o hábito das longas caminhadas. Herdei do meu pai, que ensinou-me a concatenar os pensares, dentro de um só sentir, a cada passo. Foi com meu pai também que habituei-me a partilhar meus pensares, durante essas caminhadas. Como meu pai já não caminha nesta estrada comigo, divido agora meu pensar com vocês.
Pois bem. Hoje foi mais um dos meus tantos dias de caminhada sem destino. De repente, ao atravessar uma rua qualquer, ouço um assovio logo atrás. Uma mulher simples cantarolava, assoviando. Imaginem – ou pelo menos tentem – as fisionomias, primeiro espantadas, depois sisudas, dos homens que passavam. Mas a mulher não parecia preocupar-se com isso, ou com qualquer outra coisa. E seguiu assoviando pela calçada.
O assovio (até bem afinado) foi sumindo na multidão, e eu fiquei perdida em meus pensares, meus sentires. E é isso que quero compartilhar com vocês: Vocês já pararam pra pensar que tudo, tudo mesmo, na nossa vida, é musical?
É verdade. Reparem no rangido de uma porta. Agucem os ouvidos à queda livre das gotas – metódicas – de água de uma torneira mal fechada. Se a pia estiver tampada (nossa!), que música única... Falando em água, tem a melodia do chuveiro (que faz de você, o maestro, ou o próprio cantor, para acompanhar o fundo musical). E a música da chuva – já pararam pra escutar? Quando era criança, e chovia, eu corria para um galpão coberto de zinco, que a minha avó tinha na chácara. Bastava uma garoa, para parecer um orquestra inteirinha...
E os mais variados sons do vento – quem nunca escutou? A brisa?... O vendaval?... Tudo, música da vida...
Sem contar as incontáveis melodias (às vezes, ruidosas) dos motores. A começar pelos eletrodomésticos. Depois, passemos para os automóveis, aviões. Alguém já se deteve em ouvir o som do remo em atrito com a água? Lindo demais, que chega a lembrar Vivaldi. Não sei por quê. A garoa batendo no zinco faz lembrar Beethoven. Mozart – o som do vento incontrolado, incontrolável, vindo e indo em todas as direções. Para Schubert, eu deixaria as gotas solitárias – caindo uma a uma, numa pia tampada. E Liszt ficaria com os acordes dos primeiros pássaros, numa manhã ensolarada. Chopin traz a lembrança do sonoro carro de bois a puxar o arado que rasga a terra molhada pela chuva, em entrega mútua. Isso. Chopin lembra em tudo mesmo, inclusive o cheiro da terra molhada. Para Bach, eu entregaria o som melodioso do almoço de domingo sendo preparado no fogão. Enquanto a água ferve, a panela faz borbulhar a comida, e o assovio da panela de pressão completa a orquestra, com o tilintar dos pratos, copos e talheres na mesa...
Depois de tanta ousadia, permitam ainda que eu repita: Tudo, tudo mesmo, na vida é musical. Por isso, a vida sem música não seria música, nem vida. Definitivamente.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Amnésia

Dora Brisa

Quando aqui cheguei,
Percebi que tinha perdido algo
(a memória? talvez!).
Esqueci que amor hoje
Pode ser indiferença amanhã,
Que revolta pode ser
Egoísmo simplesmente,
Que a vida pode representar
Somente nascer, viver, morrer.
Quando aqui cheguei,
Não sabia mais nada,
Nem que a inveja pode
Apresentar-se vestida de admiração,
Nem que a falsidade pode
Esconder-se no reflexo de doçura,
Nem que muitos castelos, casarões podem
Ser refúgio de máscaras familiares,
Nem que a luz pode esconder a escuridão.
Quando aqui cheguei,
Havia esquecido que,
Assim como se vive por amor,
Também se mata - se morre - por ele.
Eu - juro - não sabia
Que uma inofensiva faca de cozinha
Pode cortar mais que uma cebola.
Eu tinha esquecido que um olhar
Pode brilhar também de raiva.
Quando aqui cheguei,
Não pude ensaiar
Meu primeiro passo:
Simplesmente tropecei
Dentro de mim,
Embaracei - perdi -
O fio da meada,
Porque não havia memória,
E o pouco do nada esqueci.
Quando aqui cheguei,
Segui a marginália errante,
Que busca perguntas,
Rejeita respostas,
Foge do que alumia,
Salvando-se no colo da escuridão.
E já não me faz falta a memória,
Esse saber que nunca tive,
Porque a loucura não me deixa só na história.

Voz - Helena Antoun:

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Hora extrema

Dora Brisa

Oh, Deus dos cristãos,
Jeová dos testemunhas,
Buda dos orientais,
Deuses africanos,
Ou seja lá mais quem for!
É a Vós todos que dirijo
Minha (única) oração
Miserável, atrasada,
Igual minha vida,
Que se acaba,
Antes de começar.
Oh, Deuses, a quem todos
Ajoelham-se, nos altares
De uma fé que desconheço,
Não peço-vos que me tirem
A vida, por que a vida
Abandona o que é vivo,
E tudo e nada levam à morte,
Seja o caminho que for.
Peço-vos que me arranquem
A alma, essa alma maltrapilha,
Alma chamuscada por dores
De uma vida torta, desumana,
Desaprendida, a cada dia.
Dai-me, oh Deuses,
O descanso do não-existir,
As cinzas de uma alma inútil!...
Calai meu último grito,
Quebrai os sonhos dessa alma
Que não dorme o sono do ser...
Fechai todas as portas
Das efêmeras possibilidades...
Sufocai a minha alma, no canto
Mais mudo, e escuro, e frio,
Até que, dos meus lábios arroxeados,
Não saia sequer o murmúrio:
Amém!...

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Canto ao mar

Dora Brisa

Oh, mar, que me fitas
Com o olhar infinito...
Oh mar, me digas:
O que silencio no grito?...

Oh, mar, que tudo traduz,
Tirando da lágrima, o sal...
Oh, mar, por que não me seduz?
Por que não lava o meu mal?...

Oh, mar, que me espreita,
Calmo até onde posso ver...
Oh, mar, por que viver contrafeita,
Num mundo em que não posso ser?...

Oh, mar, que me vigia,
Silencioso no seu ondular...
Oh, mar, não me dê mais um dia,
Nesta vida que nunca chega clarear...

Oh, mar, que me fascina,
Por simplesmente existir...
Oh, mar, venha e me ensina:
Como chegar, sem ter de partir?...

Oh, mar, que nada me responde,
Venha tua náufraga embalar...
Oh, mar, só me diga aonde
Há porto seguro para eu repousar...

Voz - Rosany Costa: