quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A música da vida

Dora Brisa

Desde sempre, tenho o hábito das longas caminhadas. Herdei do meu pai, que ensinou-me a concatenar os pensares, dentro de um só sentir, a cada passo. Foi com meu pai também que habituei-me a partilhar meus pensares, durante essas caminhadas. Como meu pai já não caminha nesta estrada comigo, divido agora meu pensar com vocês.
Pois bem. Hoje foi mais um dos meus tantos dias de caminhada sem destino. De repente, ao atravessar uma rua qualquer, ouço um assovio logo atrás. Uma mulher simples cantarolava, assoviando. Imaginem – ou pelo menos tentem – as fisionomias, primeiro espantadas, depois sisudas, dos homens que passavam. Mas a mulher não parecia preocupar-se com isso, ou com qualquer outra coisa. E seguiu assoviando pela calçada.
O assovio (até bem afinado) foi sumindo na multidão, e eu fiquei perdida em meus pensares, meus sentires. E é isso que quero compartilhar com vocês: Vocês já pararam pra pensar que tudo, tudo mesmo, na nossa vida, é musical?
É verdade. Reparem no rangido de uma porta. Agucem os ouvidos à queda livre das gotas – metódicas – de água de uma torneira mal fechada. Se a pia estiver tampada (nossa!), que música única... Falando em água, tem a melodia do chuveiro (que faz de você, o maestro, ou o próprio cantor, para acompanhar o fundo musical). E a música da chuva – já pararam pra escutar? Quando era criança, e chovia, eu corria para um galpão coberto de zinco, que a minha avó tinha na chácara. Bastava uma garoa, para parecer um orquestra inteirinha...
E os mais variados sons do vento – quem nunca escutou? A brisa?... O vendaval?... Tudo, música da vida...
Sem contar as incontáveis melodias (às vezes, ruidosas) dos motores. A começar pelos eletrodomésticos. Depois, passemos para os automóveis, aviões. Alguém já se deteve em ouvir o som do remo em atrito com a água? Lindo demais, que chega a lembrar Vivaldi. Não sei por quê. A garoa batendo no zinco faz lembrar Beethoven. Mozart – o som do vento incontrolado, incontrolável, vindo e indo em todas as direções. Para Schubert, eu deixaria as gotas solitárias – caindo uma a uma, numa pia tampada. E Liszt ficaria com os acordes dos primeiros pássaros, numa manhã ensolarada. Chopin traz a lembrança do sonoro carro de bois a puxar o arado que rasga a terra molhada pela chuva, em entrega mútua. Isso. Chopin lembra em tudo mesmo, inclusive o cheiro da terra molhada. Para Bach, eu entregaria o som melodioso do almoço de domingo sendo preparado no fogão. Enquanto a água ferve, a panela faz borbulhar a comida, e o assovio da panela de pressão completa a orquestra, com o tilintar dos pratos, copos e talheres na mesa...
Depois de tanta ousadia, permitam ainda que eu repita: Tudo, tudo mesmo, na vida é musical. Por isso, a vida sem música não seria música, nem vida. Definitivamente.

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