Dora Brisa
Estava exausta. Nem havia se apercebido que trabalhara mais de cinco horas ininterruptas. Sabia, entretanto, que deveria concluir aquela tradução, antes que o sol denunciasse o desleixo dela com o humano (sobrevivente).
Feito animal sedento, desliza, descalça, pela cozinha, atrás daquele copo de leite que guardou no dia anterior. Toma com sofreguidão, como desengasgando a própria vida - sem sentido! -, sem degustar a brancura do leite morno na boca.
Passa indiferente ao relógio cuco da sala, e joga-se na velha poltrona, que há muito oferece-lhe colo aconchegante, sem nada exigir. Em silêncio pleno, fecha os olhos e - por um só momento - nada pensa. Deixa-se embalar pelo mutismo daquele pobre apartamento perdido no terceiro andar do Leme. Não há perfume, porque nunca gostou de flores, que, sem quaisquer explicações, fenecem ao entardecer. Só o verde das folhas contrastam com o branco das paredes - branco que, por mais que ela absorva diariamente, renova-se leitoso e translúcido.
Como a despertar de um sonho, arregala os olhos, enquanto escuta gritos lá embaixo. Aos poucos, a penumbra da sala torna-se mais clara - visível -, quase obrigando-a levantar. Segue em direção da sacada, e nada enxerga lá embaixo. Mas os gritos - agora desesperados - continuam, sempre mais ensurdecedores. A voz - já um tanto rouca - define-se masculina. "Provavelmente, um velho" - a razão acusa-lhe, enquanto a visão obedece à busca da audição.
O corpo todo agora treme. E ela tenta concatenar o raciocínio mais lógico que já teve, para definir o que dizem aqueles bramidos misturados com choro pungente - feito de lágrimas tão grossas, que ela jamais ousou derramar um dia. "Por que um velho choraria a tal ponto, numa hora dessas?" - questiona a razão indiferente. Mas nem as perguntas mais óbvias lhe acalmam o coração, e retorna à sacada.
Com os ouvidos atentos, define a frase insistente, que lhe chega em forma de grito insano: "Abre, Maria! Atende!"
Novamente a razão lhe faz lembrar os nomes dos poucos vizinhos com os quais divide a rotina de esbarrar-se com alguns deles, durante a semana, pelos corredores sempre escuros. "Não há Maria aqui" - sussurra algumas vezes, na intenção - quem sabe - de acalmar um daqueles urros que começam a atordoar a quietude da madrugada. Mas o velho não a escuta, e passa a tocar o interfone com insistência, demonstrando a busca desesperada por Maria, sem deter-se nos números dos apartamentos. Por minutos (incontáveis), o velho, como a provocá-la, repete o exercício de tocar todos os números do interfone, gritando: "Abre, Maria! Atende!"
Ela já não suporta a indiferença da penumbra. Liga todas as luzes do apartamento, até o velho abajur que abriga os óculos cansados de enxergar o mundo. E questiona, em voz alta: Por que Maria não abre, não atende? Onde estará Maria?...
No instante seguinte, imagina Maria fugindo de casa, escondendo-se naquele pacato prédio do Leme, sem causar a menor suspeita. Enquanto o pai - desesperado - suplica-lhe atenção, Maria esconde-se debaixo das cobertas.
"Mas pode haver outra Maria, aquela que deixou o filho deitado ao lado do marido, e nunca mais apareceu" - reflete ela. "O velho quer dar notícias do filho, e da mãe dela que não mais abrirá os olhos" - silencia.
Lá embaixo, os gritos começam a espaçar-se, cada vez mais roucos, desesperados. E Maria não abre. Diante da sacada, contorcendo as mãos, a ânsia que Maria - em ato impetuoso - abra e atenda um só daqueles urros insanos. Mas Maria parece surda, ou indiferente: não abre.
Aos poucos, os gritos tornam-se frases soltas na madrugada: "Abre, Maria! Abre, Maria! Abre, Maria!"
Quando a madrugada parece novamente adormecer, ela busca, com o olhar fixo na calçada, o velho já cansado. Mas não enxerga criatura alguma, por mais que limpe os óculos no vestido solto no corpo. As poucas árvores da rua - silenciosas - não denunciam qualquer sombra insana. E nem um grito mais ousa implorar por Maria.
Num esforço físico, debruçando-se na sacada, alonga a visão dos óculos, que perscrutam um só vulto. Quando já pensa em desistir, vê adiante, quase dobrando a esquina, um corpo envelhecido, cambaleante. Passos indecisos, silenciosos. O vulto causa-lhe fascínio que a imobiliza. E o instante se repete: nada pensa.
Aquela sombra desesperada some na esquina, enquanto ela, debruçada na sacada, permanece indiferente. O relógio cuco denuncia cinco horas da manhã, e ela já nem pensa mais nas vinte páginas que ainda resta traduzir daquele francês que a arremessa à esperança na vida.
Num grito desesperado - insano -, ela lembra: "eu sou Maria!" Há tanto tempo deixou de ser Maria, que nem sabe mais pronunciar o próprio nome com familiaridade. Um dia - há muito tempo - foi Maria, Maria da Luz, que viveu na escuridão até deixar de ser Maria.
Mas nem um só grito ficou, para ela responder: "eu sou Maria!" O peito comprime o nome: Maria. Em passos acelerados - despertos -, dirige-se à porta, que se fecha quando tranca a fechadura. Até a escuridão dos corredores não mais lhe amedronta. Descalça, segue muda em direção da Praia Vermelha, que prenuncia o nascer do sol. A brisa da madrugada toca-lhe os cabelos, enquanto o olhar dela se perde na indiferença do mar absoluto. Uma só onda vem beijar-lhe os pés, como a perguntar por Maria. Mas ela não ousa pronunciar novamente esse nome, que poderia voltar em forma de eco: Abre, Maria!
Estava exausta. Nem havia se apercebido que trabalhara mais de cinco horas ininterruptas. Sabia, entretanto, que deveria concluir aquela tradução, antes que o sol denunciasse o desleixo dela com o humano (sobrevivente).
Feito animal sedento, desliza, descalça, pela cozinha, atrás daquele copo de leite que guardou no dia anterior. Toma com sofreguidão, como desengasgando a própria vida - sem sentido! -, sem degustar a brancura do leite morno na boca.
Passa indiferente ao relógio cuco da sala, e joga-se na velha poltrona, que há muito oferece-lhe colo aconchegante, sem nada exigir. Em silêncio pleno, fecha os olhos e - por um só momento - nada pensa. Deixa-se embalar pelo mutismo daquele pobre apartamento perdido no terceiro andar do Leme. Não há perfume, porque nunca gostou de flores, que, sem quaisquer explicações, fenecem ao entardecer. Só o verde das folhas contrastam com o branco das paredes - branco que, por mais que ela absorva diariamente, renova-se leitoso e translúcido.
Como a despertar de um sonho, arregala os olhos, enquanto escuta gritos lá embaixo. Aos poucos, a penumbra da sala torna-se mais clara - visível -, quase obrigando-a levantar. Segue em direção da sacada, e nada enxerga lá embaixo. Mas os gritos - agora desesperados - continuam, sempre mais ensurdecedores. A voz - já um tanto rouca - define-se masculina. "Provavelmente, um velho" - a razão acusa-lhe, enquanto a visão obedece à busca da audição.
O corpo todo agora treme. E ela tenta concatenar o raciocínio mais lógico que já teve, para definir o que dizem aqueles bramidos misturados com choro pungente - feito de lágrimas tão grossas, que ela jamais ousou derramar um dia. "Por que um velho choraria a tal ponto, numa hora dessas?" - questiona a razão indiferente. Mas nem as perguntas mais óbvias lhe acalmam o coração, e retorna à sacada.
Com os ouvidos atentos, define a frase insistente, que lhe chega em forma de grito insano: "Abre, Maria! Atende!"
Novamente a razão lhe faz lembrar os nomes dos poucos vizinhos com os quais divide a rotina de esbarrar-se com alguns deles, durante a semana, pelos corredores sempre escuros. "Não há Maria aqui" - sussurra algumas vezes, na intenção - quem sabe - de acalmar um daqueles urros que começam a atordoar a quietude da madrugada. Mas o velho não a escuta, e passa a tocar o interfone com insistência, demonstrando a busca desesperada por Maria, sem deter-se nos números dos apartamentos. Por minutos (incontáveis), o velho, como a provocá-la, repete o exercício de tocar todos os números do interfone, gritando: "Abre, Maria! Atende!"
Ela já não suporta a indiferença da penumbra. Liga todas as luzes do apartamento, até o velho abajur que abriga os óculos cansados de enxergar o mundo. E questiona, em voz alta: Por que Maria não abre, não atende? Onde estará Maria?...
No instante seguinte, imagina Maria fugindo de casa, escondendo-se naquele pacato prédio do Leme, sem causar a menor suspeita. Enquanto o pai - desesperado - suplica-lhe atenção, Maria esconde-se debaixo das cobertas.
"Mas pode haver outra Maria, aquela que deixou o filho deitado ao lado do marido, e nunca mais apareceu" - reflete ela. "O velho quer dar notícias do filho, e da mãe dela que não mais abrirá os olhos" - silencia.
Lá embaixo, os gritos começam a espaçar-se, cada vez mais roucos, desesperados. E Maria não abre. Diante da sacada, contorcendo as mãos, a ânsia que Maria - em ato impetuoso - abra e atenda um só daqueles urros insanos. Mas Maria parece surda, ou indiferente: não abre.
Aos poucos, os gritos tornam-se frases soltas na madrugada: "Abre, Maria! Abre, Maria! Abre, Maria!"
Quando a madrugada parece novamente adormecer, ela busca, com o olhar fixo na calçada, o velho já cansado. Mas não enxerga criatura alguma, por mais que limpe os óculos no vestido solto no corpo. As poucas árvores da rua - silenciosas - não denunciam qualquer sombra insana. E nem um grito mais ousa implorar por Maria.
Num esforço físico, debruçando-se na sacada, alonga a visão dos óculos, que perscrutam um só vulto. Quando já pensa em desistir, vê adiante, quase dobrando a esquina, um corpo envelhecido, cambaleante. Passos indecisos, silenciosos. O vulto causa-lhe fascínio que a imobiliza. E o instante se repete: nada pensa.
Aquela sombra desesperada some na esquina, enquanto ela, debruçada na sacada, permanece indiferente. O relógio cuco denuncia cinco horas da manhã, e ela já nem pensa mais nas vinte páginas que ainda resta traduzir daquele francês que a arremessa à esperança na vida.
Num grito desesperado - insano -, ela lembra: "eu sou Maria!" Há tanto tempo deixou de ser Maria, que nem sabe mais pronunciar o próprio nome com familiaridade. Um dia - há muito tempo - foi Maria, Maria da Luz, que viveu na escuridão até deixar de ser Maria.
Mas nem um só grito ficou, para ela responder: "eu sou Maria!" O peito comprime o nome: Maria. Em passos acelerados - despertos -, dirige-se à porta, que se fecha quando tranca a fechadura. Até a escuridão dos corredores não mais lhe amedronta. Descalça, segue muda em direção da Praia Vermelha, que prenuncia o nascer do sol. A brisa da madrugada toca-lhe os cabelos, enquanto o olhar dela se perde na indiferença do mar absoluto. Uma só onda vem beijar-lhe os pés, como a perguntar por Maria. Mas ela não ousa pronunciar novamente esse nome, que poderia voltar em forma de eco: Abre, Maria!
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